Vale a pena abraçar os Direitos Humanos?
Às vésperas do dia em que são mundialmente celebrados, EUA declararam guerra contra eles. Para Trump, são privilégios dos brancos, e derivados de seu deus. O mundo eurocêntrico abre mão de mais uma bandeira histórica. Há muitas razões para erguê-la
Publicado 10/12/2025 às 16:51 - Atualizado 10/12/2025 às 17:06

O Alto Comissário dos Direitos Humanos, VolkerTürk, em seu informe apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em setembro passado declarou que “ninguém está seguro quando os direitos humanos são atacados”. Ele se referia ao desrespeito crescente aos acúmulos multilaterais que foram constituindo o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vem junto a impunidade para quem o pratica – o que torna tudo ainda mais grave. Esta preocupação indica uma dinâmica que desenha uma das centralidades de um balanço da situação dos direitos humanos em 2025.
O enfraquecimento crescente do multilateralismo e das instâncias de proteção global dos direitos humanos não é de agora. Mas certamente ganhou força em 2025, e um dos principais fatores para isso são os ataques da principal potência militar do Ocidente contra os organismos internacionais e sua retirada ou ameaça de retirada de vários destes mecanismos. O novo mandato de Trump enseja este tipo de aprofundamento. Soma-se a ele a posição de outros autocratas pelo mundo, no oriente e no ocidente, no norte e no sul. O resultado principal é deixar aqueles/as mais desprotegidos/as ainda mais desprotegidos/as, ao abandono, à morte. A humanidade está ainda em maior risco e ainda mais desprotegida.
A publicação da National Security Strategy of the United States of America [Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América][1] é a expressão final do que advoga o fim do “império do direito”, no multilateralismo, e a sabotagem ao que dele decorre, e as loas ao “império do poder da força do mais forte”. Interessante que não refere os direitos humanos (ao menos expressamente) no documento, mas aos “direitos naturais dados por Deus” [the God-given natural rights of its citizens], como aparece em vários momentos. Além de reeditar a doutrina Monroe para as Américas [“os Estados Unidos reafirmarão e farão cumprir a Doutrina Monroe para restaurar a preeminência americana no Hemisfério Ocidental”], reedita o imperialismo norte americano num novo contexto.
Ao invocar os “direitos naturais dados por Deus”, recupera uma das noções mais caras aos ultraconservadores em matéria de direitos humanos: enfatiza um sentido para os direitos humanos e para escolhas que vão abrigar determinados direitos em detrimento de outros. Acolhe, inclusive, uma agenda explicitamente anti-direitos – selecionando direitos a promover, como privilégios, e outros a atacar. E tanto é assim que, quando se lê no documento o reconhecimento ao avanço da xenofobia, do autoritarismo e das pautas anti-direitos, saudados como se fossem sinais de renovação democrática, percebe-se a radicalidade desta escolha.
Outro aspecto que denota a posição é quando entende a migração como “ameaça sistêmica” à segurança e à “continuidade civilizacional” dos Estados Unidos e da Europa. Os migrantes, junto com mulheres, ambientalistas, professores, artistas, jornalistas e vários outros que por algum motivo não concordam com a posição de Trump, passam a ser “culpados convenientes”, alvos de ataque prioritário e permanente, servem para absorver a frustração social e afastar a percepção de quem realmente é responsável pelos problemas contemporâneos. Inimigos fictícios têm serventia para confundir, enquanto os poucos endinheirados seguem acumulando, mais e mais. O documento é um alerta forte às vésperas do dia dos direitos humanos… parece que não haverá futuro para eles e com isso para a maior parte da humanidade e dos seres viventes, exceto àqueles que aceitarem se subjugar e fazer a vez de sabujos dos desejos do império, de sempre… que tenta, a todo custo, se manter.
O avanço dos movimentos ultraconservadores anti-direitos humanos cresce e, sobretudo avança no uso instrumental e interessado, interesseiro, dos direitos humanos. Uma mudança no modo como corriqueiramente estes setores político-ideológicos lidam com direitos humanos, visto que sua prática histórica (e remonta aos anti-revolucionários franceses) sempre foi de ataque e rejeição total aos direitos humanos. A postura agora é outra: invocar seletivamente direitos humanos – não todos, alguns, aqueles que são convenientes – não para todos, mas para os “amigos” – uma forma de “política da amizade” ao avesso – e para aqueles a quem Deus criou como seres com direitos – não no sentido do universalismo cristão originário, por exemplo, mas daquele cristianismo da prosperidade e do domínio.
Os direitos humanos são transformados em recursos para atender a “privilégios” e a “privilegiados”, rompendo com uma das noções mais caras – e não por isso menos polêmicas – aos direitos humanos: sua universalidade e, em consequência, a condenação de toda discriminação. Direitos humanos assim, não são direitos humanos e, por isso, talvez Trump sequer os nomeie em seu documento. Está aberta a temporada de ataque a determinados direitos e a determinados/as sujeitos/as de direitos. Está em curso o uso dos direitos para garantir privilégios. O monstro grande pisará ainda mais forte a inocência das pessoas.
Por outro lado, alguns acontecimentos marcam a importância da resistência, ainda que frágil e insuficiente, a esta dinâmica de desmonte da estrutura multilateral de proteção em 2025. Um exemplo é a aprovação de um tratado sobre pandemias pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em maio, em sua 78ª Assembleia Mundial. Outro é a realização da COP30 no Brasil, sem a presença dos Estados Unidos. Ainda que não se tenha aprovado um “mapa do caminho”, o encontro avançou em questões de direitos humanos, direitos trabalhistas, povos indígenas, afrodescendentes e mulheres como necessários na transição justa. Mas eles vieram antes da “declaração de guerra aos direitos e à vida” apresentada por Trump neste início de dezembro. A resistência haverá de ser ainda mais forte e organizada, permanente e consistente, se de fato quiser fazer frente à máquina mortífera de destruição em curso e agora declarada como “estratégia”.
Diante de tudo isso, ainda perplexo, mas animado e encorajado, lembro de Mercedes Sosa: “eu só peço a deus” (1978): “que a dor não me seja indiferente”… “que a injustiça não me seja indiferente”… “que a guerra não me seja indiferente”… “que a mentira não me seja indiferente”… enfim, “que o futuro não me seja indiferente”. Que nenhum/a de nós fique indiferente a tudo isso e que nos despertemos para os grandes desafios que o momento nos coloca no campo dos direitos humanos. O maior deles, lembrando o que disse Conceição Evaristo falando de negras e negros – e que pode ser válido para o conjunto de quem defende direitos humanos: “Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer” e, mais, de seguir juntos/as, em luta, pela vida, em abundância. Viva os direitos humanos… hoje talvez mais como desejo do que como garantia! Mesmo assim, viva a luta por direitos humanos!
Notas
[1] Documento publicado pelo governo norte americano em 05/12/2025. Disponível em www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2025/12/2025-National-Security-Strategy.pdf
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

