Peru: Caos político e “golpe institucional”
Acusada de “incapacidade moral”, Dina Boluarte é derrubada em meio a ondas de violência, repressão e reconfiguração da extrema-direita andina. Desde 2016, nenhum presidente completou seu mandato. Vacância abre espaço para o fujimorismo resgatar projeto neoliberal
Publicado 14/10/2025 às 16:30 - Atualizado 14/10/2025 às 16:32

A destituição da presidenta Dina Boluarte pelo Congresso do Peru, em 10 de outubro de 2025, em meio à já crônica instabilidade institucional do país, constitui um evento que, à semelhança dos episódios que envolveram Pedro Castillo em 2022, Martín Vizcarra em 2020, Pedro Pablo Kuczynski em 2018 e Ollanta Humala em 2016, revela a erosão estrutural do sistema político peruano e a reconfiguração de forças econômicas e criminais que atuam de forma transversal na região andina. A América Latina vive a década de 2010 uma “nova fase de golpes brandos”1, caracterizada não pelo rompimento abrupto da ordem constitucional, mas pela instrumentalização do próprio arcabouço legal e judicial para neutralizar projetos populares e preservar os interesses do capital transnacional.
A trajetória recente do Peru condensa o drama político da América Latina no pós-Consenso de Washington. Em 2021, a eleição do professor rural Pedro Castillo, sindicalista de origem camponesa e apoiado pelo partido Perú Libre, foi interpretada como uma inflexão do país, historicamente dominado por elites limeñas e tecnocracias neoliberais, no sentido de sua dimensão popular e soberana. Contudo, os governos progressistas de nova geração enfrentam hoje “estruturas de bloqueio sistêmico”2 muito mais sofisticadas do que aquelas vistas no ciclo anterior entre 2003 e 2013, em que o crescimento das commodities permitia alguma margem de manobra social. No caso peruano, essa margem era quase inexistente. Castillo enfrentou, desde o primeiro dia, um Congresso hostil, uma elite midiática concentrada e um Judiciário politizado, que progressivamente minaram sua governabilidade até o golpe parlamentar de dezembro de 2022.
Mudança de rumos com Boluarte
A ascensão de Dina Boluarte, então vice-presidente, inscreveu-se nesse contexto de ruptura. Apesar de ter sido eleita na mesma chapa de Castillo, Boluarte logo rompeu com o Perú Libre e buscou construir uma base de apoio junto a partidos conservadores e liberais, que enxergavam nela uma figura de “transição institucional”. Essa inflexão política, de um mandato popular à acomodação com a elite neoliberal, foi lida por como uma forma de “progressismo de contenção” que conserva a retórica de direitos, mas administra o Estado sob lógica extrativista e repressiva3.
O episódio que precipitou a destituição de Boluarte, o “Rolexgate”, envolveu relógios e joias de luxo de origem obscura e constitui sintoma de um padrão sistêmico de corrupção e patrimonialismo. Em Estados periféricos com forte dependência mineral e financeira, a corrupção articula o poder político ao capital ilegal e, no caso peruano, essa simbiose entre elites políticas, empresariais e redes criminosas foi capturada pelas instituições públicas. Nos últimos anos, o Peru consolidou-se como um dos principais corredores do narcotráfico entre a Amazônia e o Pacífico, disputado por cartéis colombianos, grupos armados venezuelanos e facções bolivianas. Essa criminalidade transnacional fragiliza o Estado e reconfigura a geopolítica da segurança regional, impelindo os governos a militarizar territórios e a reduzir direitos civis sob o pretexto da ordem pública. O paradoxo é que quanto mais repressão se promete, mais o poder real do crime se consolida4.
O possível retorno do Fujimorismo
A vacância de Boluarte reabriu o espaço político para o retorno do fujimorismo, que vigeu com Alberto Fujimori entre 1990 e 2000 e hoje tem sua filha, Keiko, como figura central da direita peruana. Historicamente, o fujimorismo estruturou um neoliberalismo autoritário, sustentado por privatizações em massa, repressão sindical e centralização do poder. O modelo impôs ao Peru o papel de mais uma economia exportadora de minerais e gás natural, com forte dependência de capitais estrangeiros e reduzido controle social sobre as rendas extrativas. Marcada pelo “ajuste permanente” imposto pelo FMI e pelas elites regionais ao Estado andino, a administração dos Fujimori5 é agora evocada no momento em que seus seguidores se reposicionam como “garantidores da estabilidade” e apontam para a restauração do projeto neoliberal
A queda de Boluarte, sucedida pela posse interina do presidente do Congresso José Jerí, ilustra o colapso da legitimidade política peruana. Desde 2016, nenhum presidente completou seu mandato, e o país passou a ser governado por coalizões voláteis de partidos minoritários, com forte influência corporativa e midiática. E essa instabilidade institucional tem implicações diretas para o processo de integração latino-americana. O eixo andino, que poderia constituir um corredor estratégico entre o Pacífico e o Atlântico, articulando Bolívia, Peru e Brasil em torno de infraestrutura e energia, segue paralisado por crises internas e pela incapacidade de construir um projeto comum. Sem soberania nacional não há integração possível e o que se integra, em tal contexto, são as cadeias de dependência6. Além disso, o recrudescimento da violência e do crime organizado tem impactos diretos sobre Colômbia, Venezuela e Equador, que enfrentam pressões migratórias e disputas territoriais similares.
Golpe e repressão
Para a esquerda democrática latino-americana, a destituição de Boluarte obriga denunciar o processo como mais um “golpe institucional” em meio às reivindicações generalizadas de que a decomposição ética do governo inviabilizou sua defesa pública. De um lado, é inegável que o mecanismo da “incapacidade moral permanente” tem sido usado como ferramenta de manipulação política, sem critérios claros e com evidente seletividade de classe. De outro, a ausência de transparência e a repressão violenta às manifestações populares fragilizaram a defesa diante dos próprios setores progressistas. Essa ambiguidade reflete a transição em curso na região que a esquerda latino-americana enfrenta, pois a ofensiva da direita e do capital financeiro apontam, na verdade, que é preciso restabelecer a relação dos movimentos políticos progressistas com o Estado e com a ética pública. Há uma crise de legitimidade da própria política, corroída pela financeirização e pela desconfiança popular.
A queda de Boluarte radicaliza a crise institucional no país como um espelho da fragilidade estrutural das democracias periféricas submetidas a décadas de neoliberalismo, extrativismo e captura institucional. Para a esquerda democrática latino-americana, o desafio é encontrar um projeto ancorado na soberania popular e na integração regional solidária que seja alternativo à restauração da dependência e da tutela externa. Sem democratização da economia e sem controle popular sobre os recursos estratégicos, nenhum projeto de integração será verdadeiramente emancipador.
1 ESPINOZA, Gustavo. De golpes militares a “brandos”, governos populares sempre foram o alvo na América Latina. Diálogos do Sul Global, 11 mar.2025. Disponível em: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/golpes-militares-a-brandos-governos-populares-sempre-foram-o-alvo-na-america-latina/ Acesso em: 10 out.2025
2 MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2023.
3 SVAMPA, Maristella. El colapso ecológico ya llegó: Una brújula para salir del (mal) desarrollo. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2020.
4 MACHADO, Decio; ZIBECHI, Rául. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progresismo. La Paz: CEDLA, 2016.
5 LEIVA, Fernando Ignacio. Latin american neostructuralism: the contradictions of post-neoliberal development. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008
6 FURTADO, Celso. Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
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