Brasil: O perigoso projeto “contraterrorista”
Congresso debate proposta que equipara ação de grupos como o PCC a “terror”. É demagógica e ameaçadora. Ao dotar o Estado de carta-branca para perseguir e punir, ameaça a democracia, sob pretexto de enfrentar a Grande Ameaça da vez
Publicado 03/06/2025 às 19:33 - Atualizado 03/06/2025 às 19:46

No dia 3 de maio, um sábado, Lady Gaga realizou um show gratuito para mais de 2,1 milhões de pessoas na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Imagens da multidão se espalharam pelas redes sociais, despertando — como Copacabana costuma fazer — um sentimento de deslumbramento tanto em públicos nacionais quanto internacionais. Aqueles atentos às questões de segurança viram, para além do espetáculo, um pesadelo em termos de policiamento e segurança pública. No domingo, 4 de maio, o secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Felipe Curi, anunciou que a pior versão desse pesadelo quase se concretizou: um atentado a bomba usando um dispositivo amador, planejado para atingir fãs de Lady Gaga, foi frustrado graças à inteligência policial. Um grupo disperso de conspiradores de várias partes do Brasil, reunido por meio de aplicativos de mensagens e outras redes sociais, motivado por sentimentos anti-LGBT+, planejava assassinar civis inocentes para enviar uma mensagem política: a “indecência” e a “decadência social” deveriam ser combatidas, e o uso da violência para esse fim seria justificado. Dado o volume de cobertura da mídia, o cenário icônico e a possibilidade de uma debandada em pânico, o Brasil escapou por pouco do pior atentado terrorista de sua história.
Cinquenta anos de estudos sobre terrorismo produziram um consenso bastante sólido: para que um ataque seja classificado como “terrorismo” – ou seja, algo além da categoria de homicídio/tentativa de homicídio -, ele deve ser realizado com propósitos explicitamente políticos: motivações relacionadas à tentativa de reorganização da sociedade, agitação violenta por autodeterminação e assim por diante. No entanto, um mês após o atentado frustrado em Copacabana, o discurso predominante sobre “terrorismo” no Brasil agora parte de tentativas equivocadas de reclassificar organizações criminosas como entidades terroristas. Em 26 do maio, a Câmara dos Deputados aprovou em regime de urgência um projeto de lei (PL 1283/25) que ampliaria a definição de terrorismo para incluir ações de organizações criminosas e milícias, sob o argumento de que suas práticas rotineiras de “imposição de controle territorial” visam espalhar “terror social ou generalizado”. Trata-se de uma proposta excessivamente vaga, desprovida de sofisticação conceitual e extremamente perigosa.
Equiparar a violência organizada e o terror sistêmico que ela produz ao “terrorismo” pode ser compreensível — mas está completamente equivocado. Facções organizadas como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) realmente controlam vastas áreas territoriais, e não há dúvida de que as milícias agravam ainda mais o problema. Tampouco há dúvida de que os civis acabam arcando com o preço. No entanto, por mais endêmico que o crime organizado seja no Brasil, esses grupos atuam com o objetivo de enriquecimento próprio, e suas ações violentas têm como propósito proteger ou expandir esse projeto. Nem o CV nem o PCC promovem qualquer tipo de motivação altruísta ou política que transponha suas ações para o campo do terrorismo.
O Estado já possui dispositivos legais para enfrentar organizações criminosas — ainda que seja difícil extrair efeitos positivos e transformadores de sua aplicação. Caso as ações dessas organizações passem a ser classificadas como terrorismo, um novo conjunto de medidas estará disponível ao aparato repressivo do Estado — tanto para o atual governo quanto para administrações futuras. Novas medidas de combate ao terrorismo tendem, quase inevitavelmente, a corroer normas democráticas e processuais, porque, como a história demonstra, a própria categoria do terrorismo só existe como signo de emergência. Problemas emergenciais geram respostas emergenciais e, com a missão de erradicar o terrorismo “de uma vez por todas”, os Estados repetidamente mostraram que intensificam os próprios ciclos de violência que pretendem eliminar.
O filósofo Jacques Derrida identificou a essência desse dilema. Em uma entrevista de 2003, refletindo sobre os ataques de 11 de Setembro nos Estados Unidos, ele localizou a principal ameaça do terrorismo não nas ações dos 19 sequestradores que mataram quase 3.000 civis. Em vez disso, ele anteviu uma onda de violência mais consequente que emanaria dos Estados, em nome do contraterrorismo. Em 21 de março daquele ano, os EUA deram início à desastrosa Guerra ao Terror, que, só no Iraque, teria matado mais de 500 mil civis. Outros países ocidentais se juntaram ao conflito e sofreram ataques jihadistas em represália. No entanto, para além desse ciclo mais evidente de violência, a Guerra ao Terror se tornou o prisma por meio do qual se passou a tratar todos os tipos de problemas de segurança dentro dos próprios Estados Unidos.
Assim, potenciais terroristas passaram a ser monitorados por meio de vigilância, com o novo objetivo do contraterrorismo sendo intervir antes da violência ocorrer. Estados de emergência passaram a ser frequentemente decretados após atentados de grande repercussão (como os de novembro de 2015, em Paris), até serem, por fim, incorporados à legislação. A aplicação dessa lógica continua até hoje — e com vigor renovado. No momento em que este texto é escrito, denúncias legítimas contra o massacre em Gaza continuam sendo, de maneira espúria, associadas ao apoio ao “terrorismo”. O fato de o Hmas ser uma organização terrorista proscrita não apaga o vazio moral da resposta desproporcional de Israel e não deveria equivaler civis palestinos — nem apoiadores de seus direitos — a potenciais terroristas. E, no entanto, no aparato punitivo reativado por Trump, deportações, ameaças de ruína financeira e prisões pairam sobre manifestantes estudantis que, em sua maioria, apenas defendem a decência humana básica e o fim da matança.
O terrorismo funciona como um discurso. Ele contém um poder quase inimaginável de disfarçar a repressão estatal como uma resposta proporcional/temporária a uma emergência. Em El Salvador, vemos como o contraterrorismo está sendo aplicado como recurso emergencial para tratar o crime organizado como terrorismo, permitindo ao aparato repressivo do Estado erradicar o problema “de uma vez por todas”. O regime de Bukele enviou inúmeros criminosos para o Centro de Confinamiento del Terrorismo, em Tecoluca. Também condenou inúmeros civis inocentes ao mesmo destino, com pouca ou nenhuma chance de reparação ou devido processo legal.
As consequências trágicas das repressões estatais contra aqueles rotulados de forma espúria como terroristas ainda permanecem na memória histórica do Brasil. De fato, este projeto de lei segue para o Senado justamente em um momento de novo enfrentamento cultural com os consequências humanas das campanhas repressivas da ditadura militar — frequentemente justificadas sob o pretexto de combater o terrorismo. Essa dinâmica é retratada de forma contundente em obras contemporâneas como Ainda Estou Aqui e O Agente Secreto. O Brasil deve reconhecer a sua fortuna por jamais ter adotado, de fato, o discurso da Guerra ao Terror. E não deve, agora, recorrer a uma versão atualizada desse discurso antiterrorista para enfrentar um problema que é, sim, gravíssimo — mas absolutamente distinto — do crime organizado. O Brasil teve por muito tempo a sorte de não adotar o discurso ou as práticas da Guerra ao Terror — e não deveria começar agora. Em nome da ordem e do progresso, e tendo em mente os civis que, ao fim, arcariam com o custo, esse projeto de lei não deveria ser aprovado.
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