Para compreender o fascismo tardio
Crítico cultural italiano adverte: de pouco valem analogias com Hitler ou Mussolini. Ultradireita bebe nos métodos da dominação colonial e racista, ressurge sempre que a ordem do capital está em xeque e é convocada pelas democracias liberais…
Publicado 17/02/2025 às 19:03 - Atualizado 17/02/2025 às 19:19
Por Lisa Lowe, no Verso Books | Tradução: Antonio Martins
No mundo contemporâneo, bombas destroem implacavelmente escolas, hospitais e suprimentos de água, expulsando pessoas de suas casas. Medidas de “austeridade” aprofundam os abismos econômicos globais, enquanto governos autoritários submetem os mais vulneráveis, pobres e desabrigados, à violência estatal e ao encarceramento. É um tempo, nas palavras escritas por Antonio Gramsci em uma prisão fascista um século atrás, em que “o velho mundo está morrendo e o novo não pode nascer”; em que os fracassos de uma antiga ordem político-econômica e os “sintomas mórbidos” dos Estados-nação imperiais assolados por crises de legitimação coexistem com alternativas emergentes que lutam para nascer. Ao redor do mundo, multidões vão às ruas para pedir um cessar-fogo em Gaza, protestar contra assassinatos policiais de homens e mulheres negros desarmados na América do Norte, exigir moradia para migrantes e o fim do encarceramento em massa, e proteger cursos d’água e terras da extração e da construção de oleodutos. O caos resultante do regime moribundo traz suas próprias atrocidades e novas formas de terror, mas também torna possíveis novas relações ainda não realizadas. Esses movimentos coletivos – atravessando diversas histórias coloniais e capitalistas, regiões e populações – compreendem condições diferenciadas, mas interligadas, de promessa e perigo que se unem neste momento histórico urgente e que parece às vezes incompreensível.
Leio o livro erudito, elegantemente pensado e pacientemente argumentado de Alberto Toscano, Late Fascism [Fascismo Tardio], como um esforço de nos oferecer os meios históricos e filosófico-políticos para compreender o fascismo em nosso tempo, ao ajustar as contas com o fascismo na longa duração. Como as linguagens políticas disponíveis estão saturadas por lógicas liberais, elas frequentemente velam e obstruem a compreensão do “presente político”. Contribuem para o reconhecimento equivocado do “fascismo” como espetacular e excepcional, em vez de integrante do casamento moderno entre democracia liberal e capitalismo. O Late Fascism de Toscano enfatiza que esse reconhecimento equivocado é um obstáculo primário para entender, organizar e lutar eficazmente contra as múltiplas contradições do nosso presente político.
Ao discutir a natureza e a etiologia do fascismo tardio, Toscano nos leva além dos exemplos europeus do período entre guerras do “tipo ideal” do fascismo e desconstrói a suposta oposição entre fascismo e democracia liberal. Enfatizando que o fascismo não é monolítico ou genérico, e não possui um modelo singular e estático para o qual possamos identificar analogias ao marcar uma lista de características, ele argumenta que devemos, em vez disso, abordar o fascismo como um processo com múltiplas origens, localidades e temporalidades, ocorrendo dinamicamente em relação a condições específicas. De certa forma (embora ele não se expresse exatamente assim), Toscano está argumentando que “o fascismo é uma estrutura, não um evento”, significando que ele não é uma aberração do período de guerra europeu, nem um estado natural original do qual emerge o antídoto da liberdade política liberal, mas sim uma característica persistente da história do liberalismo colonizador e do capitalismo colonial. A democracia liberal não é o antídoto do fascismo, mas sim sua condição de possibilidade. O governo fascista pode incluir, mas não se limita exclusivamente a, Estados autoritários ultranacionalistas. Dentro dos Estados liberais, ele anima a perda econômica e o abandono social, e armazena energias libidinais atávicas não resolvidas, liberadas pelas crises e crueldades da ordem social desigual, e as volta contra outros raciais, religiosos, sexuais e de gênero.
Toscano elabora ainda que podemos entender o fascismo como a constelação de formações reativas através de aparatos ideológicos e estatais, com o objetivo de manter ou sustentar uma ordem social em decadência. Ele não é separável dos colonialismos, mas sim intimamente interconectado tanto com o despossessão indígena histórica e contínua, quanto com o cativeiro e a escravidão nas plantations e a contrarrevolução; os fascismos se desdobram em oposição e em antecipação a rebeliões insurgentes que desafiam ou transformam o regime de propriedade existente, a partir dos povos, locais e regiões onde a ocupação e o governo tênue foram estabelecidos. Essa é a razão pela qual Toscano se baseia especialmente nas tradições radicais negras e anticoloniais para teorias incisivas sobre o fascismo — não apenas para evidenciar que reconhecemos mal o fascismo, se o limitarmos à Itália de Mussolini e à Alemanha de Hitler, mas também para argumentar que o fascismo é uma formação ancorada no capitalismo racial e colonial, que precede e persiste além do exemplo europeu. Entre as muitas contribuições valiosas do livro, é essa que abordo no restante dos meus comentários.
