Por trás do massacre, o cálculo eleitoral da direita?
Há algo brutal demais no morticínio praticado pela polícia fluminense esta semana. E se o objetivo não tiver sido o “combate ao crime organizado”, mas causar uma comoção capaz retomar a pauta conservadora e mudar os rumos das eleiçẽos de 2026?
Publicado 31/10/2025 às 18:48

Estudo do Instituto Democracia em Xeque sobre a megaoperação policial no Rio de janeiro aponta para uma virada na pauta política, até então centrada na agenda de reestabelecimento das relações entre os governos do Brasil e EUA e seus possíveis impactos na reversão do tarifaço, das sanções contra autoridades brasileiras e a escalada das operações militares norte-americanas nas águas do Caribe e os riscos de uma eventual ação militar no continente sul-americano.
A sabedoria política ensina que não se deve atrapalhar o adversário quando ele está errando e, se possível, aproveitar a oportunidade. E foi o que fez o Governo Federal nos últimos quatro meses. Com a derrubada do Decreto Presidencial do IOF, recuperou o discurso da defesa dos pobres contra uma oposição protetora dos milionários, reforçado pela proposta de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco mil reais — medida acompanhada da taxação dos super-ricos. Na sequência, retomou a carta da soberania nacional diante do tarifaço e das trapalhadas de Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo nos Estados Unidos. Após a condenação de Jair, reconectou-se com a bandeira pró-democracia que ajudou a eleger Lula em 2022. E, com a PEC da Blindagem, voltou a ocupar as ruas e o imaginário anticorrupção.
A reaproximação com Trump deu a Lula uma condição inédita: assumir o papel de “adulto na sala” responsável pela reaproximação entre Brasília e Whashington após a intoxicação do filho zero três do capitão. O impacto político em três meses foi expressivo. O governo assumiu o protagonismo nas redes, a aprovação do governo subiu, Lula passou a ser visto como favorito para 2026 e a condenação seguida de medidas cautelares e prisão domiciliar de Bolsonaro foram recebidas com surpreendente normalidade social — aprovadas, segundo as pesquisas (1, 2), pela maioria da opinião pública. O desfecho desse processo precipitou uma luta fratricida que rachou a direita e extrema direita brasileiras.
Diante dessa situação desfavorável, à direita brasileira restou sua “bola de segurança”, com o perdão do trocadilho, a agenda da segurança pública. Fórmula velha, mas eficaz: o espetáculo da violência. E foi essa a aposta de Cláudio Castro. Em uma operação mal planejada e coordenada, soando improvisada, a saber se por uma eventual antecipação estabanada respondendo a um cálculo político, mergulhou o Rio de Janeiro no caos e levou a população ao pânico.
Não havia disfarce possível pois os objetivos políticos e eleitorais restaram explícitos desde o início quando Castro acusou o governo federal de deixar o estado “sozinho” no combate ao crime organizado. Só os ingênuos, ou os mal-intencionados, poderiam acreditar que repetir uma estratégia fracassada seria suficiente para produzir um resultado diferente.
O desfecho confirmou as previsões: ignorando a ADPF das Favelas, repetiu-se o uso de armamento militar em áreas densamente povoadas. O resultado foi a operação mais letal da história da cidade — mais mortes que a soma dos três ou quatro episódios anteriores mais violentos — sem informações claras sobre civis feridos e com a morte de ao menos quatro agentes de segurança e outros tantos feridos. Milhões de cariocas viveram horas de medo. Centenas de milhares ficaram impedidos de sair ou voltar para suas casas e ainda hoje os reflexos são sentidos nas ruas da cidade. Muitos ficaram em casa, outros tantos não conseguem encontrar condução para e locomover.
Se os resultados práticos eram previsivelmente desastrosos, os comunicacionais eram previsivelmente eficazes. O discurso do “pulso firme” segue sendo combustível da extrema direita, especialmente diante de uma população exaurida pela ausência de políticas reais de segurança. Foi assim no Jacarezinho (2021) e na Vila Cruzeiro (2022). Basta recuperar as declarações das autoridades à época para identificar sua semelhança com as de Castro. Aliás, o governador fluminense já acumula quatro das cinco mais letais operações policiais em seus quatro anos no Palacio das Laranjeiras.
