Internacional Antifeminista, uma radiografia
Por que a cruzada contra dissidências sexuais é chave para o projeto político da ultradireita global? Como ela constrói alianças e infiltra-se até em organizações de Direitos Humanos? Qual pode ser a resposta das esquerdas, até agora inerte?
Publicado 17/01/2025 às 19:15 - Atualizado 17/01/2025 às 19:17
Por Núria Alabao, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues
As guerras de gênero tornaram-se globalizadas e são impulsionadas por um poderoso movimento social, político e religioso transnacional. Com “guerras de gênero” fazemos referência aqui a conflitos políticos e culturais que se centram em questões de gênero e sexualidade – questões como os direitos sexuais e reprodutivos, os direitos de dissidência sexual, a educação sexual ou a violência de gênero, entre outros. É claro que estas batalhas não são meras cortinas de fumaça, mas inerentes à luta pelo poder e aos interesses dos projetos políticos que as impulsionam, que, em última análise, são funcionais para uma relegitimação das hierarquias de classe, gênero e raça.
Uma nova onda de ativismo ultraconservador global estabeleceu o “gênero” como uma frente de batalha definitiva. O movimento “antigênero” é suficientemente flexível para incorporar uma variedade de objetivos, mas suficientemente coerente para ser um movimento e não apenas uma série de campanhas não relacionadas. Embora em muitos ele lugares possa vestir-se com a roupagem da oposição ao neoliberalismo e outras, abraçá-lo plenamente.
Quem são os atores que coordenam?
O universalismo defendido pela identificação coletiva cristã provou ser um recurso útil para a transnacionalização.
Os agentes internacionais que impulsionam estas guerras de gênero são muito diversos. Por um lado, as instituições religiosas têm um papel destacado. A direita cristã internacional é na verdade a mais produtiva no que diz respeito à mobilização de recursos, às suas redes organizacionais, à construção da identidade e à produção cultural do movimento. Neste sentido, os atores religiosos funcionam plenamente como qualquer outra organização política. Aqui podemos incluir igrejas e clérigos, comunidades seculares de ativistas, bem como centros de investigação, universidades e ONGs transnacionais que afirmam ser baseadas na fé.
O universalismo defendido pela identificação coletiva cristã provou ser um recurso útil para a transnacionalização. A Igreja Católica, por exemplo, tem grande influência em várias áreas do globo graças à sua estrutura centralizada, embora também tenha organizações próprias que vão além do nível nacional – e que são religiosas e seculares: Opus Dei, Kikos, Legionários de Cristo, organizações anti-aborto, redes universitárias próprias, etc. As igrejas ortodoxas do leste europeu, por sua vez, baseiam a sua influência política e social basicamente na sua estreita relação com os Estados – onde governam a ultradireita –, algo muito evidente no patriarcado de Moscou.
Nas últimas décadas, também temos assistido ao crescimento do poder do evangelical, especialmente do estadunidense – com fortes laços políticos com a direita republicana e importantes recursos econômicos – como ocorreu recentemente nas eleições dos EUA com o seu apoio a Trump. Na verdade, este candidato mostrou-se repetidamente um mestre sair pela tangente quando questionado sobre a sua posição sobre o aborto, temendo que isso pudesse tirar votos num país que, apesar de tudo, é majoritariamente favorável a este direito – sobretudo as mulheres. Porém, ele teve que deixar de engambelar e assumir seus compromissos com seus financiadores evangélicos, que também mobilizam muitos votos, por isso acabou esclarecendo que se opõe às leis mais permissivas sobre o aborto, com argumentos como o de que em alguns estados democratas até “o bebê pode ser executado após o nascimento”.
A direita cristã estadunidense também tem uma poderosa capacidade de ação na Europa, como observamos num artigo anterior. Estas organizações estadunidenses bem financiadas – como a ADF International ou ACLJ – realizam campanhas jurídicas e de lobby na UE com o objetivo de influenciar a legislação sobre os direitos das mulheres e a dissidências sexuais.
Os evangélicos, especialmente uma parte significativa do neopentecostalismo, têm uma influência crescente na América Latina, onde intervêm ativamente na política institucional, tentam destituir e substituir presidentes ou apoiar diretamente determinados candidatos como aconteceu com Jair Bolsonaro no Brasil.
Temos que lembrar que são nacionalistas que nem sempre estão do mesmo lado nas frentes internacionais em disputa.
