Chile: por que a ultradireita sai na frente?
Após governo morno de Boric, oposição apostou no medo e no ódio aos imigrantes para dominar o debate público e levar mais de 50% dos votos. Por que Kast prevaleceu entre a direita? Que significaria sua presidência? Há chances de freá-lo?
Publicado 17/11/2025 às 18:06 - Atualizado 17/11/2025 às 18:28

Tomás Leighton em entrevista a Pablo Stefanoni, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues
Os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais chilenas deixaram um gosto amargo para a esquerda (que ficou abaixo dos 30%) e definiram a disputa interna na direita a favor de José Antonio Kast, do Partido Republicano, que ficou em segundo lugar, muito mais perto de Jeannette Jara do que se esperava, com quase 24%. O “nacional-libertário” Johannes Kaiser não conseguiu ultrapassá-los, mas, com seus 14%, garantiu uma posição-chave para influenciar o novo governo. Evelyn Matthei, herdeira do “piñerismo”, despencou para o quinto lugar, superada pelo inclassificável Franco Parisi. Com mais de 50% do eleitorado inclinado à direita, a campanha de Jara será uma ladeira acima: à questão da aritmética eleitoral soma-se o desânimo na esquerda.
Nesta entrevista, Tomás Leighton, diretor da fundação Rumbo Colectivo, analisa “a quente” os resultados e os efeitos de uma agenda social que há tempos se deslocou para a insegurança, a imigração e a economia.
Qual é a primeira leitura dos resultados?
Eu diria que a direita avança dividida e a esquerda mal consegue resistir unida. José Antonio Kast passou para o segundo turno competindo contra a direita convencional de Evelyn Matthei e contra uma cisão pela direita de seu próprio partido, liderada por Johannes Kaiser e seu Partido Nacional Libertário. Somados, os setores de direita iniciam a corrida para o segundo turno dobrando os votos que costumavam acumular no primeiro turno antes do voto obrigatório – que foi aplicado pela primeira vez em uma eleição presidencial e levou a participação a mais de 85%.
É preciso observar com muita atenção a jogada da extrema direita chilena, que usou a fragmentação de forma produtiva. Johannes Kaiser, ex-deputado do partido de Kast, obteve quase 14% das preferências, ameaçando fechar a fronteira com a Bolívia, propondo a retirada do Chile da Organização Mundial da Saúde (OMS) e prometendo indultos a violadores de direitos humanos. Tudo isso acabou moderando a imagem de Kast – agora à sua direita já não estava o muro, como em 2021, mas sim Kaiser. Mas, além disso, a lista parlamentar unificada entre republicanos e libertários evitou que roubassem votos uns dos outros e arrebatou a hegemonia da direita convencional na Câmara dos Deputados.
Uma das razões pelas quais a direita convencional ficou relegada à quinta posição e Jara não obteve um apoio mais contundente foi o surpreendente terceiro lugar de Franco Parisi e os 14 deputados do Partido do Povo (PDG). Em sua terceira candidatura à presidência, com resultados sempre em alta, Parisi conseguiu cultivar um estilo outsider ausentando-se completamente do debate público entre uma eleição e outra, a ponto de residir nos Estados Unidos. Embora tenha proposto minar o norte do Chile para frear a imigração irregular e castrar quimicamente agressores sexuais, ele se definiu como “nem facho nem comunacho” e classificou Kaiser e Kast como “o pior da ultradireita”. Portanto, o PDG é a cota de incerteza do segundo turno e do novo ciclo político. Na eleição passada, o partido de Parisi conseguiu seis cadeiras, mas em dois anos esses parlamentários já haviam saído todos do PDG, distribuindo-se entre a esquerda e a direita. Agora, enquanto durar, o novo bloco terá de conviver com um conjunto heterogêneo de parlamentares.
Finalmente, Jara inicia o caminho para o segundo turno com um número de votos similar ao que as esquerdas costumam obter no primeiro turno desde o retorno à democracia, mas obrigada a recuperar votos das candidaturas de direita se a participação eleitoral se mantiver nos mesmos percentuais.
