Jornalistas e ex-policiais confirmam (e detalham) uma história de que se suspeitava: visando vantagens políticas e econômicas, Grupo Folha emprestou seus carros para campana e assassinato de opositores. Publicamos mais um trecho de um livro indispensável
Publicado 09/04/2025 às 20:14 - Atualizado 12/04/2025 às 10:32
Resistência: Carro da “Folha da Tarde”, que servia à perseguição dos que lutavam contra a ditadura, incendiado em 1971
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MAIS: > O trecho que se segue à nossa apresentação é um capítulo deA Serviço da Repressão, de Amanda Romanelli, Ana Paula Goulart Ribeiro, André Bonsanto, Flora Daemon, Joëlle Rouchou e Lucas Pedretti, publicado pela Editora Mórula, parceira de Outras Palavras. O sumário completo da obra pode ser consultado aqui. > Uma das autoras, Flora Daemon, foi entrevistada por Outra Manhã, nosso programa diário de entrevistas em vídeo. O programa pode ser assistido aqui. > Em 27/4 (domingo), às 20h, estreia, no ICL Notícias, Folha Corrida, uma série de vídeos que conta toda a história em detalhes
Um tema sempre muito mencionado, mas até hoje pouco investigado, diz respeito à colaboração do Grupo Folha com a ditadura por meio da cessão de seus automóveis para dar cobertura a operações contra militantes políticos (campana, perseguição, prisão e transporte de opositores ao regime) realizadas no âmbito da Operação Bandeirante (Oban).
Uma análise cuidadosa dos fatos nos permite afirmar, sem qualquer dúvida, que a empresa emprestou seus veículos para auxiliar os órgãos de repressão. Esse fato foi atestado pelo próprio Otávio Frias Filho, em depoimento para a biografia de seu pai. Ele afirma categoricamente que estes veículos foram, sim, utilizados pela repressão. Seu depoimento é bastante contundente:
Depois de conversar com o meu pai e até com gente que teve ligações com a guerrilha naquela época, eu diria que sim: os caminhões de transporte da Folha foram usados por equipes do DOI-CODI para fazer campana e até prender guerrilheiros, ou supostos guerrilheiros. Mas tenho convicção de que isso foi feito à revelia do meu pai e até do Caldeira. Digo até do Caldeira, porque ele era o pessoal que tinha mais afinidade com esse setor do regime militar. Ele tinha uma amizade antiga com o Coronel Erasmo Dias [secretário de Segurança Pública de São Paulo], até porque os dois eram de Santos (Paschoal, 2007, p. 157, grifo nosso)
Há diversos relatos de ex-presos e militantes políticos que afirmaram ter visto e/ou sido vítimas da repressão através dos carros da empresa, bem como depoimentos de ex-agentes da repressão, evidenciando que as relações entre a Folha e a ditadura foram além da afinidade ideológica. Essa versão foi praticamente chancelada pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (2014), ao afirmar que o apoio do empresariado paulista, dentre eles o Grupo Folha, teria sido fundamental para dar legitimidade e sustentação à ditadura e sua estrutura coercitiva (Brasil, 2014b).
O relatório da Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo afirma, também, que em muitos jornais “os próprios patrões agiam como agentes do sistema”. Dentre esses, o caso mais famoso seria o do Grupo Folha, “que cedeu pessoal e carros para a Operação Bandeirante utilizar na busca e captura de opositores do regime” (Sindicato dos Jornalistas, 2017, p. 8).
Claudio Guerra, ex-delegado do DOPS do Espírito Santo, em entrevista à mesma comissão, contou que a Folha ajudou a financiar diretamente as ações de repressão, ao ceder veículos para suas operações: “Usávamos os carros para fazer o levantamento e colocar grampos, porque o carro da imprensa não chamava atenção. Naquela época não tinha a facilidade de hoje (…) e o carro era ótimo para isso” (Sindicato dos Jornalistas, 2017, p. 44). Além desses e de outros relatos, registrados em livros e produzidos no âmbito de comissões da verdade, uma série de entrevistas realizadas pela nossa equipe com presos políticos, militantes, funcionários da empresa e agentes da repressão nos possibilitou avançar no caso, elucidando alguns de seus aspectos. Um dos nossos entrevistados, Francisco Carlos de Andrade, que foi membro da ALN, afirmou ter visto “vários carros” da Folha (quatro ou cinco enfileirados, sempre vazios) no pátio da Oban, na Rua Tutoia, em São Paulo, enquanto esteve preso, durante os anos de 1971 e 19721.