As pesquisas de opinião mostram que a segurança pública será, em 2026, a preocupação número um do eleitorado. E Castro, ciente disso, nunca dissimulou a estratégia, lembrando-se que 2022 chegou a afirmar ao jornalista Octávio Guedes que “se me baseasse em pesquisa, faria uma operação policial por semana”. Mais literal impossível.
No entanto, o excesso de violência na operação parece ter feito com que o discurso punitivista ensaiado pela direita desse lugar a um sentimento de comoção social diante da brutalidade, mortandade e caos gerados. Algo parece estar mudando também na forma como deve se dar o enfrentamento ao crime organizado. O governo federal tirou a esquerda da letargia no tema e passou a apresentar uma alternativa concreta de enfrentamento a criminalidade, simbolizada pela operação Carbono Oculto, que desmantelou um esquema bilionário de lavagem de dinheiro do crime paulista. Zero disparos. Comércios e famílias seguiram suas vidas normalmente, sem helicópteros sobrevoando favelas ou mães buscando filhos desaparecidos em meio ao tiroteio. Inteligência, “follow the money” e resultado estrutural.
A sociedade percebeu a diferença e a Carbono Oculto reverberou positivamente, podendo apontar para uma diminuição da brecha entre a capacidade da direita em relação à esquerda no enfrentamento da questão, reverberando numa imagem positiva do governo na imprensa. Na sequência, o governo colocou em debate a PEC da Segurança Pública, numa tentativa de reforçar, entre outras ações, a integração das forças federais, estaduais e municipais. Castro que, diga-se de passagem, foi uma das vozes públicas mais “estridentes” a se posicionar contrariamente à PEC da Segurança desde o início.
Possível supor, tal como ocorreu com a regulação do PL da Adultização após o vídeo de Felca, que o aterrorizante morticínio desta terça-feira, que já acumula mais de cem mortos, acelere a aprovação da PEC da Segurança, como resposta institucional do Congresso à comoção pública. Isso abriria um embate decisivo sobre os rumos da segurança pública no país. Experiências como o uso de câmeras corporais nas fardas policiais já demonstraram eficácia, independentemente da ideologia do governo responsável. Mas ainda é pouco. Muito pouco.
O debate, que já nasce contaminado por interesses eleitorais depois das declarações de Castro, se inclina agora para dois caminhos antagônicos: de um lado, a aposta na inteligência e na integração policial; do outro, a versão 2.0 da “Guerra às Drogas”, agora sob a assimilação do rótulo trumpista de “narcoterrorismo”, usado para justificar ações e execuções extrajudiciais norte-americanas em solo, ar e mares latino-americanos. Narrativa essa que vem sendo incorporada, lamentavelmente, por todos os líderes do bolsonarismo ao longo dos últimos meses, de Castro a Tarcísio de Freitas. Nas bases da extrema direita já aparecem pedidos por uma “bukelização” do país, em referência a política de encarceramento em massa ao arrepio da lei promovida pelo presidente de El Salvador, Nagib Bukele.
Independente dos resultados e da apuração de responsabilidades dessa trágica operação policial, na qual o Ministro Alexandre de Moraes, no âmbito da relatoria da ADPF das Favelas, já pediu explicações ao Ministério Público, do ponto de vista discursivo a extrema direita conquistou duas vitórias preliminares: a) criou uma cortina de fumaça e deslocou o foco do debate sobre aproximação de Lula e Trump; b) reagrupou e reanimou sua militância digital. Além disso,a extrema direita força uma reaproximação com a agenda do presidente Trump de enfrentamento ao “narcoterrorismo” na América Latina, o que poderia contribuir também para distanciá-lo de Lula, num momento em que o governo brasileiro tenta normalizar suas relações com a Casa Branca
Resta saber se o efeito dessa iniciativa será efêmero ou estruturante, assim como se os rumos que o debate sobre segurança e a agenda política assumirão daqui para frente. Como já citado anteriormente, o sentimento de comoção gerado pelo excesso de violência policial pode acabar sendo prejudicial para Castro e para a direita no médio prazo. O certo é que estes rumos do debate digital dependerão da capacidade e agilidade político-comunicacional do governo e oposição nos próximos dias.
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