Faltam banheiros para pessoas com deficiência
Parece absurdo, mas instalações sanitárias continuam a excluir uma vasta parcela da população. No caso de mulheres, é ainda mais problemático. Sair para um bar ou show pode provocar embaraços e riscos graves. Resta o isolamento social
Publicado 14/11/2025 às 18:15

O direito humano à água e ao saneamento é reconhecido pela ONU desde 2010 (UNGA, 2010). Mas, como todo direito, ele não se realiza de forma neutra. A quem esse direito chega? Em que condições? Para quem ele é negado? No cotidiano de mulheres com deficiência física banheiros e bebedouros não adaptados ou com adaptações precárias fazem parte do cotidiano, mas tudo isso está para além do desenho técnico.
Para além da acessibilidade física ou desenho de estruturas acessíveis baseadas nas normas técnicas, pensar em acesso à água e banheiros, para todos e todas, demanda compreender que é de direitos humanos que estamos falando. Trata-se de reconhecer que infraestrutura é, também, política, e que o básico ainda não é garantido para todos e todas, principalmente quando falamos sobre mulheres com deficiência física. A partir de uma teoria crítica dos direitos humanos, todos (as) têm o direito a saneamento seguro e adequado, mas não são todos (as) que têm os meios para que os direitos sejam assegurados (Herrera Flores, 2009).
Ainda é comum que os banheiros sejam planejados a partir de um corpo idealizado; masculino, urbano, temporariamente sem deficiência; que se move sem dificuldade e ocupa o espaço público sem mediações (Monteiro, 2021). Esse corpo é o padrão imperceptível dos lugares. Seja um lugar físico ou o lugar socialmente construído. E é justamente contra essa exclusão que o enfoque dos direitos humanos se insurge, ele exige que o Estado reconheça as diferenças, as desigualdades e as barreiras específicas que impedem certos grupos de exercer, de fato, seus direitos (Heller, 2022).
No caso das mulheres com deficiência, o não acesso à água e a banheiros não é apenas um problema de infraestrutura, mas uma violação de dignidade e autonomia. Significa depender de terceiros para tarefas íntimas, perder privacidade, enfrentar situações de constrangimento e risco. Significa, também, ter o corpo permanentemente controlado por uma estrutura social e física que não o reconhece.
Mulheres do município de Betim-MG, ao contar suas experiências com o acesso a água e banheiros, dentro e para além do domicílio, mostram que, quando deficiência, gênero e pobreza se cruzam, as desigualdades se ampliam. Uma mulher com deficiência que vive, por exemplo, em situação de pobreza, enfrenta a diversidade da exclusão, uma vez que, antes de sair de casa para ir a um bar ou a um show, precisa, não só pensar se vai conseguir chegar lá, como também, se a cadeira de rodas vai passar na porta do banheiro e, logo, vai ter que segurar a vontade até voltar para casa. A decisão, em vários casos, é não sair de casa.
Mas a falta de infraestrutura urbana não é apenas um problema local, ela afeta mais de um bilhão de pessoas com deficiência no mundo. Banheiros e bebedouros inadequados não só minam a dignidade, como ampliam o estigma e expõem mulheres e crianças com deficiência a riscos graves, inclusive violência sexual em locais isolados (ONU, 2021). Esta vulnerabilidade é comprovada por dados, como o que mostra o IPEA (Cerqueira, 2024). O Atlas da Violência registra, para esse grupo, uma taxa de notificações de violência são mais comuns entre mulheres com deficiência do que entre homens na mesma condição.
Para as mulheres com deficiência, além das formas comuns de violência compartilhadas com mulheres sem deficiência, existem especificidades, como: isolamento social, dependência de cuidadores e serviços, tipo e grau de funcionalidade da deficiência, e a vulnerabilidade para se defender fisicamente, fatores que aumentam a exposição às violências (Mello; Nuernberg, 2012). O número não diz respeito a violências em banheiros públicos, mas evidencia uma vulnerabilidade estrutural que o planejamento urbano negligência, transformando também a ausência de um banheiro seguro em risco iminente.
O direito humano à água e ao saneamento não é apenas o direito a um serviço eficiente, mas o direito a uma infraestrutura justa, sensível às diferenças e construída com a participação de quem vive as exclusões. Repensar o acesso à água e aos banheiros implica abandonar o paradigma tecnocrático da política pública, significa consultar as mulheres com deficiência antes de desenhar os programas, permitir que suas experiências orientem prioridades e reconheçam o cuidado como parte da noção de justiça. Logo, o “para além do desenho inclusivo” é, nesse sentido, um chamado para repolitizar o debate sobre acessibilidade, com uma agenda de direitos humanos, que vincula água e saneamento ao direito à cidade, à autonomia e à vida digna.
Quando observados sob essa perspectiva, bebedouros e banheiros deixam de ser apenas objetos e infraestruturas, passam a ser reconhecidos como elementos através dos quais o desenho das cidades e das redes reflete escolhas políticas, quem é notado (a), quem é considerado (a), quem é deixado (a) de fora. O modo como o Estado distribui esses recursos ou tensiona instituições privadas para viabilizar o acesso, define quem tem o direito de existir com dignidade. Para as mulheres com deficiência física, essa luta é também uma disputa pelo reconhecimento de sua humanidade.
Referências
CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro; BUENO, Samira (coord.). Atlas da violência 2024. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 2024. 129 p. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/14031. Acesso em: 23 jun. 2025.
HELLER, Léo. Os direitos humanos à água e ao saneamento. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2022.
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
MELLO, A. G.; NUERNBERG, A. H. Gênero e deficiência: interseções e perspectivas. Revista Estudos Fe-
ministas, [s. l.], v. 20, n. 3, p. 635–655, 2012.
MONTEIRO, Poliana Gonçalves. A guerra dos homens e a vida das mulheres. As interfaces entre planejamento urbano, violência contra a mulher e segurança pública no Rio de Janeiro, Brasil. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 23, p. e202131, 2021.
UNGA – United Nations General Assembly. Human Right to Water and Sanitation. UN Document A/RES/64/292. Geneva: Unga, 2010.
UNICEF. Make it CoUNt: Guidance on disability inclusive wash programme data collection, monitoring and reporting. New York: UNICEF, 2021. disponível em: https://www.unicef.org/media/114921/file/wash disability toolkit.pdf. acesso em: 4 nov. 2023.
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