Eu só posso te falar que eu tive certeza disso depois que eu vi, depois que eu fui preso e vi os carros da Folha estacionados dentro da Operação Bandeirante. Eu vi. Eu vi. Eu e o Ivan Seixas. Quer dizer… carros da Folha de S.Paulo estacionados dentro do DOI-CODI não tinha sentido. Porque aquilo era carro de entrega de jornal. Era uma caminhonete com carroceria, com coisa coberta e tal, e eles faziam defesas ali com saco de areia, como se fosse uma proteção para os policiais que estavam lá dentro. A participação da Folha é inegável, eu não sei se é culpa dos Frias, se é culpa do Caldeira ou se é uma conjunção de coisas, mas a participação da Folha é inegável2.
Um sinal do compromisso ideológico do jornal com a ditadura
O ex-preso político e militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) Ivan Seixas confirma a história. Em entrevista para a pesquisa, ele disse que durante sua prisão viu carros da Folha várias vezes na frente da Oban e uma vez estacionados dentro do pátio:
O carro da Folha foi visto, eu vi várias vezes fora e uma vez dentro do estacionamento da Oban. Tem companheiros que foram transportados, como o Adriano Diogo, e há vários outros relatos. Era [carro de] transporte de jornal que não estava ali transportando jornal, porque ali não era um lugar de vender jornal. Objetivamente: era esquema, eles iam sair e levar o carro para depois montar alguma emboscada3.
Há também relatos de militantes que foram detidos e outros que foram mortos a partir da utilização de carros da Folha, conforme veremos em detalhes mais à frente, no caso envolvendo a prisão dos então estudantes Adriano Diogo e Arlete Lopes e na chamada “emboscada da Rua João Moura”, que culminou na morte de três militantes da ALN: Antonio Sergio Matos, Eduardo Antonio da Fonseca e José Manoel Nunes de Abreu. Para Adriano Diogo, os relatos sobre a utilização dos carros da Folha eram tão comuns à época que se tornaram uma espécie de jargão entre os estudantes da USP:
Qualquer lugar em Pinheiros em que a gente ia cobrir um ponto, em que a gente ia numa manifestação, sempre aparecia um carro da Folha de S.Paulo, sempre aparecia. No campus, com o pretexto de entregar o jornal em algumas bancas e centros acadêmicos, sempre tinha um carro da Folha de São Paulo. […] Na USP, ver o carro da Folha e ver o carro da repressão era a mesma coisa. […] Era do jargão da universidade: onde tem carro da Folha de S.Paulo, tem carro da repressão. […] Até os jogos da Copa do Mundo… nós púnhamos enormes telões nas grandes áreas comuns da USP e os carros da Folha de S.Paulo vinham vigiar a gente durante o jogo, sábado e domingo. Por que tinha carro da Folha na USP? No prédio de história e Geografia, da FAO, estacionado lá, era o carro da repressão4.
Para o jornalista José Luiz Proença — que atuou, a partir de 1970, como repórter e subchefe de reportagem na Folha da Tarde e, a partir de 1973, como secretário de redação do jornal Notícias Populares —, todos os colegas sabiam do empréstimo dos carros pela repressão: “Eles aconteceram mesmo, a gente sabia. A Folha alegava que não, que os carros tinham sido roubados ou não sei o quê. Mas a gente sabia, até por conta dessa presença [dos policiais] dentro da Folha. Era visível”5.
O jornalista Jorge Okubaro, que atuou como subsecretário de redação da Folha da Tarde no período, confirma a versão de Proença:
Nós, dentro da Folha, sabíamos, à época, que a Folha fazia isso. É uma vergonha para qualquer empresa, para qualquer cidadão, para qualquer pessoa, apoiar materialmente a repressão naquele momento em que se torturava, matava, desaparecia com corpos de pessoas. A Folha ajudava a fazer isso materialmente, não era ideologicamente. A história não pode ignorar isso, embora a Folha negue. […] É preciso que a história saiba o que aconteceu. A i apoiava a repressão, materialmente. […] A Folha apoiou os atos mais escabrosos [da ditadura], mais desumanos. Qualquer que seja a contabilização em números, nada retirará esse caráter essencial do papel da Folha. A contabilização é menos importante do que o significado do ato6.