Neste caso, a unidade de socialistas, comunistas e frenteamplistas (pela Frente Ampla, de Gabriel Boric) mal foi suficiente para impedir a maioria absoluta das direitas no Congresso, afastando as possibilidades de que mudem o sistema político, o sistema eleitoral ou a Constituição. Ressurge hoje uma das frases célebres de Boric ao se referir ao terço fiel que se expressa há quase dez eleições: “Quando alguém diz ‘sou dos 38%’, me dá orgulho e comichão”. Embora as obras do governo tenham reconciliado duas gerações em disputa – jovens e ex-integrantes da Concertação – e os três grandes partidos do progressismo, as esquerdas têm sua margem de manobra restrita a afirmar o status quo, enquanto a revanche conservadora avança nos setores populares.
Como você define a fração da direita que finalmente se impôs?
Kast faz parte da Conferência Política de Ação Conservadora (CPAC), como Benjamin Netanyahu, Javier Milei, Giorgia Meloni e Donald Trump. Mas sua adesão à “internacional reacionária” é um elemento secundário. O central em Kast é seu pertencimento à cultura política “gremialista”, uma corrente corporativista e religiosa que enraizou seus postulados na Constituição de 1980 que ainda rege o Chile. Ele não é um outsider; de fato, saiu da União Democrata Independente (UDI), o partido herdado de Jaime Guzmán, artífice intelectual da referida Carta Magna, reivindicando para si a autenticidade dessa tradição política. Kast montou seu próprio movimento, o Partido Republicano, com o objetivo de salvar a direita chilena das concessões que Sebastián Piñera havia feito à esquerda. Em 2021, ele qualificou o segundo governo de Piñera como o pior da história, perdendo somente para o do socialista Salvador Allende.
Diferentemente da novedosa irrupção dos libertários na Argentina, Kast parece estar, na verdade, recuperando a hegemonia da velha direita conservadora pós-pinochetista no Chile. Em um país onde o Estado subsidiário dos Chicago Boys está plasmado na Constituição, o discurso minarquista sobre o Estado mínimo tem muito menos sentido do que no país vizinho. Mas, pelo contrário, muitos na direita se sentem atraídos por um discurso que propõe restaurar o projeto conservador anterior a Piñera.
Kast impõe-se na primária da direita, em uma eleição na qual Evelyn Matthei ficou em quinto, capturando a nova versão do mal-estar chileno, que antes foi interpretada pela esquerda por Gabriel Boric. Novamente há promessas de mudanças radicais, mas desta vez contra a delinquência e a imigração. O clima de pessimismo e o voto de protesto permitiram à direita abandonar sua versão moderada e verbalizar uma revanche conservadora indistinta contra os “outubristas”, em referência aos que participaram das revoltas de outubro de 2019, os imigrantes indocumentados, os delinquentes e os “parasitas do Estado”.
No início da campanha, Evelyn Matthei parecia caminhar direto para La Moneda (o palácio presidencial), mas depois “aconteceram coisas”. O que explica sua queda?
É certo, a morte de Sebastián Piñera, em um trágico acidente de helicóptero em fevereiro de 2024, pareceu ser o momentum da direita tradicional, mas as contradições de Matthei a impediram de aproveitar a oportunidade. Em 1992, Matthei vazou um áudio contra seu então rival interno na direita, Sebastián Piñera, que acabaria sendo um fato premonitório. Na gravação oculta, Piñera combinava as perguntas do debate da primária sugerindo que perguntassem a Matthei sobre a lei do divórcio, para expor seu conservadorismo e as mudanças de opinião que também haviam caracterizado seu pai como membro da Junta de Augusto Pinochet.
Desde então, Matthei sempre carregou muito o peso de seu papel na impunidade de Pinochet em 1998 e de suas desculpas para não pedir perdão pelo golpe de Estado, apoiadas pelos dois partidos aos quais pertenceu: Renovação Nacional (RN) e a UDI. Finalmente, quando parecia ter aprendido as lições de moderação programática ministradas por Piñera, surgiram dois candidatos à sua direita e ela novamente ficou em offside. Então, nesta campanha, um dia ela questionava o populismo securitário, mas no outro propunha reinstaular a pena de morte. Recebeu o apoio de ex-integrantes da Concertação, mas o perdeu quando questionou o plano de busca dos detidos desaparecidos. E, o pior: nunca se decidiu realmente a endossar a reforma previdenciária que Boric pactuou com os partidos que a apoiavam.
