Golpe interrompido: Qual seria o papel das polícias?

Um general do Comando Terrestre era peça importante na trama golpista. Seu papel: coordenar as PMs, inclusive com eventual espionagem sobre governos estaduais. Revelação obriga a perguntar: pode a democracia conviver com a militarização da segurança pública?

Foto: Du Amorim/A2 FOTOGRAFIA
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Nas últimas semanas, novas revelações de Mauro Cid sobre a tentativa de golpe orquestrada por Jair Bolsonaro com militares em 2022 recaíram sobre um dos Comandos do Exército Nacional. Segundo relatório da PF, o General Estevam Theophilo, na época à frente do Comando de Operações Terrestres (COTER), teria se colocado à disposição de Bolsonaro para viabilizar a estratégia golpista em uma reunião com o ex-presidente em dezembro daquele ano.

Embora não conte com uma tropa própria, conforme Portaria de 2018, o COTER “tem por missão orientar e coordenar o preparo e o emprego da Força Terrestre, bem como elaborar e manter atualizada a Doutrina Militar Terrestre no nível e do Estado-Maior do Exército”.

O que pouco se fala é que o COTER atua, também, nos dois grandes elos que subordinam as polícias militares estaduais ao Exército Nacional: a Inspetoria Geral da Polícia Militar (IGPM) e o Sistema de Informações do Exército.

Para além de meramente apontar que, até hoje, a PM ainda é caracterizada como força reserva e auxiliar das Forças Armadas e sujeita à justiça e a regimentos militares, compreender estes outros dois vínculos é essencial para desarmarmos a bomba golpista-militar legada pela ditadura ao Brasil e compreender os movimentos de politização policial vistos nos últimos anos no país. Falemos um pouco mais deles.

A Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM)

A Inspetoria Geral das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares (IGPM) foi criada nos anos iniciais da ditadura civil-militar, a partir do Decreto-Lei nº 317 de 1967. Desde o início, a lei estabeleceu que ela seria ocupada por um general de brigada, exercendo funções de coordenação, inspeção, organização, instrução de efetivos, armamentos e material bélico das PMs. Os cursos de formação de oficiais também ficaram a cargo de convênio com a IGPM.

Mas este Decreto não tratou exclusivamente dela. Na verdade, o traço mais importante estava em seu artigo 2º: as polícias militares, a partir dali, passavam a ter como competência oficial a execução de policiamento ostensivo. Dessa forma, nos anos seguintes, o Brasil consolidaria o modelo no qual a sua polícia cotidiana, que diariamente se coloca em contato com a população nas ruas, seria militarizada e, de certa forma, subordinada ao Exército Nacional por meio da Inspetoria criada.

Em 1969, o Decreto-Lei 667 não só elevaria a IGPM ao Estado-Maior do Exército como aprofundaria este modelo, definindo que o policiamento ostensivo passaria, então, a ser exclusividade das polícias militares estaduais. Como efeito cascata várias forças públicas e guardas estaduais e municipais foram extintas, unificadas sob as fortificadas PMs.

Aprovando o chamado R-200, regulamento geral das polícias militares de todo o país, o Decreto 88.777 de 1983 especificou ainda mais as atribuições do IGPM, bem como estabeleceu uma subordinação ainda mais forte das polícias estaduais ao Estado Maior do Exército também por meio dos Comandos Militares de Área. Um regulamento extenso que, novamente, vincula e subordina a instrução, a organização e as diretrizes gerais das PMs ao Exército Nacional.

A IGPM passou por algumas poucas mudanças organizacionais ao longo da ditadura, até que, já após a redemocratização, no início de 1991, foi diretamente subordinada ao Comando de Operações Terrestres do Exército, criado meses antes. Uma tentativa de desconcentrar suas atribuições foi abortada em poucos meses em 1998. Atualmente, ela é uma divisão da 3ª Subchefia do COTER.

Em 2023, ela foi novamente consagrada de forma oficial na nova Lei Orgânica das Polícias Militares e Bombeiros Militares, incumbida de centralizar todos os assuntos da competência do Comando do Exército relativos às PMs e BMs, promover visitas de orientação técnica e registrar dados, dotação, organização, dos efetivos, armamento e material bélico das forças estaduais.