Apesar da convicção de Otávio Frias de que esses acontecimentos tivessem ocorrido à revelia de seu pai e do sócio, é difícil acreditar que uma decisão desse porte, de emprestar veículos à ditadura — por tudo o que envolvia em relação à imagem, à segurança e ao próprio patrimônio das empresas do grupo — pudesse ter sido tomada por funcionários subalternos. Mesmo se tivesse acontecido dessa forma, é improvável que nenhuma informação sobre essas operações tenha chegado ao conhecimento da direção da empresa. A ela cabe, nos parece, toda a responsabilidade sobre os acontecimentos, seja por ação ou omissão.
Cabe lembrar que esses empréstimos não foram episódicos, mas sistemáticos, sobretudo nos primeiros anos da década de 1970. Wianey Pinheiro, outro jornalista que atuou na Folha no período, concorda com o argumento: “Sem um patrão saber, você acha que isso aconteceria? […] Não, não foi só uma vez, foi uma coisa articulada. Alguém autorizaria sem que a direção maior, os homens da empresa, soubessem?”7.
Os testemunhos que colhemos chamam atenção para o fato de que os atentados contra os veículos da Folha de S.Paulo se deram em virtude do efetivo envolvimento da empresa com os órgãos de repressão, de amplo conhecimento da militância à época. Cesar Augusto Castiglioni, ex-militante da ALN, afirma que, na organização, todos sabiam da posição da empresa. Ele considera que os incêndios foram, acima de tudo, um “ato político” bem planejado, uma forma de denunciar o que vinha acontecendo:
Com certeza havia planejamento. Com certeza. Ou seja, não é que você estava passando pela rua, encontrava um carro da Folha e dizia um para o outro: “Vamos queimar esse carro?”. […] Se fosse só para ser espetacular, não fariam, com certeza. Só pelo espetáculo? Bonito botar fogo em carro? Não. Inclusive porque dá muito trabalho e era muito arriscado. Porque você fazer uma operação dessa envolvia mobilizar gente. E gente que, se fosse pega, morreria. Então, nós não éramos irresponsáveis. Nós não éramos niilistas nem porras-loucas.
[…] Para nós, a Folha era o aparato da repressão. Eu acho muito engraçado. Para mim, é uma hipocrisia. Você ouve os Frias falando desse período: “Ah, se houve carro emprestado foi sem o conhecimento da direção”. Quer dizer que, nesse caso, vale o argumento de que “eu não sabia”. É isso? Você acha que alguém dentro da Folha de S.Paulo ia ter coragem — aí é coragem, é peito — de emprestar o carro da Folha para o DOI-CODI ou para o DOPS sem o conhecimento da direção do jornal?
[…] Você não pode alegar desconhecimento na frente da lei. “É ilegal fazer isso, mas a minha empresa fez”. Você é responsável. […] Eles sabiam. […] Para nós era material, era concreto que a Folha apoiava as ações da ditadura. Se você me perguntar assim: “Você tem provas de que um carro da Folha…?”. Não. Mas tem muito relato da época. Para nós, eu volto aqui a dizer isso, para nós, na época, era claro, era evidente. Os relatos de caminhão da Ultragaz e de carro da Folha de S.Paulo… A gente volta e meia recebia esse tipo de notícia. Estou te dizendo por experiência própria. Se eu fosse entrar numa rua que tivesse um carro da Folha de S.Paulo ou um carro da Ultragaz, eu não entrava. Ponto. Era tão simples quanto isso8.
O jornalista Antonio Carlos Fon também relata, em entrevista à equipe, que os ataques da ALN foram direcionados exclusivamente ao Grupo Folhapor conta de seu envolvimento explícito com os órgãos repressivos da ditadura:
Tem alguma notícia de ataque da ALN contra O Globo? Contra a Veja? Eles nos atacavam também, e eles estavam do outro lado. Mas eles não emprestavam carro para nos assassinarem. Eles não participavam diretamente da ação de combate. […] Você veja, todo mundo colaborava. A Abril colaborava. A Globo dava suporte político. O Estadão também. Ninguém sofreu nada. Nós não atacamos ninguém, não metralhamos ninguém. Não queimamos nenhum carro. Por que nós fizemos isso com o Boilesen e queríamos fazer com o Frias e com o Caldeira? Porque eles se envolveram diretamente9.
