Portugal: o racismo assalta a democracia

Ultradireita tornou-se a segunda maior força política no Parlamento do país. Capitalizou a desilusão política, evoca o passado imperial português e instiga perseguição a imigrantes, como brasileiros e africanos – agora sob leis mais duras e constante vigilância

Foto: MANUEL DE ALMEIDA / RFI
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Por décadas, Portugal ocupou lugar singular no mapa político europeu. Indicadores como o V-Dem e o Democracy Index posicionavam o país entre as democracias mais estáveis da região, com instituições sólidas, baixo conflito político e políticas migratórias reconhecidas pelo caráter inclusivo. Desde a Constituição de 1976, formou-se a imagem de um sistema coeso, pouco permeável ao radicalismo. Até o fim dos anos 2010, partidos de extrema direita eram irrelevantes no parlamento e grupos ultranacionalistas atuavam marginalmente.

A partir de 2019, essa paisagem começou a se transformar com velocidade. A ascensão do Chega coincidiu com o fortalecimento de grupos que circulam símbolos neonazistas, discursos eurocêntricos e referências coloniais, além de teorias conspiratórias sobre migração. Mensagens que apresentam Portugal como país vulnerável a uma suposta ameaça externa ganharam amplitude nas plataformas digitais, alinhadas a repertórios transnacionais difundidos por movimentos da extrema direita na Europa e nos Estados Unidos. Narrativas sobre “substituição populacional” passaram a ser mobilizadas como explicação para desafios sociais reais, convertendo tensões econômicas e institucionais em pautas identitárias.

Plataformas como X, YouTube e Telegram desempenharam papel central nesse processo. A lógica dos algoritmos favoreceu conteúdos que combinam apelos morais, estética de confronto e forte carga emocional. Essa dinâmica ampliou o alcance de influenciadores reacionários e formou redes de circulação de desinformação que alcançaram principalmente os mais jovens. A viralização de discursos anti-imigração criou ambiente favorável à estratégia do Chega, que transformou a migração em tema prioritário de disputa pública. Em 2025, o partido consolidou-se como segunda força parlamentar, e o país aprovou uma legislação migratória mais restritiva que rompeu com o modelo inclusivo anterior.

Portugal tornou-se um exemplo emblemático da atuação da nova extrema direita global. Esse avanço mobiliza frustrações sociais acumuladas, falhas do Estado de bem-estar social e imagens idealizadas da identidade nacional para produzir sentidos de ameaça e antagonismo. A partir desse terreno, consolidam-se projetos orientados por autoritarismo e supremacia cultural, que fragilizam a confiança nas instituições e pressionam o sistema democrático para uma lógica de confronto permanente.

O ambiente político recente se desenvolveu em meio a crises institucionais e disputas internas. Entre 2022 e 2025, três eleições legislativas ocorridas em sequência ampliaram a percepção de instabilidade. A renúncia de António Costa, em 2023, após investigações envolvendo membros de seu governo, aprofundou tensões e abriu espaço para discursos que articulam o esgotamento do sistema político. A leitura de que o Estado se tornara ineficaz passou a orientar parte do eleitorado, e o Chega soube ocupar esse espaço com uma retórica que associa segurança, identidade e moralidade.

Entre os ativistas e movimentos mais radicais, tornou-se comum evocar elementos do passado imperial português, considerado glorioso, para propor uma leitura nostálgica do presente, onde a democracia é colocada como motivo do fracasso. Símbolos das grandes navegações, da antiga centralidade lusitana e do ideal civilizatório europeu são usados para sustentar a tese de que o país se afastou de seu destino histórico. Essa visão se articula com o cenário contemporâneo de desigualdades, baixos salários, crise habitacional e desafios da economia portuguesa.

A combinação gera uma sensação difusa de perda, que se traduz em leitura identitária da política. A partir desse enquadramento, fluxos migratórios passam a adquirir significado moral e cultural, ocupando espaço central nas percepções de insegurança, apoiada, inclusive, por migrantes mais antigos.

Os recentes ciclos migratórios, compostos por brasileiros, africanos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), indivíduos do sul da Ásia e trabalhadores do leste europeu, sustentam setores essenciais da economia, mas passaram a ser tratados como fator de instabilidade. Discursos que vinculam práticas culturais e hábitos cotidianos a incompatibilidades estruturais transformam esses grupos em alvo de vigilância social. Esse processo resulta em formas de racialização cultural que afetam a percepção pública de pertencimento e reforçam hierarquias herdadas da colonialidade.

A passagem do debate simbólico para mudanças institucionais ocorreu no início de 2025. O governo de Luís Montenegro aprovou uma legislação migratória que modificou de maneira profunda o regime anterior. A reforma restringiu o reagrupamento familiar, eliminou mecanismos de regularização facilitada e priorizou trabalhadores considerados altamente qualificados. Organizações internacionais classificaram a mudança como regressiva. O novo marco fortaleceu a ideia de que a presença de determinados grupos representa um desafio à identidade nacional. O efeito desse deslocamento se expressa tanto na formulação de políticas quanto na atuação cotidiana de instituições, como as filas dos aeroportos e atrasos de meses na emissão de novos vistos e títulos de residência.

Em um dos artigos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa Deslocar da ESPM e publicado na revista Cadernos de Campo, descrevo as transformações vividas por comunidades migrantes. Muitos entrevistados relataram mudanças no comportamento diário, redução de circulação em espaços públicos e autocensura em manifestações culturais. Mulheres negras descreveram uma sensação permanente de vulnerabilidade e receio de agressões. Situações de violência contra migrantes ganharam visibilidade.

Esse conjunto de experiências mostra como o medo passou a compor a vida cotidiana de muitos migrantes em Portugal. A insegurança se manifesta de forma contínua, orientada tanto por interações interpessoais quanto por práticas institucionais.

A trajetória recente de Portugal oferece pistas sobre dinâmicas que compõem os principais desafios atuais para as democracias contemporâneas. Instabilidades políticas, heranças coloniais, frustrações econômicas e disputas simbólicas são facilmente instrumentalizadas pela lógica da desinformação e formam um ecossistema favorável à radicalização. A política baseada no medo se estrutura de forma gradual e afeta tanto imaginários coletivos quanto instituições. O percurso português não deixa dúvidas de que a defesa da democracia exige atenção permanente às condições que permitem a transformação de vulnerabilidades sociais em projetos políticos excludentes.

Esse texto apresenta resultados do projeto de pesquisa “Brasileiros em Portugal e ativismo anti-imigração: dinâmicas comunicacionais em Plataformas Digitais” financiado pelo CNPq (processo nº 176992/2023-5) e desenvolvido no PPGCOM ESPM.

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