Suas funções e seus objetivos estão um pouco mais claros na Portaria nº 77 de 2018, do Estado Maior do Exército, disponibilizada na página da Inspetoria. Ela aprova a “Diretriz para o Estabelecimento do Plano de Participação do Exército Brasileiro no Fortalecimento das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares”.

Tendo o objetivo geral de “oferecer capacidades às PM e CBM a fim de auxiliá-las a cumprir sua missão constitucional”, a Portaria ainda elenca 5 objetivos específicos:

  1. Estreitar vínculos entre o Exército Brasileiro e as PM e os Corpos de Bombeiros Militares.
  2. Proporcionar ao Comando de Operações Terrestres (COTER) e aos Comandos Militares de Área o acompanhamento da situação das PM e dos CBM, tendo em vista o emprego do EB na segurança pública.
  3. Futuramente, propor, por meio das Assessorias Parlamentares do Ministério da Defesa e do Comando do Exército, a implementação de ações estratégicas que envolvam os Poderes Executivos e Legislativos para possibilitar o fortalecimento das PM/CBM.
  4. Cooperar com o Ministério Extraordinário da Segurança Pública para o fortalecimento das PM/CBM.
  5. Criar condições a fim de facilitar a aquisição de material controlado (bélico ou não) por parte das Corporações”.

Prevendo um alinhamento estratégico que inclui o aperfeiçoamento de operações de GLO e interagências, a Portaria delega boa parte das atribuições de coordenação destas atividades do Estado-Maior do Exército ao COTER e propõe a cooperação do Exército com as PMs nas áreas de relacionamento institucional, capacitação, pessoal, logística, operações, comunicação social e inteligência.

Não à toa, são comuns as notícias de visitas de orientações técnicas do COTER, por meio da IGPM, a batalhões das polícias militares, publicadas nos sites dos Exércitos e das próprias forças estaduais.

Uma tabela exposta1 na página oficial chega a listar, sem datas, várias atividades realizadas no âmbito deste plano de apoio às polícias estaduais, tais como um estágio de instrutor e monitor de tiro no MT, a utilização da estrutura de treinamento para adestramento em PE, AL e RN, treinamentos de combate urbano e tiro no CE e PI ou um estágio de metodologia de planejamento de operações em SP.

Um tipo de atividade se destaca das outras, porém. Ao menos no período desta lista, o Exército realizou 5 reuniões sistêmicas de inteligência (em AL, SE, BA, CE e PE), além de oferecer um curso avançado de inteligência para sargentos na Escola de Inteligência Militar do Exército em Brasília. Aqui, chegamos ao segundo elo entre Exército e polícias militares.

O Sistema de Informações do Exército e a inteligência da PM

Diferente da IGPM, o vínculo entre as polícias militares e o Sistema de Informações do Exército é um pouco mais obscuro. O histórico de relações entre os trabalhos de inteligência das Forças Armadas e das polícias militares, porém, já é longo no Brasil. Desde a OBAN (Operação Bandeirante) em 1969, passando pelo DOI-CODI, fundado no ano seguinte, sabemos que essa cooperação é real.

Talvez a primeira legislação que tenha deixado este vínculo mais claro fora o R-200 (já citado acima) aprovado em 1983. Ele estabeleceu que “as Polícias Militares integrarão o Sistema de Informações do Exército, conforme dispuserem os Comandantes de Exército ou Comandos Militares de Área, nas respectivas áreas de jurisdição”.

Não está clara, porém, de que forma institucional se dá esta integração, principalmente pelo fato de que as variadas unidades do Exército possuem suas próprias divisões de inteligência. Mas podemos perceber que está estabelecido que, de alguma forma, as polícias militares integram um sistema central de inteligência do Exército Nacional.

Vale dizer que, no meio militar, os termos “inteligência” e “informação” normalmente estão vinculados. Em 1967, por exemplo, o ditador Costa e Silva criou o Centro de Informação do Exército (CIE), diretamente subordinado ao Comandante Superior do Exército. Em 1992, o presidente Itamar alterou o nome do CIE para CIEx (Centro de Inteligência do Exército) e o vinculou ao Estado Maior.

Em um manual de campanha2 sobre comando e controle publicado em 2015, o Exército deu a seguinte definição aos Sistemas de Informações: “sistema que visa a suprir a necessidade de aquisição de informações em qualquer situação para coleta de dados e, subsequentemente, para produção de inteligência”.