André Ota, que à época era estudante de física da USP e militante da ALN, comenta sobre o ataque aos carros da Folha:
Em relação ao Grupo Folha, a gente tinha duas coisas que eram importantes. Uma: eles tinham um jornal, que era a Folha da Tarde, que foi entregue ao DOI-CODI, à Operação Bandeirante, para eles colocarem as informações deles nesse jornal da Folha. E a segunda coisa que eles fizeram foi usar os carros de entrega de jornais, (…) O DOI-CODI começou a utilizar esses carros para preparar armadilhas e ações contra a esquerda, em geral, e nós ficamos sabendo disso. Eu não sei quantos carros nós queimamos, mas cerca de dois ou três pelo menos foram queimados pela organização para mostrar para o Grupo Folha que nós estávamos sabendo. Não era só a Folha, era a Ultragaz, empresa de entrega de gás, era a Light. E tinha outras empresas, caminhão de lixo, essas coisas. Mas a Folha fazia esse trabalho sistemático, entregas sistemáticas com as caminhonetes deles, onde ficavam escondidos os policiais que preparavam as armadilhas para pegar a esquerda (…) Todos nós tínhamos certeza disso, assim como tínhamos certeza [da colaboração] da Ultragaz, que era do Boilesen. (…) A gente ficava sabendo de tudo dentro da organização. Porque as coisas que afetavam a segurança de um, afetavam a segurança de todos. Então, a gente ficava sabendo10.
Ivan Seixas atesta, ainda, que os ataques aos carros da Folha não foram feitos para “censurar” e/ou “silenciar” a imprensa, mas porque os militantes sabiam que o jornal fazia parte do “esquema”: “Foi, objetivamente, porque passou dos limites. Vocês sabem que a gente sabe que os carros são usados. Então, vamos deixar marcado para uma demonstração. Para nenhuma outra empresa fazer isso”11. Por fim, ele enfatiza:
Se não fosse a ALN queimar os carros da Folha, jamais se acreditaria no relato de que eles colaboravam emprestando carros e (…) dando um jornal inteiro para fazer propaganda da ditadura. Eu estou falando tudo isso para dizer o seguinte: os documentos falam, os depoimentos falam, mas as ações da época falam muito mais12.
Essa visão é corroborada por Artur Scavone, outro membro da luta armada (ALN) entrevistado pela equipe:
Eu tenho a mais absoluta certeza de que na medida em que a ação ocorreu, e foi feita pelo GTA [Grupo Tático Armada] da ALN, era absolutamente segura a informação de que eles estavam cedendo os carros para as ações de campana do DOI-CODI. Acho que isso é tranquilo… do que eu vivi, do que eu conheci. Isso não seria, por exemplo, uma ação para tentar criar uma denúncia falsa ou coisa que o valha. Pelo contrário, era uma forma de se tentar provocar a notícia. Por que se queimou o carro? Porque eles estão fazendo tais e tais coisas13.
Outro depoimento importante que nos auxilia a elucidar a responsabilidade do Grupo Folha é do ex-sargento e agente do DOI-CODI Marival Chaves do Canto. Em entrevista à equipe, o agente confirmou a utilização dos carros do grupo, além de ter enfatizado a importância dessa utilização, uma vez que os órgãos da repressão, pelo menos em um momento inicial, careciam de infraestrutura e necessitavam de carros descaracterizados para realizar atividades de vigilância, monitoramento e prisão dos militantes políticos, muitas dessas resultando em mortes:
Eu me lembro que nós não tínhamos essa disponibilidade, essa infraestrutura, um carro fechado. Depois é que apareceu, foi montado um carro com essas características para ser usado nessas operações. Então, não há dúvida nenhuma, eu estou dizendo a você com 100% de convicção que a Folha participava, dava colaboração às operações de rua. Especialmente aquelas operações… eram de cobertura de pontos de rua, onde as pessoas que entravam no ponto morriam. Ninguém, raramente… Houve um caso, por exemplo, na rua, no restaurante Varela, na Mooca; houve o caso, por exemplo, de Antônio Carlos Bicalho Lana. Ele conseguiu romper o cerco com uma metralhadora, a tiros etc. Mas a maioria morreu. Morreu Ana Maria Nacinovic Correa, o irmão dela, a maioria morreu. E naquilo ali tinha, vamos dizer assim, dentro da infraestrutura, tinha participação dessas empresas. E o carro distribuidor de jornal era o ideal, porque era todo fechado, abria a traseira ali… Depois é que foi montada uma Kombi, nós tínhamos lá um veículo Kombi com essa finalidade específica. Quer dizer, inicialmente, quando não se tinha nada, o carro distribuidor de jornal era uma mão na roda, como diz a história, muito útil para esse tipo de coisa14.
