Milei vence. A Argentina segue em transe

O triunfo do “libertário” nas eleições legislativas de meio de mandato reconfigura a política argentina. Enquanto o peronismo vai ao divã, o país aprofunda uma nova forma de dependência – financeira, ideológica e simbólica – em relação aos Estados Unidos

Foto: REUTERS/Matias Baglietto
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No meio da tarde desta segunda-feira (27), com 99,3% das urnas apuradas, a Argentina já tinha praticamente consolidado o cenário de triunfo para o La Libertad Avanza (LLA), partido do presidente argentino Javier Milei, nas eleições legislativas de meio de mandato. A legenda obteve 40,7% dos votos totais para a Câmara dos Deputados, superando o Fuerza Patria, que obteve 34,9%. Na disputa pelo Senado, a vantagem foi de 42% a 36,9%.

Mesmo na Província de Buenos Aires, a maior do país e onde os peronistas haviam vencido as eleições legislativas provinciais por 14 pontos de diferença em relação aos governistas, o jogo se inverteu, ainda que a disputa ficasse parelha. A lista do LLA, liderada por Diego César Santilli, assegurou 17 cadeiras contra 16 do rol do Fuerza Patria, que tinha Jorge Enrique Taiana na cabeça. A coligação Províncias Unidas (PU), coalizão composta pelos governadores provinciais de Córdoba, Santa Fé, Corrientes, Jujuy, Chubut e Santa Cruz fracassou como “terceira via”, conquistando 7,4% dos votos para a Câmara e 2,1% para o Senado, enquanto a Frente de Izquierda teve, respectivamente 3,9% e 3,3%.

Com a renovação de metade das cadeiras de deputados e um terço das vagas de senadores, a aliança LLA e Proposta Republicana (PRO) conseguiu superar a marca de um terço da Câmara, com 107 dos 257 deputados, marca que garante que os vetos de Javier Milei não sejam derrubados na Casa, mas longe ainda de assegurar uma maioria que possa aprofundar as reformas do autodenominado libertário, até porque o Fuerza Patria segue com 98 parlamentares. No Senado, os aliados do presidente argentino têm exatamente um terço, 24 dos 72, mesmo número dos peronistas.

É um triunfo do governo Milei, levando-se em conta a série de reveses que a administração federal acumulou desde o início do mandato, em dezembro de 2023. Se a inflação foi reduzida, o corte de gastos imposto pelo governo afetou programas sociais, aposentadorias e manteve a economia estagnada, com o desemprego chegando a 7,6% em setembro, acima dos 5,7% de quando Milei assumiu. Além disso, escândalos políticos como o envolvimento do libertário em um episódio mal explicado (e mal investigado) de possíveis fraudes com a promoção de uma criptomoeda conhecida como $Libra – e as revelações sobre sua irmã e secretária da presidência, Karina Milei, apontada como suposta beneficiária direta de um esquema de corrupção envolvendo a devolução de verbas por meio da Agência Nacional para a Deficiência (Andis) – não foram suficientes para a vitória da oposição. Há muitos fatores que podem ajudar a explicar o que houve neste domingo, na Argentina.

A economia e a ajuda dos EUA

O fracasso das tentativas de “terceira via”, com o PU ou os Provinciales, conta um pouco da história da política local e sua polarização. Milei fez questão, durante a campanha, de ressaltar esse antagonismo buscando infundir no eleitorado o medo de um possível retorno do kirchnerismo, explorando uma rejeição que o movimento peronista em geral tem em boa parte da sociedade do país.

Nesse aspecto, talvez a própria vitória, por larga margem, dos peronistas nas eleições provinciais de Buenos Aires em setembro tenha ajudado a mobilizar esse sentimento contra os peronistas. “Como há 80 anos, o anti-peronismo continua sendo a identidade política mais intensa da Argentina, e a sequência eleitoral deste ano parece tê-lo ativado. Com efeito, devido ao seu peso eleitoral e ao resultado inesperado, as eleições na província de Buenos Aires no dia 7 de setembro funcionaram como um primeiro turno que despertou o povo anti-peronista adormecido”, avalia o jornalista e cientista político José Natanson, em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Cone Sur.