No final, o próprio comercial publicitário de Matthei descreve, sem querer, uma campanha cheia de ambivalências: “Evelyn toca piano. Matthei tem mão de ferro contra a delinquência (…), Evelyn gosta de podar o jardim, Matthei tem mão dura contra a corrupção (…)”. As Matthei não conseguiram se articular em uma única candidata. O fato de ela ter repetido o fracasso de sua coalizão na presidencial de 2021 mostra, ainda, a incapacidade da direita convencional de navegar entre a liberalização cultural do país e a radicalização de seu eleitorado. O interessante é que a contradição de Matthei nos introduz na crise discursiva das direitas convencionais ao redor do mundo.
Hoje a esquerda olha com muito entusiasmo para Zohran Mamdani em Nova York, mas o Chile já teve seu Mamdani, que é, ou foi, Gabriel Boric. O presidente, de 39 anos, deixa o cargo com cerca de 30% de popularidade, o que não é pouco no Chile para um presidente que termina o mandato, mas a sensação na esquerda é de frustração. Qual é, brevemente, o balanço de sua gestão, que teve o impulso inicial do “estouro” e da Convenção Constitucional e depois o ônus da derrota do projeto de Constituição?
A Frente Ampla e o Partido Comunista chegaram ao poder com a promessa de superar o neoliberalismo e saldar as dívidas da transição democrática, mas seu governo teve que se ocupar dos efeitos imediatos da pandemia na segurança e na economia. Enquanto a esquerda estava nas nuvens pensando na grande transformação constitucional, os setores populares começavam a ressentir a chegada do crime organizado transnacional e a recepção do grande fluxo migratório venezuelano. No entanto, quando triunfou a rejeição ao novo texto constitucional – a pior derrota eleitoral da esquerda em sua história –, Boric mostrou capacidade de adaptação e, ao final de seu governo, pode dizer que quebrou a curva ascendente de homicídios, diminuiu a imigração irregular e reduziu a inflação à metade. Em outras palavras, a rejeição da Constituição foi a primeira grande frustração da nova geração de esquerda, mas há um valor em Boric ter convocado a “escutar a voz do povo” naquela mesma noite.
Agora, uma das coisas sobre as quais é preciso refletir é a incapacidade das novas esquerdas de transitar o caminho entre as campanhas eleitorais e o exercício da administração do Estado. No caso do Chile, penso que o aumento sustentado do salário mínimo, a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais e a reforma das pensões serão mudanças valorizadas com o tempo, mas se persiste uma sensação de frustração é pelas ilusões desmedidas da campanha e, inclusive, uma vez constatada a minoria parlamentar. A dissonância cognitiva neste caso foi muito mais aguda pela introdução do voto obrigatório, que somou três milhões de pessoas que não votavam. Mas, de qualquer forma, o caso chileno serve para pensar sobre dois problemas paralelos na hora de dirigir o Estado: a futilidade da “estratégia populista” quando se trata de construir ordem, e as “ideologías de volta atrás” – como as chama Adam Przeworski –, de “restaurar” a democracia em vez de transformar as condições que geraram a situação de crise, o que apenas reproduz as condições para o triunfo das extremas direitas.
Muitos dizem que Jeannette Jara carrega, em maior medida, o fato de representar a continuidade do que o de pertencer ao Partido Comunista (PC). Quais foram, e ainda são, suas fortalezas e debilidades para enfrentar o segundo turno? Como fica a (centro)esquerda chilena após este resultado?
A ex-ministra do Trabalho teve seu momento político mais alto na noite em que foi aprovada a reforma previdenciária impulsionada pelo governo. E o fato de o ex-candidato presidencial do PC, Daniel Jadue, de seu próprio partido, ter fustigado publicamente a reforma é um sintoma de que a liderança de Jara não pode ser reduzida ao PC. De fato, se a direita apertar a tecla anticomunista, vai beneficiar Jara. A mentalidade da Guerra Fria tende a conceber os esquerdistas como porta-vozes do enorme movimento proletário que desencadeou grandes reações, mas hoje a esquerda se encontra em um de seus momentos de maior debilidade, então esse discurso não se ajusta à realidade. Em uma de suas campanhas, a ministra comunista Camila Vallejo dizia com ironia: “Chegou o demônio marxista, chamem o exorcista”. Creio que esse demônio assusta menos do que no passado.