Outros atores relevantes são os políticos ultraconservadores e de extrema direita, muito diferentes entre si, mas que por vezes cooperam internacionalmente para reforçar certos blocos de poder. Muitas vezes os seus interesses não convergem, as suas diferenças são aguçadas pelo nacionalismo que têm como bandeira, mas conseguem agrupar-se mais facilmente quando falam de questões de gênero, o que parece ser a “cola” definitiva. As questões de gênero são, de fato, o principal espaço de coordenação discursiva e material desta pluralidade de agentes. Nos textos que produzem ou em declarações de políticos e membros de diferentes igrejas, percebe-se uma semelhança radical em termos de linguagem, símbolos e narrativas. Há autoras que utilizam o conceito de “coligação discursiva” para analisar estas formas de articulação política, onde atores com pontos de vista ideológicos, filosóficos e religiosos díspares podem comunicar e produzir intervenções significativas caso partilhem certas narrativas. Essa é a principal função de conceitos como “ideologia de gênero”, “defesa da família natural” ou “valores tradicionais”.
Temos que lembrar que são nacionalistas que nem sempre estão do mesmo lado nas frentes internacionais em disputa. Por exemplo, no Parlamento Europeu existem dois grupos diferentes que reúnem a extrema direita e que, por vezes, se confrontam. Outro caso: o conflito bélico na Ucrânia. Após a invasão russa, os Estados Unidos e a Europa encontraram-se na linha da frente de batalha contra a Rússia quando, até essa guerra, existia uma forte aliança de interesses entre evangélicos estadunidenses e empresários russos ortodoxos. Algo similar acontece com a religião: a internacional reacionária produziu alianças inesperadas entre religiões, não só dentro do próprio cristianismo – católico, ortodoxo ou neopentecostal – mas até estabelecendo acordos contingentes com o Islã, contornando na ponta dos pés a contradição de que muitos dos partidos europeus de extrema direita têm propostas claramente islamofóbicas.
Cronologia de uma intervenção global
As guerras de gênero não são um fenômeno novo. Embora existam precedentes anteriores, foi a partir da década de 1970 nos Estados Unidos que começaram a ser utilizados de forma semelhante à atual com a ascensão do que se chamou de Nova Direita, que apoiava Ronald Reagan. Contudo, a sua dimensão transnacional só descolou em meados da década de 1990.
As primeiras guerras internacionais de gênero giraram em torno do casamento gay e da igualdade de direitos para as dissidências sexuais na Europa.
A virada do milênio assistiu ao crescimento progressivo da articulação de uma vasta rede internacional de atores que se originou como forma de reação contra o movimento pelos direitos das mulheres. Isto aconteceu a partir da década de 1990, quando organizações internacionais, como a ONU, assumiram a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. A partir de então, houve um impulso progressivo por parte de organizações anti-direitos nestas sedes internacionais de direitos humanos que priorizaram serem credenciadas como fontes consultivas oficiais para aumentar as suas possibilidades de intervenção.
Embora cada movimento nacional tenha sido desencadeado por debates específicos de cada contexto, as primeiras guerras de gênero com ressonância internacional giraram em torno do casamento homossexual e da igualdade de direitos para as dissidências sexuais na Europa – entre 2010 e 2015. O precedente foram as marchas religiosas e políticas contra o casamento gay na Espanha em 2005, seguidas pelo sucesso do Manif pour Tous na França em 2012. A partir daí, movimentos “cidadãos” semelhantes ocorreram em países como Alemanha, Itália, Polônia, Rússia e Eslováquia. A partir de 2010, o movimento antigênero também se desenvolveu na América Latina – a Argentina começou em 2010, o Brasil em 2013 e outros países latino-americanos a partir de 2016, como Colômbia, México, Chile ou Bolívia. Além disso, estes atores têm promovido os mesmos discursos na África e na Ásia, baseados no conceito guarda-chuva de “ideologia de gênero”.
Nessa mesma década da década de 2010, a dimensão transnacional acelerou juntamente com a intensidade das guerras de gênero quando saídas de extrema direita, ou aquelas com posições de gênero muito reacionárias, venceram eleições ou assumiram posições institucionais relevantes. Assim, Viktor Orbán tornou-se primeiro-ministro em 2010, Donald Trump em 2017 e Bolsonaro em 2019. Putin entende a sua importância política em 2013 e começa a falar sobre valores tradicionais e, nesse mesmo ano, aprova a lei contra a “propaganda” homossexual.