Pensadores anticoloniais têm sido os analistas mais incisivos dos fascismos. Em seu Discurso sobre o colonialismo, de 1950, o martinicano Aimé Césaire identificou as origens do fascismo no projeto de subjugação colonial ao afirmar que a Europa só conseguiu reconhecer a vergonha e a brutalidade da “humilhação do homem” quando empregadas pelos nazistas contra europeus brancos, algo que “até então havia sido reservado exclusivamente aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África”.1 Em Como a Europa subdesenvolveu a África, o guianês Walter Rodney escreveu que “o fascismo era um monstro nascido de pais capitalistas… o produto final de séculos de bestialidade capitalista, exploração, dominação e racismo exercidos fora da Europa”.2 O George Padmore, de Trinidad considerava o apartheid na África do Sul como o Estado fascista clássico, e o poeta afro-americano Langston Hughes frequentemente declarava que as condições enfrentadas pelos negros na América eram “fascistas”. Em outras palavras, antes que a violência nazista viesse a epitomar o fascismo, pensadores radicais negros já detalhavam fascismos associados à despossessão colonial e à escravidão racial.
Toscano invoca A Reconstrução Negra na América (1935), de W.E.B. Du Bois, como um texto-chave na análise do entrelaçamento entre fascismo e democracia liberal. Du Bois argumentou que a escravidão estava no cerne do capitalismo liberal moderno. A brutal mercantilização de seres humanos pela escravidão não apenas desmentia as reivindicações de democracia liberal dos EUA. A possibilidade de rebelião escrava também tinha a força para transformar o sistema de desigualdade racial violenta que tornava possível aos liberais falar em “liberdade universal”. Du Bois afirmou que a escravidão não era uma aberração da democracia liberal nos Estados Unidos; ela era, e continuou a ser, sistêmica e constitutiva da democracia norte-americana, e da extensão do poder dos Estados Unidos ao redor do mundo. O livro conta a história de meio milhão de trabalhadores negros que, por meio de seu êxodo massivo das plantations escravistas do sul, criaram um ambiente semelhante ao de greve geral. Ele paralisou o sistema de plantations, derrubou a Confederação e, forçou o Norte a assumir a abolição da escravidão como sua causa.
Mas A Reconstrução Negra acaba por relatar o que Du Bois chama de “contrarrevolução da propriedade”: o bloqueio da liberdade negra pela consolidação de uma aliança branca entre industriais do norte e oligarcas do sul, e a persuasão dos trabalhadores camponeses brancos a se afastarem de uma aliança inter-racial com os trabalhadores negros. A “contrarrevolução da propriedade” exemplificou precisamente uma formação fascista que sustentou o capital branco e a supremacia branca contra uma potencial “insurgência” que tinha o poder de acabar com a escravidão e o apartheid racial, e que poderia ter transformado uma ordem social construída sobre a acumulação por meio da subjugação de seres humanos cativos.
Toscano se concentra especialmente no que Cedric Robinson chamou de “construção negra do fascismo”. Ele mostra como teóricos sub-valorizados do fascismo norte-americano – desde os Panteras Negras no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, até os escritos e correspondências prisionais dos presos políticos Angela Davis e George Jackson. Ao fazê-lo, convida a repensar o debate teórico sobre o fascismo em relação à situação dos negros norte-americanos encarcerados sob o capitalismo racial. Como presos políticos, Davis e Jackson entendiam o fascismo como uma forma de contrarrevolução preventiva, usando estruturas carcerário-judiciais para suprimir ameaças percebidas à ordem social capitalista estruturada na dominação branca. Em outras palavras, os fascismos são sinais de crises do capitalismo racial e do excesso imperial, parasitando tanto as fraquezas da ordem político-econômica quanto a vulnerabilidade da oposição a ela. Toscano comenta que o fascismo é “reativo, não apenas em conteúdo social, mas em forma temporal – seja respondendo imediatamente a um potencial levante revolucionário triunfante ou, de forma mediada, a um desafio já derrotado ou em declínio”.3
Ao entender que o capitalismo é inerentemente instável, podemos observar que ele entra em crise quando a contradição entre acumulação e exploração atinge um nível insustentável, expresso como superprodução, diminuição dos lucros e desemprego, por um lado, e o aumento das desigualdades de riqueza, segregação racial e policiamento de comunidades pobres e não-brancas, por outro. Nos Estados Unidos, essas contradições produziram dialeticamente antagonismos ao longo dos anos 1970 que irromperam em movimentos radicais de Poder Negro, Pardo, Amarelo e Vermelho, greves trabalhistas, rebeliões urbanas e movimentos sociais, desde feministas negras até anti-apartheid e anti-guerra. A eles, o Estado respondeu com o aumento da capacidade militar, policial e prisional do Estado. Ruth Wilson Gilmore nos ensinou muito sobre como essas contradições levaram à expansão do sistema prisional dos EUA nos anos 1980. Para justificar a si mesmo e seu monopólio da força, o Estado trabalhou ideologicamente para compelir a identificação com a cidadania multicultural, e puniu aquelas “ameaças” à segurança nacional dessa cidadania ao distinguir entre o uso “legítimo” da força pela polícia e pelas forças armadas, e a violência “ilegítima” da dissidência e da rebelião.