Uma das fortalezas de Jara é que soube interpretar o mundo popular. A população a identifica como alguém que pode melhorar a saúde e a educação da população porque está mais perto dos problemas cotidianos da gente. Na contenda com José Antonio Kast, trata-se de um atributo muito valioso, especialmente se considerarmos que Parisi havia empunhado um forte discurso meritocrático no primeiro turno e se referiu ao resto dos candidatos como “cuicos de esquerda e direita”, ou seja, pessoas de classe alta na gíria chilena.
Por outro lado, o risco é que sua campanha coloque demasiada ênfase em suas origens populares. Um dos humoristas mais célebres do país descreve muito bem como a exacerbação da narrativa sobre a origem pode ser lida em tom de deboche. Ao imitar a candidata, ele a faz dizer: “Eu venho de baixo, em um cômodo vivíamos vinte pessoas e sonhávamos todos o mesmo”. Ao mesmo tempo, falar de direitos trabalhistas quando as prioridades estão na segurança é como tentar mudar o sentido do vento. Habilmente, Kast tem insistido que Jara quer “tratar os delinquentes com amor”.
De qualquer forma, creio que a centro-esquerda chilena deve compreender que o segundo turno não se joga apenas no desempenho de Jara, mas na mobilização da rejeição à extrema direita. Uma das últimas investigações do politólogo Cristóbal Rovira oferece pistas sobre as resistências que Kast desperta em parte do eleitorado.
Entre os grupos relutantes em apoiar a extrema direita no Chile persiste uma demanda de segurança estatal que evite a guinada para a justiça pelas próprias mãos. Talvez como herança de Diego Portales, uma das figuras da organização e consolidação do Estado chileno no século XIX, há um íntimo desejo de que o poder de fogo esteja controlado pelo Estado por meio de uma polícia, agora com padrões elevados, que evite situações caóticas.
Em 2023, quando Kast propôs ao país eliminar os impostos territoriais no texto constitucional, a esquerda conseguiu explicar de forma eficiente as repercussões que isso teria nos bairros mais carentes. Assim como o rótulo “comunismo”, os rótulos “democracia”, “Estado” e “direitos” não dizem nada ao mundo popular se não estiverem ancorados em experiências concretas.
Tudo indicaria que a direita ganhará o segundo turno, se somarmos as três frações deste espaço. Que tipo de reconfigurações podem ser esperadas neste espaço e que tipo de governo lideraria Kast?
Que a direita seja a favorita está vinculado à incapacidade de todos os partidos de lograr a eleição de governos do mesmo signo desde janeiro de 2006. Passaram-se quase vinte anos desde que Michelle Bachelet deu continuidade nas urnas à Concertação. Depois, impôs-se a alternância eleição após eleição. Mas, além disso, após os fracassos constitucionais, os chilenos seguem querendo mudanças fortes, só que agora estas se referem a segurança e controle migratório, em um quadro de descontentamento com as elites políticas.
Embora Parisi e o PDG tenham a chave para uma hipotética maioria de direita no Congresso, parece-me que a chave está no futuro papel do Partido Nacional Libertário de Kaiser. Se a divisão política costuma ser vista como uma dor de cabeça para as esquerdas no mundo, a direita chilena deu uma lição de como usar a fragmentação de candidaturas presidenciais para controlar a conversação pública, sem desperdiçar votos.
Em 2024, Kaiser deixou a bancada parlamentar de Kast para fundar seu próprio partido e roubar o nicho de eleitores antiprogressistas que lhe escaparia por sua tentativa de se aproximar do eleitor mediano. Agora, Kaiser tentará devolver a base eleitoral a Kast no segundo turno, mas ao preço de ditar a pauta de um hipotético governo de direita e se projetar como um relevo eleitoral. A questão é que o que na campanha foi um círculo virtuoso poderia ser o calcanhar de Aquiles de um hipotético governo em comum. Enquanto Matthei e a centro-direita do ChileVamos dançarão facilmente ao ritmo de Kast, graças ao sedimento que ficou de Jaime Guzmán entre ambos, o rage-baiting de Kaiser poderia ser contraproducente para Kast, já que parece servir mais para provocar do que para governar.
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