Eles precisavam encontrar um ecossistema cultural favorável e crescer onde os movimentos sociais são fracos.
Além da influência russa e estadunidense, poderíamos falar das conexões europeias, por exemplo, aquela que vincula grupos anti-direitos em Espanha e na América Latina. O Vox tenta tornar-se uma ponte entre as ultradireitas dos dois lados do Atlântico, tal como o fazem uma miríade de associações, entre as quais se destaca a CitizenGo – a filial internacional da Hazte Oír. Portanto, as questões de gênero não podem ser separadas da promoção de certos candidatos de direita ou ultradireita e da luta “contra o comunismo” na região – muitas destas opções políticas são centrais para apoiar projetos extrativistas ou neoliberais. Como exemplo, a Fundação Valores e Sociedade, fundada em 2011 por Jaime Mayor Oreja, ex-ministro do PP, que tenta influenciar a América Latina apoiando-se na Rede Política para Valores, responsável pela cúpula ultradireitista realizada recentemente no Senado espanhol.
Esta organização é presidida pelo candidato presidencial chileno em 2023, José Antonio Kast, um ultraconservador que fez declarações como: “A pílula que privilegia o prazer acima de tudo é a pílula do egoísmo; é a pílula que faz a sexualidade viver no medo de um ser indefeso que está prestes a nascer…” ou “A família nunca prejudicou nenhuma sociedade no mundo; não podemos dizer o mesmo sobre o divórcio.” Esta rede apresenta-se como uma versão europeia do Congresso Mundial da Família, provavelmente a principal organização global de grupos conservadores, da qual recebe financiamento.
Apesar da implantação significativa de meios de comunicação e conexões globais, não devemos perder de vista o fato de que, apesar da sua propaganda – que normalmente exagera a sua própria capacidade – estas redes internacionais não são onipotentes. A existência de recursos materiais e suas redes servem para promover suas ideias, porém, precisam encontrar um ecossistema cultural favorável e crescer onde os movimentos sociais são mais fracos. Portanto, há uma batalha acontecendo.
Ferramentas de uma ofensiva
Delineamos os principais atores que impulsionam as guerras de gênero, mas também é necessário analisar algumas das suas formas de intervenção.
De um lado estão as tarefas de lobby, sobretudo as realizadas em organizações supranacionais como a ONU ou instituições europeias. Mas estes agentes internacionais também utilizam o direito como arma, por exemplo quando recorrem a litígios estratégicos. Às vezes, chegam ao ponto de se intrometer na política nacional em determinados países para promover a aprovação ou modificação de leis. Aqui descobrimos que, se a oposição aos direitos das mulheres e aos direitos dos dissidentes sexuais foi primeiro de natureza reativa – o trabalho centrou-se em reagir aos avanços como aconteceu com o casamento igualitário –, hoje envolve também a promoção das nossas próprias normas, por exemplo de “proteção” da liberdade religiosa. Mas também há tentativas “preventivas” de constitucionalizar posições anti-direitos, como quando se trata de definir legalmente o casamento como a união entre um homem e uma mulher – entendido como “biológico” e não de forma transinclusiva. Sobre esta questão analisaremos o caso do referendo romeno de 2018 que nos permite compreender como as suas campanhas são construídas.
Tarefas do lobby
O trabalho realizado pelos grupos de pressão está estabelecido há anos e pode ser realizado ao nível dos parlamentos nacionais ou de instituições internacionais. Ocorre na ONU, mas também no Parlamento Europeu, no Conselho da Europa, na Agência dos Direitos Fundamentais da UE em Viena ou no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em Estrasburgo.
Desde 2010, as instituições europeias registaram um aumento muito significativo na atividade de grupos de pressão religiosos. Igrejas e organizações confessionais realizaram mais reuniões políticas em Bruxelas do que grandes empresas como a Google ou a a gigante do tabaco Phillip Morris. Os dados refletem a preponderância do cristianismo – que inclui católicos e protestantes – cuja capacidade de influência é apoiada por um sólido apoio econômico. O lobby da Comissão das Conferências Episcopais da Comunidade Europeia (Comece) contava um orçamento de mais de um milhão de euros em 2019, segundo dados do Registo de Transparência da UE.
Além disso, conseguiram alguns privilégios que lhes permitem influenciar as instituições da UE sem terem de tornar pública esta atividade, embora os restantes grupos de pressão sejam obrigados. Alguns dos lobbies mais proeminentes são o Profissionais Espanhóis pela Ética, C-Fam, European Dignity Watch, New Women for Europe, o Observatório de Intolerância e Discriminação contra os Cristãos na Europa ou aqueles ligados ao fundamentalismo cristão estadunidense – a Alliance Defending Freedon estadunidense e o European Center for Law and Justice.
