Argentina: o que explica o voto popular em Milei?

Vencedor das prévias, candidato repete a ladainha de que o Estado, a justiça social e a “classe política” são pesos nas costas do país. Mas por que milhões de argentinos pobres, que serão duramente atingidos por suas políticas, podem vir a elegê-lo?

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Título original: “Primárias na Argentina: fundamentos psíquicos e estruturais da renitente ascensão da extrema-direita neoliberal”

Os resultados das primárias, simultâneas e obrigatórias na Argentina, no dia 13 de agosto de 2023, revelam um claro predomínio do voto de direita e indicam a derrota do peronismo, possivelmente, já no primeiro turno, em outubro. O vencedor, Javier Milei, o “Bolsonaro argentino”, do partido La Liberdad Avanza, obteve mais de 30% dos votos, deixando para trás Patrícia Bullrich, da ala direita do partido de direita Juntos por el Cambio, com 17,0% das preferências, e o peronista e atual ministro da Economia, Sergio Massa, do Union por la Patria, com pouco mais de 21% dos votos. Reviravoltas podem acontecer, mas o resultado, que emerge da triagem das Primárias, sugere que a extrema-direita de Milei tem grandes chances ganhar ainda no primeiro turno se puder atrair os votos de Patricia Bullrich e demais candidatos derrotados da direita.

Esse resultado é parcialmente tributário do insucesso do governo de Alberto Fernandez em lidar com a crescente inflação, com a gravidade dos déficits de balança de pagamentos e com as privações materiais cada vez mais agudas que impactam diretamente a vida da população. Seu governo não demonstrou força política ou vontade para promover mudanças radicais, como, por exemplo, a instituição do controle do movimento de capitais para estabilizar o câmbio e conter a inflação. É nessa esteira da crise e impotência do governo que Milei, autointitulado liberal libertário, defensor radical do livre mercado e do amor livre (segundo declaração de 5/10/2017, ao programa do La Nación, Terapia de Noticias), avança a passos largos.

Longe de propor uma correção de rumos, sua campanha é recheada de “propostas radicais”, como o fim do Banco Central e a dolarização da economia argentina, o fechamento de vários ministérios, a instituição do sistema de vouchers para educação e saúde, a liberação da venda de órgãos, a revisão dos direitos humanos para bandidos, a revalorização das polícias e das forças armadas, bem como a retirada da Argentina do Mercosul. Será, como diz, uma virada de 180 graus, uma destruição do status quo do Estado argentino a partir de dentro, ou seja, como presidente eleito. Sua formulação condensa a visão política antissistema e essencialmente contra o Estado.

Milei vê no Estado argentino populista de esquerda (sic), decadente há mais de 100 anos, a origem do problema político e econômico central do país, i.e., o problema fiscal jamais resolvido, grande mal econômico, responsável pela estagnação. Em sua opinião, o erro de todos os programas de estabilização foi transferir o custo do Estado ineficiente e gastador para o setor privado. Por isso, sua proposta de destruição do status quo se materializa por meio de um programa de estabilização em que os custos são pagos pelo Estado, por meio de sua redução radical. A linha de ação será o cortes de gastos, com a extinção de ministérios (Obras Públicas; Trabalho, Emprego e Segurança Social; Educação; Ciência, Tecnologia e Inovação; Saúde; Cultura; Mulheres, Gênero e Diversidade; Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) e as Privatizações.

A fonte da gastança, para empregar um termo técnico brasileiro, seriam as políticas sociais. Em recente entrevista ao canal A-24 COM, para o jornalista Estebán Trebucq, Milei condenou expressamente o artigo 14b da Constituição Argentina, que dispõe sobre a obrigatoriedade da segurança social assegurada pelo Estado. Adepto confesso das ideias do economista da Escola de Chicago, Milton Friedman, afirma que a “ideia de justiça social é o câncer da Argentina”. Para ele, a justiça social é roubar de ricos para dar aos pobres, beneficiando os que controlam o aparelho de Estado, seja para o enriquecimento pessoal, seja para a perpetuação no poder, às custas da ineficiência econômica. Por essa razão, os programas sociais também devem passar por uma revolução, em que o foco não seja “dar o peixe, mas ensinar a pescar”.

É incrível a semelhança do seu discurso raso com o de Jair Bolsonaro e, em muitos aspectos, também com o de Trump. As ideias são extraídas diretamente do livro Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman, publicado há mais de 60 anos. A narrativa de Milei é que o Estado é sempre ineficiente, que todos os políticos no estado argentino são delinquentes, parasitas inúteis e ladrões. Para Milei, o problema político argentino, que sustenta o Estado gastador, é que os políticos tradicionais seguem votando em si próprios e nada muda. É isso que que explicaria a longa decadência argentina por mais de 40 anos, desde o fim do regime militar. Para Milei, mais um político autoproclamado “outsider”, todo o cuidado é pouco. Repetindo o mantra da extrema-direita mundial, a “classe dos políticos” não hesitará em perpetrar uma fraude eleitoral em face de sua avidez pela perpetuação.

O quadro pintado por Milei é o da podridão econômica e política do populismo de esquerda (sic) que contaminou a Argentina. E é exatamente a capacidade de pintar o quadro dessa forma que lhe permite recolher apoio político dos pobres nessa conjuntura de crise.