Natanson aponta ainda para uma variante do que seria um “voto econômico”, com nuances locais. “Uma das teorias mais recorrentes da ciência política é a que propõe que o comportamento eleitoral é guiado sobretudo pela percepção econômica, particularmente nos meses anteriores às eleições. Neste caso, porém, tanto as pesquisas de satisfação individual quanto os dados concretos de consumo vinham registrando uma queda (desde março) e um colapso (nos últimos dois meses)”, pontua. “Por um lado, evidentemente a estabilidade econômica, a baixa da inflação e o dólar barato (três coisas que são uma coisa só) continuam tendo uma enorme importância para a vida cotidiana das pessoas. Por outro lado, parece que entre os eleitores libertários prevaleceu a vontade de dar mais tempo ao governo, uma paciência inesperada na era da ansiedade e das redes sociais. As pesquisas qualitativas entre os eleitores de Milei captavam a ideia de que ele ainda merecia uma oportunidade. O governo, que as conhecia, acertou em seu slogan de não jogar o esforço pela janela.”

O professor sênior do Departamento de Política, Línguas e Estudos Internacionais da Universidade de Bath, na Grã-Bretanha, Juan Pablo Ferrero, detalha como esse impacto econômico pode ter ressoado em parte da população. “A instabilidade de longa data da moeda argentina, o peso, somada à frequente alta inflação, criou um sistema dual em que o peso é usado para transações diárias, mas o dólar é preferido para economias e compras maiores, como imóveis”, explica, em artigo no The Conversation. “E o governo Milei fez grandes esforços para controlar a taxa de câmbio, criando assim uma sensação temporária, porém palpável, de estabilidade pouco antes das eleições. Essa estabilidade foi crucial para eleitores castigados pela volatilidade.”

Contudo, a aparente e frágil estabilidade veio atrelada a um custo elevado, a forte dependência do governo argentino do apoio financeiro de Washington. O acordo de swap cambial de US$ 20 bilhões entre o Tesouro dos EUA e o Banco Central argentino foi formalizado em 20 de outubro e permite que o BC do país sul-americano possa trocar pesos por dólares diretamente com o Federal Reserve, garantindo liquidez em moeda estadunidense e evitando um possível colapso financeiro que o próprio mercado, “parceiro” de Javier Milei, já vislumbrava e precificava.

O cálculo eleitoral da medida não só era inegável como foi assumido pelo benemérito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que condicionou publicamente a continuação dessa ajuda a uma vitória de Milei, alertando: “Se ele perder, não seremos generosos com a Argentina”. Após o triunfo eleitoral de seu protegido, o republicano o parabenizou, mas, em declaração dada a jornalistas a bordo do Air Force, avião oficial da Casa Branca, fez questão de destacar o valor de seu apoio. “Ele teve muita ajuda nossa. Teve muita ajuda. Eu dei a ele um endosso, um endosso muito forte”, falou o mandatário estadunidense.

Juan Pablo Ferrero aponta para um outro aspecto deste apoio dado ao presidente argentino. “A intervenção aberta e decisiva do governo dos EUA marca uma mudança não vista na América Latina desde talvez a Guerra Fria. Ela sinaliza que a Argentina, e a América Latina de forma mais ampla, está de volta ao tabuleiro geopolítico”, pontua. “Para os EUA, trata-se menos de afinidade ideológica e mais de competição estratégica por recursos. A América Latina detém vastas reservas de recursos naturais, incluindo minerais críticos como o lítio, que são componentes essenciais da cadeia de suprimentos global de energia limpa.”