O Direito como arma da ofensiva
O movimento estadunidense foi o primeiro a utilizar o Direito desta forma. Lembremos que foram ativadas para lutar contra os avanços feministas/LGTBIQ, especialmente na década de 1980 e, internacionalmente, na década de 1990. Portanto, já possuem trinta anos de experiência e conhecimento técnico que podem adaptar aos contextos locais. Assim como uma gama de desenvolvimento de narrativas para traduzir suas posições ultraconservadoras para a linguagem dos direitos e até dos direitos humanos. É significativo neste sentido o conceito de “liberdade religiosa”, profusamente utilizado pela direita estadunidense e que, juntamente com a “liberdade de expressão”, tem ganhado importância nos últimos anos. Em lugares como os EUA, conseguiram redefinir ambas as liberdades para permitir que os fundamentalistas contornassem as leis contra a discriminação na esfera pública, particularmente contra as dissidências sexuais, como explica Wendy Brown. Assim, se uma empresa se recusar a oferecer um produto ou serviço, por exemplo a um casal homossexual, pode alegar que esta ação faz parte do seu direito à liberdade de expressão ou de religião. Este argumento também é utilizado para defender grupos antiabortistas que se apresentam como centros de planeamento familiar para tentar convencer as mulheres a não fazerem aborto, mesmo com informações falsas. Para Brown, o triunfo destes argumentos jurídicos nos tribunais estadunidenses mostra um mundo atormentado por fake news, em que o cristianismo conservador, a propriedade e a riqueza são disfarçados de liberdades para atacar a democracia política e social.
O perigo é que os direitos civis fundamentais estejam estão sendo ameaçados e, para além dos EUA, já existem casos em Estrasburgo em que estes grupos promovem litígios estratégicos apresentando-se como vítimas de discriminação. São cada vez eles utilizam conceitos como “cristofobia”, com os quais tentam argumentar que são impedidos de desenvolver as suas vidas de acordo com a sua fé e valores no mundo ocidental. Também estamos vendo como instrumentalizam a seu favor os chamados “crimes de ódio”, que foram supostamente promovidos para proteger as minorias.
Neste quadro, aludem a um suposto “consenso progressista” que os discriminaria, por exemplo, quando defendem políticos que se recusam a celebrar casamentos homossexuais. Ou num caso famoso que aconteceu na Suécia, onde uma parteira se recusou a ajudar uma mulher lésbica a dar à luz. Além disso, através destes mesmos argumentos, ampliam o direito dos profissionais de saúde de se recusarem a participar em atividades que violem as suas crenças religiosas ou morais – como um farmacêutico que se recusa a vender a “pílula do dia seguinte”. As leis que originalmente se destinavam a proteger as minorias religiosas são agora manipuladas para contornar a legislação contra a discriminação ou a justiça mais básica.
Um referendo na Romênia
Tomemos o exemplo da Romênia e do seu referendo de 2018 sobre a reforma constitucional. O objetivo era fechar a possibilidade de no futuro aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo – e de outros direitos associados, como a adoção – numa tentativa de incluir na Constituição uma definição de casamento como “a união entre um homem e uma mulher”. Para conseguir isso, foi lançada uma iniciativa legislativa popular – outra das suas ferramentas favoritas – que obteve os três milhões de assinaturas necessárias. Foi promovida a partir de 2015 por um grupo da sociedade civil denominado Coligação pela Família, que se declarou “não religioso” e que obteve o apoio da coligação no governo chefiada pelo Partido Social Democrata (PSD).
