Trump contra Mandela

Arapuca midiática, que constrangeu o presidente sul-africano na Casa Branca, vai além do revanchismo contra quem denuncia os crimes de Israel. É jogar sal na ferida de um país que, a muito custo, conseguiu derrubar muros, armas e ódios – justamente as bases do trumpismo

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O encontro entre Donald Trump e o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, realizado na Casa Branca em 21 de maio, seguiu o já conhecido padrão de emboscada midiática que também marcou a reunião com Volodymyr Zelensky, em fevereiro deste ano. Após um início protocolar, Trump surpreendeu ao apagar as luzes e exibir um vídeo carregado de desinformação, reiterando alegações infundadas sobre uma suposta perseguição a fazendeiros brancos na África do Sul. O material distorcia declarações de figuras como Julius Malema e Jacob Zuma, compondo uma narrativa alarmista que apresentava vozes radicais como se fossem representativas de uma ameaça generalizada à população branca.

Embora a África do Sul enfrente, de fato, um aumento expressivo da violência — com os homicídios crescendo 55% entre 2014/15 e 2023/24, segundo dados da Statistics South Africa (Stats SA) —, os números revelam que 81% das vítimas são pessoas negras. Em contraste, os brancos, que correspondem a aproximadamente 8% da população, representam menos de 2% dos casos. Esses dados evidenciam a persistente reprodução das desigualdades raciais e sociais que atravessam a sociedade sul-africana.

A narrativa de Trump sobre a perseguição aos fazendeiros brancos também omite que eles ainda controlam aproximadamente 72% das terras agricultáveis. A nova Lei de Expropriação, aprovada em 2024, prevê desapropriações apenas em situações específicas — como abandono, especulação fundiária ou terras devolutas — e sempre após tentativas de acordo com os proprietários. Ou seja, não há respaldo factual para as acusações promovidas por Trump, que parecem ter o propósito deliberado de constranger Ramaphosa diante da opinião pública internacional.

Diante disso, impõe-se a pergunta: qual seria, afinal, o real objetivo de Trump ao montar essa armadilha política para o presidente sul-africano?

Vale lembrar que o governo Ramaphosa apresentou uma denúncia contra Israel por atos genocidas na Corte Internacional de Justiça da ONU. Essa iniciativa ecoa uma sensibilidade particular da sociedade sul-africana. Muitos enxergam nos mecanismos de ocupação e nas políticas de exclusão aplicadas nos territórios palestinos uma continuidade das práticas do apartheid. O posicionamento internacional da África do Sul, portanto, reflete uma memória coletiva marcada pela luta contra a segregação e por uma ordem internacional baseada na justiça.

A atitude de Trump, no entanto, vai além do revanchismo diplomático contra quem desafiou um aliado estratégico dos Estados Unidos. Ela anuncia uma inflexão mais profunda — um novo momento das disputas políticas.

Nos anos 1990, a África do Sul passou por um processo extraordinário: de uma guerra civil iminente emergiu um país que buscou unidade na diversidade. No horizonte marcado pela violência, nasceu a ideia da “Nação Arco-Íris”, expressão cunhada por Desmond Tutu. Apesar de suas muitas contradições, essa nação representou uma aposta ousada na reconciliação e na convivência pacífica entre distintos grupos sociais.

É claro que não houve mágica. Os sul-africanos não viveram “felizes para sempre”. O apartheid deixou cicatrizes profundas, cuja superação demanda um esforço contínuo que ainda levará décadas. A democracia sul-africana é uma construção frágil, que vem sendo reafirmada cotidianamente ao longo dos últimos 30 anos.

Ao emboscar Ramaphosa no Salão Oval, Trump esfregou sal em feridas que ainda cicatrizam. Seu objetivo não é proteger ninguém, mas provocar sangramentos. Porque o projeto político que encarna está na antítese do ideal da nação arco-íris. Afinal, no mundo segundo Trump, as diferenças não são reconciliáveis — devem ser eliminadas. Conflitos não se resolvem pelo diálogo, mas pelo confronto. Não se solucionam por meio da política, mas da força. Não com hegemonia, mas com dominação.

Trump trabalha para erguer os muros, as armas e os ódios que a África do Sul escolheu derrubar. Na realidade, o verdadeiro alvo de seu espetáculo deplorável não é Ramaphosa. É Mandela.

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