Direita: A estratégia da gravação-deboche

Caso Wilker Leão, o estudante que grava aulas para “denunciar a doutrinação marxista” evidencia a postura da ultradireita em debates: falsificação da realidade, sob pretexto da crítica. Com isso, busca minar a confiança nas instituições e deslegitimar a produção crítica do saber

Arte: Tricontinental
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No dia 28 de maio, o canal “Podcast 3 Irmãos” transmitiu um debate entre Wilker Leão — influenciador digital e estudante de História na Universidade de Brasília (UnB) — e o historiador marxista Jones Manoel. O tema proposto era a educação no Brasil, mas o foco do embate girou em torno de uma acusação recorrente da nova direita: a suposta “doutrinação marxista” nas universidades públicas.

Wilker ganhou notoriedade por gravar aulas e expor professores sob o pretexto de denunciar ideologização. Alega ser vítima de perseguição e ter sua liberdade de expressão cerceada por uma hegemonia esquerdista. No entanto, sua atuação revela mais que uma crítica ao ensino — ela expressa uma guerra cultural travada com base em certezas infalsificáveis, sustentadas não por dados, mas por convicções normativas.

Enquanto Wilker repete mantras como “livre mercado”, “doutrinação” e “meritocracia”, Jones Manoel recoloca o debate nos trilhos certos: a precarização da universidade pública, o desmonte das condições de trabalho docente, os ataques orçamentários e o desprezo pelas humanidades. Ao contrário do que Wilker sustenta, o verdadeiro problema da educação superior brasileira não está na ideologia dos professores, mas no abandono sistemático de um projeto público de educação emancipadora.

Entretanto, é importante destacar que as dúvidas levantadas por Wilker em sala de aula parecem ser de natureza mais política e normativa do que propriamente ligadas ao avanço do conhecimento. Suas questões não se inserem no jogo legítimo da dúvida, aquele que move a ciência e a filosofia: a dúvida que busca entender, fundamentar, revisar e aprimorar. Em vez disso, são dúvidas usadas como instrumento de deslegitimação, não de esclarecimento.

O ceticismo, em seu papel filosófico e científico, é fundamental. Duvidar de hipóteses, questionar pressupostos e revisar certezas faz parte da construção do conhecimento. No entanto, quando essa dúvida se torna indiscriminada, impermeável à refutação e imune a evidências, ela perde sua função epistemológica. Como advertiu Wittgenstein em Sobre a Certeza (1969), toda dúvida só faz sentido se repousa sobre um conjunto mínimo de certezas compartilhadas. Não se questiona a existência do corpo humano numa aula de biologia, nem se interrompe uma discussão sobre racismo estrutural com questionamentos sobre o sentido da palavra “estrutura”. Há dúvidas que não pertencem ao campo da investigação legítima, mas sim da obstrução. A falsa dúvida vira uma estratégia de ataque.

Wilker Leão, ao insistir na tese de que “a universidade é marxista” mesmo diante de dados e contraexemplos, revela não um ceticismo genuíno, mas um comprometimento dogmático. Sua proposição não está sujeita à falsificação. Trata-se de uma certeza fulcral, uma crença que estrutura sua visão de mundo e que, por isso, ele defende a todo custo. Essa certeza não é testada, mas protegida — não por argumentos, mas por negação sistemática da realidade.

A desistência de Jones em apresentar novas evidências no debate reflete a percepção de que não há interlocução possível quando o outro se recusa a jogar o jogo da dúvida legítima. Wilker não está disposto a revisar suas certezas. Sua dúvida não é uma abertura para o diálogo, mas uma barreira. O debate se torna impossível quando as posições não estão sujeitas à revisão racional.

Esse tipo de postura, infelizmente, tem se tornado comum em setores da extrema direita. A dúvida deixa de ser uma ferramenta de pensamento crítico e se transforma em dispositivo retórico para desautorizar instituições, sabotar professores e congelar o debate. Basta a menção a termos como “neofascismo” ou “colonialismo” para que a aula seja interrompida. Não há intenção de aprender — há intenção de desestabilizar.

Há, nesse tipo de intervenção, uma postura que se disfarça de crítica, mas cujo objetivo é o descrédito. Quando o professor comete um deslize ou traz um conteúdo que confronta as crenças do aluno, isso é interpretado não como um convite ao diálogo, mas como prova de sua suposta incapacidade. A lógica que se instala é punitivista e inquisitorial. Em vez de promover o avanço do conhecimento, transforma a sala de aula em um tribunal ideológico.

O efeito pedagógico disso é paralisante. A aula deixa de avançar. As discussões ficam empacadas em pontos fixos, repetidamente interrompidas por dúvidas que não têm como objetivo esclarecer, mas bloquear. Como sugere Wittgenstein, certas dúvidas são tão desconectadas das nossas práticas epistêmicas que tornam impossível qualquer continuidade no raciocínio. O aluno que, a cada frase, questiona a existência do mundo, dos objetos ou das palavras, impede o próprio processo de ensino. É exatamente isso que ocorre quando o discurso político de Wilker entra na sala de aula disfarçado de ceticismo.

Evidentemente, toda dúvida tem um fundo político. Questionar o que aprendemos, como aprendemos e quem ensina sempre envolve relações de poder, autoridade e reconhecimento. No entanto, é preciso perguntar: a serviço de que projeto político estão essas dúvidas? No caso de Wilker, a resposta é clara. Seu discurso valoriza apenas os saberes considerados “úteis” ao mercado — engenharia, medicina, tecnologia — e ataca sistematicamente as humanidades. Propõe, inclusive, a extinção de cursos como biblioteconomia, museologia e antropologia, relegando-os à pós-graduação ou à fusão com outras áreas. Trata-se de um ataque frontal à diversidade do saber universitário.

Essa visão utilitarista da educação, que mede o valor do conhecimento por sua rentabilidade, é perigosa. Reduz a universidade a uma fábrica de mão de obra técnica e ignora sua função crítica, criativa, histórica e social. As humanidades, frequentemente acusadas de serem improdutivas, são justamente as áreas que nos permitem lembrar, imaginar, resistir e reinventar. São essenciais para qualquer projeto de país verdadeiramente democrático.

O caso Wilker Leão é, portanto, sintomático. Ele não é apenas um estudante em conflito com seus professores. É o porta-voz de uma estratégia de desmonte: minar a confiança nas instituições de ensino, deslegitimar a produção crítica do saber, enfraquecer a universidade pública. Seu modo de duvidar — normativo, impermeável, performativo — não é inocente. É uma forma de sabotagem epistêmica que precisa ser reconhecida e combatida.

Se queremos defender a universidade como espaço de debate, de construção coletiva e de pluralidade epistemológica, precisamos estar atentos a essas formas de “dúvida armada”. O que está em jogo não é apenas uma aula — é a própria possibilidade de pensar criticamente sobre o mundo.

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