A manobra do PSD pode ser enquadrada na clássica guerra de gênero como uma estratégia temporária para obter apoio popular em tempos difíceis. Por um lado, pela sua filiação na social-democracia, este partido estava simbolicamente ligado à esquerda, ou seja, ao universo do antigo partido comunista, de acordo com os esquemas políticos da região. O apoio aos direitos das dissidências sexuais está aí relacionado com a adesão ao marxismo, que produz rejeição numa parte significativa da população. Por outro lado, assume-se que nas zonas rurais, onde o PSD tem mais apoio, as pessoas mostram valores mais conservadores e foi a elas que esta medida foi dirigida. Naquela época, Liviu Dragnea, presidente do Congresso, estava envolvido em vários casos de corrupção, enfrentando um problema de falta de legitimidade e perda de apoio popular. Alguns meses antes, ocorreram fortes protestos que foram duramente reprimidos. Ao mesmo tempo, a UE acusou o governo de atacar a divisão de poderes devido à sua pressão sobre o poder judicial – enquadrando-a nos ataques que também estavam ocorrendo na Polônia e na Hungria. Neste contexto, os agentes anti-gênero promoveram a iniciativa do referendo constitucional que o governo estava disposto a apoiar. Chegou até mesmo a modificar a lei eleitoral para reduzir os requisitos de participação necessários para mudar a Constituição: estes passaram de 50% para 30%.
A Coligação para a Família era uma plataforma constituída por organizações fundamentalistas de vários tipos, especialmente a APOR – uma Associação de Pais a favor da religião semelhante à CONCAPA [Confederación Católica Nacional de Padres de Familia y Padres de Alumnos] espanhola – ligada à Arquidiocese de Bucareste, ou seja, contava com o apoio da Igreja Ortodoxa – majoritária na Romênia. Outras ONGs religiosas também participaram, como a Associação de Famílias Católicas Romenas e outros grupos ultra anti-aborto, como Vita București e Alianța Familiilor – também favoráveis às terapias de conversão. A plataforma contou com forte apoio de organizações ligadas à direita cristã estadunidense: Alliance Defending Freedom (ADF), Liberty Counsel, Congresso Mundial de Famílias (WCF) e Centro Europeu de Direito e Justiça (ECLJ). Estas organizações forneceram argumentos jurídicos para o processo legal, patrocinaram várias conferências no parlamento, promoveram as suas próprias campanhas e fizeram lobby pela mudança .
A ADF e o Liberty Counsel apresentaram, cada um, documentos consultivos ao Tribunal Constitucional – Amicus curiae –, que teve de decidir sobre a constitucionalidade do referendo. O Liberty Counsel tinha 68 páginas e fornecia uma lista de casos com argumentos jurídicos destinados a demonstrar que o “casamento tradicional” é uma instituição anterior ao Direito e “não pode ser modificado por lei”. Toda a produção se baseou no que se tem chamado de “ideologia de gênero”, influenciando argumentos supostamente extraídos da ciência e de caráter irrefutável. Explicava que negar que o casamento seja a união entre um homem e uma mulher implica renunciar à verdade em favor de uma “construção social artificial de natureza ideológica (…) Essa ideologia, por sua vez, baseia-se na experimentação humana, especificamente no abuso de crianças e numa concepção demográfica tendenciosa que visa mudar a ordem social estabelecida”.
O seu relatório salientava “os efeitos nocivos do ‘casamento’ entre pessoas do mesmo sexo num punhado de nações que tentaram esta experiência social” e falava contra a revolução sexual. Estes argumentos foram fundamentais para refutar os relatórios apresentados por diversas organizações internacionais de ativismo LGTBIQ, como a ILGA Europa e a Anistia Internacional. Também utilizou toda a panóplia dos argumentos habituais contra o que chamam de “colonialismo ideológico”: “A Romênia e outras nações tradicionais da Europa têm sido submetidas à pressão externa para abandonarem a sua herança, tradições e soberania em favor da agenda homossexual promovida a partir do estrangeiro”, explicam em seu site.
A campanha foi acirrada e misturou fale news e pânicos morais sobre a infância ameaçada: “Se você não vai votar, dois homens poderiam adotar seu filho”, dizia a propaganda da Coalizão pela Família. Contudo, o projeto de reforma não atingiu a participação mínima necessária. Apenas 21% do eleitorado votou, por isso não foi aprovado. Desde então, foram promovidos referendos semelhantes em outros países da região, como a Eslovênia, em 2015, com o apoio do ADF. Neste caso também não foi aprovado – pouco mais de 63% votaram contra e apenas 36,5% a favor. Contudo, mesmo que as propostas ultradireitístas não avancem, as guerras de gênero lançadas nestes processos são úteis para promover o quadro conservador e dominar a agenda enquanto durarem. Além disso, introduzem no debate público representações negativas das dissidências sexuais e promovem a sua desumanização, para que estas pessoas vejam agravada a discriminação cotidiana que sofrem, que também pode ser vivida sob a forma de violência individual ou coletiva – como acontece nos casos levados a cabo por movimentos neonazistas e similares que são apoiados por este marco do debate público.