O ineditismo da forma como o governo dos Estados Unidos apoia a atual gestão argentina também foi evidenciado, mais uma vez publicamente e sem disfarces, em julho, quando o ainda não empossado à época embaixador dos Estados Unidos na Argentina, Peter Lamelas, pontuou que iria apoiar Javier Milei nas eleições e que atuaria para tirar espaço da China no país, garantindo que a ex-presidente Cristina Kirchner recebesse a “justiça que merece”. “Nós precisamos continuar apoiando a presidência de Milei durante as eleições de meio de mandato e do próximo mandato para construir uma melhor relação entre nossos dois países”, disse Lamelas, em sabatina na Comissão de Relações Exteriores do Senado estadunidense, em uma declaração que jamais poderia ser inserida em um contexto de relações diplomáticas tidas como usuais entre dois países autônomos.

“O apoio de Washington a Milei é um movimento para desafiar a crescente influência econômica e política da China na região. Isso garante que um provedor de recursos e parceiro comercial chave permaneça firmemente na órbita dos EUA. Milei, por sua vez, está ansioso para facilitar o investimento americano em setores-chave como petróleo, gás e mineração. Todos esses setores são centrais para seus planos de recuperação econômica”, diz Ferrero.

Os dilemas da oposição

Fechadas as urnas, o peronismo começou a refletir sobre a derrota e as divisões – e atribuições de culpa começaram a ser distribuídas. O governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, foi criticado por ter separado o processo eleitoral local do nacional. Tradicionalmente, as eleições legislativas provinciais vinham sendo realizadas junto com as nacionais ou ao menos no mesmo período. Mas, neste ano, Kicillof anunciou que sua província realizaria o pleito local em setembro, por alegadas razões logísticas, operacionais, e de organização eleitoral. A mudança já havia sido criticada pela ex-presidenta Cristina Kirchner.

Com a alteração, diversos peronistas, em especial os adeptos do kirchnerismo, atentaram para o fato de haver pouca campanha nas ruas da província de Buenos Aires, acusando ainda uma suposta falta de comprometimento de lideranças comunitárias e de alguns prefeitos. Do lado dos apoiadores de Kiciloff, as críticas foram direcionadas ao fato de muitos nomes escolhidos para as listas não terem, supostamente, proximidade com lideranças locais, o que teria provocado um reduzido engajamento. A lista de deputados foi elaborada sob o comando de Maximo e Cristina Kirchner.

O prefeito de Ezeiza, Gastón Granados, afirmou nesta segunda-feira (27) que teria faltado “representatividade territorial” nas listas de deputados nacionais da Fuerza Patria e o eleitorado bonaerense “não mostrou interesse” em uma chapa sem dirigentes das seções eleitorais.

Para José Natanson, além dos aspectos circunstanciais e da conjuntura mais imediata, é necessário abordar as mudanças do que ele chama de “paisagem social permanente”, onde se dá um “processo lento mas progressivo de formação de um novo tipo de sociedade, fragmentada e quebrada após quinze anos de persistente estagnação econômica, pandemias e secas”.

Ele chama a atenção para uma parcela da sociedade “‘lumpenizada’, que vive desconectada do Estado, e abriga a nova subjetividade de um povo mileísta cuja adesão ao capitalismo não é resultado de uma reflexão ideológica, mas de uma experiência vital determinada pelo lugar que ocupa na economia e no mercado de trabalho – algo que, em seu tempo, os sociólogos, acostumados a olhar para baixo, e os antropólogos, habituados a lidar com o alheio, souberam captar bem”.

Diante deste cenário, o peronismo precisaria produzir, segundo ele, “uma renovação programática urgente, pois, caso contrário, pode ficar condenado a um futuro de irrelevância similar ao que enfrenta o radicalismo”, diz, fazendo referência à União Cívica Radical (UCR), agremiação histórica que, nas eleições deste domingo, elegeu apenas um deputado. “E isso, independentemente do que acontecer: mesmo que o plano econômico de Milei acabe afundado em sua própria inconsistência, mesmo que o dólar dispare e a inflação rebote, em lugar nenhum está escrito que o que virá a seguir será necessariamente o peronismo. Milei pode ser sucedido por um líder de direita clássica, um chefe de cozinha, Agustín Laje, um policial, outro Milei”, pondera.

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