Embora a expansão das funções repressivas do Estado tenha multiplicado os espaços em que as comunidades são tornadas vulneráveis à violência estatal, tal violência não se restringe apenas ao encarceramento, militarização ou policiamento. Comunidades racializadas pobres, imigrantes e anteriormente colonizadas têm sido devastadas pela privatização neoliberal, desregulamentação e extrativismo que protegem corporações e minam a proteção do trabalho e do meio ambiente indígena; pela suburbanização e vigilância direcionada de espaços sociais urbanos; e pelos pânicos morais em torno do “crime urbano”, imigrantes, mulheres negras e não-brancas e comunidades queer. Essas, também, são operações relacionadas e implicadas na expansão do Estado carcerário dos EUA.
Angela Davis e George Jackson, em seus escritos e correspondências prisionais, discutem a expansão do sistema prisional pelo Estado norte-americano como uma forma exemplar de fascismo, combinando capitalismo monopolista, imperialismo e crises capitalistas com a supressão contrarrevolucionária da dissidência política. Em Late Fascism, Toscano discute uma das cartas da prisão de George Jackson, em Blood in my Eye (1972). Jackson escreve:
Quando sou entrevistado por um membro da velha guarda e aponto para o concreto e o aço, o minúsculo dispositivo eletrônico de escuta escondido na ventilação, a falange de capangas espiando-nos, seu gravador de plástico disfuncional que custou uma semana de trabalho, e aponto que tudo isso são manifestações de fascismo, ele invariavelmente tenta me refutar definindo o fascismo simplesmente como um assunto econômico-geopolítico onde se permite que apenas um partido exista e nenhuma atividade de oposição é permitida.4
Jackson identifica a prisão como um aparato do fascismo a partir da perspectiva de um prisioneiro político negro acusado de atividade revolucionária armada, e logo em seguida assassinado por guardas prisionais. Como prisioneiro político negro, enquadrado como “ameaça” insurgente ao monopólio da força do Estado, Jackson escreve de forma transparente sobre a formação contrarrevolucionária do fascismo e enfatiza a materialidade do complexo industrial prisional, desde as tecnologias de vigilância até o trabalho desvalorizado do pessoal prisional. Jackson está comentando sobre o fascismo como o que Gilmore mais tarde chamaria de “reestruturação do Estado capitalista” enquanto ele tenta avançar mas fracassa. Gilmore enfatiza que a “solução prisional” do Estado racial americano do pós-guerra para o fracasso do capitalismo não é um fenômeno isolado. As decisões de construir prisões que encarceram desproporcionalmente homens e mulheres negros – e de investir em punição industrial, policiamento e militarismo em vez de bem-estar público, saúde ou escolas – foram centrais para uma reorganização estrutural do “cenário de acumulação e despossessão” do pós-guerra. Como observa Toscano, o fascismo não é apenas uma reestruturação contrarrevolucionária do Estado capitalista. Também é uma ação incipiente e antecipatória contra um acerto de contas adiado, suprimido ou em curso.
Alberto Toscano é um dos teóricos políticos mais significativos e originais da atualidade. Em Fascismo Tardio, ele lida com um vasto espectro do pensamento antifascista: de Ernst Bloch, George Bataille e Leo Lowenthal a Angela Davis e George Jackson; de Stuart Hall e Ruth Wilson Gilmore a Jairus Banerji e Furio Jesi. Os resultados são reveladores. Ao retratar o fascismo não como um monolito, mas como uma gama de respostas à crise colonial e capitalista racial, ele ajuda a desalojar o fascismo do impasse da analogia, fornecendo os recursos para entender efetivamente nosso presente histórico. Além disso, o exame de Toscano sobre a longa duração do fascismo refere-se à colonialidade do presente. Nas palavras de Cedric Robinson, ele “ressuscita eventos que foram sistematicamente apagados de nossa consciência intelectual”,5 e nos permite entender nossas condições presentes de uma nova maneira.
Notas:
1 Discurso sobre o colonialismo, Monthly Review Press, 1955/1972.
2 Walter Rodney, Como a Europa subdesenvolveu a África, Verso Books, 1972/2018.
3 Toscano, p34.
4 George Jackson, Sangue em Meu Olho, citado em Toscano.
5 Cedric Robinson, Uma Antropologia do Marxismo, Ashgate, 2001.