O mesmo manual nos oferece um organograma que permite compreender melhor a localização deste sistema no Exército. O Sistema de Comando e Controle do Exército (SC2EX) possui 3 subsistemas, entre eles, o Sistema de Informações do Exército, chamado de SINFOEx. Este, por sua vez, é composto pelo sistema de informações operacionais terrestres (SINFOTer) e pelo sistema de informações organizacionais do Exército (SINFORGEx).

Segundo o manual, o SINFORGEx alimenta o SINFOTer com os dados necessários para o preparo e o emprego das forças terrestres, enquanto o SINFOTer tem justamente o COTER, alvo da delação golpista de Mauro Cid, como seu órgão central.

Já o regulamento3 do Estado-Maior do Exército aprovado em 2022 estabelece à sua 2ª Subchefia, responsável pela informação e pelo comando e controle, a direção geral do Sistema de Informação do Exército, do Sistema de Comando e Controle do Exército e do Sistema Governo Digital em áreas como inteligência militar, operações psicológicas, operações de informação, entre outras, além de estabelecer ligação técnica com o CIEx.

É interessante notar que todos estes sistemas de informação e inteligência são acompanhados pela previsão do trabalho “interagências” realizado pelo Exército na área. Na Diretriz4 Organizadora do Sistema Estratégico de Comando e Controle do Exército (SEC²Ex), uma de suas premissas é “assegurar a interoperabilidade conjunta, combinada e interagências, contribuindo para a atuação do Exército em todos os domínios”.

Um dos órgãos centrais nesse trabalho de cooperação entre as diversas agências de segurança do país é justamente o COTER, ao qual as diretrizes incumbem “orientar, supervisionar e avaliar os aspectos de C² relativos às operações singulares, conjuntas, combinadas e em ambiente interagências” e “exercer a gestão do SINFOTER, coordenando com o DCT (Departamento de Ciência e Tecnologia) as medidas necessárias à sua evolução”.

Como podemos ver, há um amplo sistema de informações e inteligência do Exército que, oficialmente, se apoia no trabalho de cooperação entre as diversas forças de segurança pública do país. Somente com as polícias militares, porém, é observado um grau de subordinação, conforme as leis já citadas que estabelecem o IGPM e a integração ao Sistema de Informações do Exército.

E esta subordinação foi substancialmente qualificada nos últimos anos. Com o sucateamento cada vez mais acelerado das polícias civis estaduais, às quais incumbe verdadeiramente as funções de investigação, o Brasil tem experimentado um inchaço funcional das polícias militares.

Em São Paulo, por exemplo, este ano já tivemos: 1) a interferência do Centro de Inteligência da PM no processo eleitoral da capital, com a reprodução de um suposto “salve eleitoral” do PCC prejudicando a candidatura de Boulos; 2) a permissão para a PM lavrar termos circunstanciados (ainda em debate após polêmicas); e 3) a megaoperação “Fim da Linha”, na qual o secretário de segurança pública envolveu apenas a PM e o Ministério Público, excluindo a Polícia Civil (real responsável pela função).

Mas os casos paulistas são meramente exemplificativos. As ações de inteligência realizadas pela PM já são de âmbito nacional, tendo sido consagradas de vez na nova Lei Orgânica das Polícias Militares. Ela estabeleceu como competência das PMs estaduais coordenar e executar “ações de inteligência e contrainteligência destinadas à execução e ao acompanhamento de assuntos de segurança pública, da polícia judiciária militar e da preservação da ordem pública”.

Não é à toa que o COTER, por meio da IGPM, tenha uma agenda cheia de comparecimento a Batalhões de polícias militares estaduais de todo o país para atividades de cooperação que envolvem não apenas treinamento militar e fiscalização, mas também atividades voltadas à inteligência.

Zaverucha, especialista em questões militares e de segurança pública, escreveu o seguinte sobre a PM no ano passado: “seus serviços de inteligência (P-2) continuam, tal qual durante o regime militar, a fazer parte do sistema de informações do Exército, conforme dispuserem os Comandos Militares de Área nas respectivas jurisdições. Isso significa que as PMs são obrigadas, por lei, a passar as informações coletadas através do chamado ‘canal técnico’ ao comandante do Exército. Ou seja, tal comandante possui informações sobre o próprio governador de Estado, pondo em xeque o princípio federativo. E mais: não há qualquer controle das Assembleias Legislativas Estaduais sobre a P-2”5.