Antes de prosseguir, é importante notar que o avanço do neoliberalismo, seja pela direita como pela extrema-direita, é amparado pela sanha de parte do mundo das finanças e empresarial pelo controle do Estado, esvaziando de significado a própria democracia. Áreas que antes se constituíam em negócio de Estado se transformaram em campos muito lucrativos, como a educação em todos os níveis, saúde, previdência, segurança interna e até mesmo a defesa nacional. Atividades econômicas anteriormente reguladas têm sido objeto do avanço da desregulamentação, como os negócios financeiros e a exploração de recursos naturais. Portanto, há uma base política interessada pela “radicalização” proposta por Milei. Ocorre que, ao lado do interesse de corporações, investidores e especuladores, que pretendem “capitalizar” o patrocínio político, há o apoio dos pobres ao ideário de extrema-direita que lhe é francamente desfavorável.

Na base do peronismo, encontra-se uma população que é cliente das políticas sociais. E é parte dela que tem dado a vitória a Milei. Os mais pobres foram atraídos pelas propostas que podam as políticas sociais. Uma leitura do artigo 14b da constituição argentina evidencia o risco que a população pobre corre com a eleição de Milei.

Os eleitores mais pobres, em vez de reagir e cobrar por mais políticas públicas, se apresentam como cansados, desanimados, desalentados, misturando revolta por sua condição atual e uma estranha passividade coletiva diante da plataforma política de Milei. Já não apenas não se importam com as políticas públicas, que são mesmo insuficientes, mas se colocam politicamente contra elas ao depositar seu voto na extrema-direita. Para explicar esse paradoxo é preciso considerar a atual resposta social como reflexo do modo de sujeição em tempos de neoliberalismo.

O poder neoliberal produz o modo de sujeição mais insidioso na forma de uma lógica de pensamento e sentimentos. Cada um, diante da fragilização sistemática das forças políticas da social-democracia, produzida pelo neoliberalismo, em vez de discutir e defender alternativas e renovação de políticas, reage de uma maneira paradoxal, com sentimentos de desalento, agressividade e reforço da ideia de poupador racional. A agressividade se volta contra as políticas públicas e o Estado, que são vistos como a causa do seu desalento econômico e social, um peso que não precisam carregar; mas se volta também contra si próprio, na medida em que o desalento produz a ideia de que é preciso assumir, como um poupador racional que conta apenas com seu trabalho duro e independentemente de suas condições materiais, a responsabilidade integral pela situação em que se encontra e pelo seu futuro. Afinal, diria cada um, é o trabalho e o empreendimento, livres do peso “do” Estado sobre suas costas, que permitirão às pessoas deixar de contar com as políticas públicas e ser um peso “nas” costas do Estado. Observa-se a inversão na base do poder neoliberal: as pessoas, o povo, são o peso. É isso que Milei sustenta quando critica o parágrafo 14b da Constituição argentina.

É nesse sentido que é possível dizer que o avanço da extrema-direita na Argentina compartilha elementos comuns ao avanço recente da extrema-direita em todo o mundo. Portanto, não há propriamente novidade nesse movimento, que é estrutural. É uma resposta a uma crise no neoliberalismo que, ao mesmo tempo em que devasta a democracia, abre espaço para a radicalização do próprio neoliberalismo. Seu sucesso entre os mais pobres explicita a dinâmica social contemporânea, que repousa sobre um processo sujeição comum a todos, mobilizando a ideia de poupador racional e um sentimento de desalento, ligado a perdas substanciais que podem atravessar a vida de qualquer pessoa. Eventualmente, o desalento se converte em um estado de perda permanente, denominado de melancolização. O poder neoliberal atua precisamente na produção desse estado de perda permanente, e cuja solução é, paradoxalmente, fazer com que a população se ancore na ideia de poupador racional, assumindo toda a responsabilidade pela perda de condição material que lhe aflige. Reconhecemos aí o traço de agressividade do sujeito contra si próprio, contra qualquer solução que passe pela política, e de adesão a um discurso liberal-libertário de defesa radical do livre mercado, como o de Milei.

As soluções econômicas insuficientes para as mazelas do povo e a alienação política promovidas pelos partidos próximos à social-democracia abrem margens favoráveis ao avanço do discurso da extrema-direita. É o fracasso do neoliberalismo, imposto por vias democráticas, que tem aberto espaço para esse apelo à liberdade que espelha uma crítica ao Estado e às políticas públicas. Os ataques desferidos sistematicamente pela direita ao estado de bem-estar social, à intervenção estatal para estimular a economia e a tudo o que é público apresenta seus efeitos colaterais. A disputa eleitoral ao longo das últimas duas décadas, que ataca o estado de bem-estar social e a política vem servindo de antessala da extrema-direita. Sequer é necessário que haja uma crise, como a da Argentina. Os casos do Brasil e, mais recentemente, da Espanha, mostram como há avanços inesperados do discurso da extrema-direita, mesmo diante de dados favoráveis, como aumento no emprego e no salário e melhoria das políticas públicas.

O que se vê na Argentina é mais uma manifestação da doença do neoliberalismo que, para se reproduzir, abre, invariavelmente, as portas para o autoritarismo de extrema-direita, que ameaça as liberdades, a equidade e o verdadeiro ideal democrático. É preciso reconhecer como o neoliberalismo exerce um poder constitutivo de subjetividade, que se alimenta das crises da social-democracia que empobrecem o povo e depauperam o laço de confiança nas políticas públicas. Essas crises são engendradas pelo próprio neoliberalismo, que as vê como oportunidade para aprofundar, na população, a certeza de que a única saída possível é destruir o Estado e submeter as relações sociais e a própria subjetividade à lógica do mercado. Enquanto não tivermos clareza disso, líderes liberais-libertários continuarão a aparecer e o neoliberalismo continuará a fazer seus estragos.

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