Pacto Federativo?

Tudo isso nos leva a uma pergunta que deveria ser central para qualquer um que queira discutir a segurança pública no Brasil: qual é, de fato, o pacto federativo ao qual estão submetidas as polícias militares estaduais?

É o dilema proposto por Luiz Eduardo Soares em sua obra Desmilitarizar:

“Há, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas organizacionais, convivendo no interior de cada polícia militar, em cada estado da Federação. Uma delas vertebra a hierarquia ligando as praças aos oficiais, ao comandante-geral da PM, ao secretário de Segurança e ao governador; a outra vincula o comandante-geral da PM ao comandante do Exército, ao ministro da Defesa e ao presidente da República. Apesar da autoridade estadual sobre ‘orientação e planejamento’, a principal cadeia de comando é a que subordina as PMs ao Exército. Não é difícil compreender o primeiro efeito da duplicidade assimétrica: as PMs estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos que subvertem o princípio federativo.”

Como o ex-Secretário Nacional de Segurança Pública diz, hoje, “as PMs devem reportar-se a dois senhores”. Mas é difícil engolir que uma instituição militar, dentro de seus princípios rígidos de hierarquia e disciplina, realmente obedeça aos “senhores civis” da mesma forma que se subordina aos “senhores militares”.

Não é surpresa, portanto, que, desde o fim da ditadura, quando a redemocratização desfez a confusão entre o poder civil e o poder militar, as polícias militares estaduais tenham vivido um período histórico em que a presença de dois controles paralelos conflitantes e um pacto federativo mal explicado as tenham levado a experimentar uma busca por autonomia e poder político inédita.

É como se este limbo entre a hierarquia puramente militar e a hierarquia institucional política e civil tivesse se transformado em um território fértil para a autonomização das polícias militares.

De um lado, a política civil tradicional, na qual as instituições, em tese, se submetem ao ordenamento jurídico e aos debates políticos de toda a sociedade. De outro, um poder militar historicamente avesso ao controle civil, o qual, vemos agora com a trama golpista, não tem o menor respeito por qualquer pacto federativo estabelecido entre os poderes constituídos.

Neste processo de autonomização e politização das polícias militares estaduais, é natural que elas tenham optado por emular este segundo mundo, o da “política militar”, independente, garantia de um suposto bem maior, doa a quem doer.

Romper com estes traços tipicamente militares na segurança pública brasileira é, portanto, mais do que urgente. Os erros cometidos na redemocratização criaram um novo monstro de autoritarismo no país, e a trama golpista que vai sendo revelada pelas atuais investigações devem intensificar nossos sinais de alerta.

Não podemos esquecer que os acontecimentos do 8 de janeiro de 2023 envolveram diretamente autoridades da PM de Brasília. Tampouco devemos esquecer que os protestos que se deram entre a eleição de Lula e a sua posse foram acompanhados de perto por policiais militares de todo o país que, arbitrariamente, cruzavam os seus braços, principalmente em São Paulo.

Qualquer proposta de reforma da segurança pública do Brasil deve bater de frente com este sistema, ou estaremos fadados a viver em um país onde, de tempos em tempos, percebemos que o nosso poder civil não é nada mais que um objeto de decoração.


Nota

1 http://www.coter.eb.mil.br/images/sistema/menu_igpm/plano_apoio_eb/3.QUADRO-DE-ATIVIDADES-PL-AP-EB-S-PM-CBM.pdf

2 1PORTARIA Nº 002-EME, DE 5 DE JANEIRO DE 2015. Aprova o Manual de Campanha EB20-MC-10.205 Comando e Controle, 1ª Edição, 2015.

3 https://www.sgex.eb.mil.br/sg8/001_estatuto_regulamentos_regimentos/02_regulamentos/port_n_1780_cmdo_eb_21jun2022.html

4 https://www.sgex.eb.mil.br/sg8/006_outras_publicacoes/01_diretrizes/04_estado-maior_do_exercito/port_n_1389_eme_21agosto2024.html

5 https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/desinformacao-a-respeito-do-poder-militar-e-do-poder-civil/

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Um comentario para "Golpe interrompido: Qual seria o papel das polícias?"

  1. Cláudio Iennaco disse:

    Além de todo terror imposto pelas PMs, ainda são todas elas terrivelmente evangélicas.

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