De acordo com Marival Chaves, a colaboração da Folha com as ações da repressão se deu principalmente por interesses econômico-financeiros, já que “alguma vantagem esse grupo estava levando, porque eles queriam a perpetuação do regime. […] Não tem ideologia nessa história, tá certo? Aquilo que trouxer benefício para mim, vantagem para a minha empresa, é lá que eu vou estar”15. Assim como outros, o ex-agente da repressão acha pouco provável a tese sustentada pela Folha de que o uso dos carros aconteceu à revelia da alta direção da empresa, já que se tratava de uma atividade de grande risco, passível de comprometer seriamente a sua imagem. Seu depoimento é claro e contundente:
Isso era uma, vamos dizer assim, atividade super arriscada. […] Era um processo de infiltração gigante e isso não passaria despercebido, em hipótese alguma, da direção do grupo. Sem anuência da direção nada disso teria acontecido. Eu não sei decifrar ou me estender sobre o organograma de uma empresa desse tamanho aí, mas a gente imagina que não há como infiltrar alguém ali sem a anuência do grupo. A alta cúpula do grupo se ligava com a do órgão. Sabe onde é, isso aí? Exatamente na V e na II seção do Estado Maior do Exército. Todos os órgãos eram dirigidos, no mínimo, por um coronel, no mínimo. Quando não pelo general-chefe do Estado Maior, que tomava conhecimento disso tudo, que era o comandante do Centro de Operações de Defesa Interna. Não tem o DOI? Não é Destacamento de Operações de Informação? O CODI se prestava exatamente para esse papel aí, de fazer as ligações nas cúpulas das empresas. E aí sim, uma infiltração desse tamanho era decidida nesse nível. Não há como imaginar que a coisa fluísse em outra direção. Não era nem a nível de DOI, você pode ter certeza, era II e V seções. Essas duas seções do Estado Maior comandado por esse general, chefe do Estado Maior, que era o comandante do CODI, do Centro de Operações de Defesa Interna, é que tratava dessas questões, essas ligações em alto nível dessas empresas, não tenho dúvida nenhuma disso16.
Marival Chaves dá detalhes de como eram executadas essas operações que, de acordo com ele, eram bem específicas, feitas a partir de um “entendimento prévio” entre os dirigentes da empresa e os agentes da repressão:
Era um contato feito dentro da direção. Essa direção escalava um carro para tal lugar, tal hora, para estar ali naquele local. Ali, entrava-se em contato com pessoas, dirigentes da operação, posicionava-se o carro no local mais adequado e, a partir daí, o processo se desenvolvia. Para que não houvesse testemunha, o motorista era dispensado: deixa a chave aqui, deixa o carro aqui e você vai dar uma volta por aí e só aparece aqui tal hora. Exatamente para que não houvesse conhecimento. Por exemplo: imagine o motorista estar no local onde ele vai ser testemunha de um tiroteio onde A, B ou C morreram? Então era dessa forma.
O Grupo Folha possibilitou e facilitou as atividades da repressão, provavelmente com o conhecimento e a anuência dos seus dirigentes. Ao emprestar seus veículos, a empresa teve uma efetiva participação em ações que levaram ao monitoramento, à prisão e até mesmo à morte de militantes políticos. Marival Chaves do Canto é, mais uma vez, preciso:
Se não tivesse proporcionado os meios, os recursos, os fins não seriam aqueles. Foram aqueles porque houve uma infraestrutura que facilitou a que se chegasse àquele desfecho. Eu tenho convicção do que eu vou falar: as Forças Armadas tinham limitações financeiras. O CIE, porque estava intimamente ligado ao ministro do Exército, tinha mais liberdade e podia gastar mais. Mas os DOI, não. Os DOI tinham muitas limitações. Os dirigentes foram buscar recursos fora, exatamente por conta dessas limitações. A demanda foi crescendo, crescendo, crescendo e era impossível atender aquela demanda sem o aporte desses recursos. Então, do meu ponto de vista, o que aconteceu se deve e muito a quem proporcionou esses recursos, esse apoio17.
Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carteira Preta” ou “Carlinhos Metralha”, é outro agente da repressão que confirma a colaboração do Grupo Folha com a ditadura. Carlos Alberto foi investigador de polícia e serviu no DEOPS-SP, integrando a equipe de Sérgio Paranhos Fleury. Em entrevista para esta investigação, o policial valoriza o trabalho realizado pela empresa jornalística e defende que os dirigentes deveriam ser recompensados por conta de seus préstimos à ditadura: “Todo mundo que ajudou na repressão tem que ser indenizado. Sem sombra de dúvidas. E com muito dinheiro. Porque o que estão fazendo com ele aqui agora… estão querendo denegrir a empresa dele. Tem que ser indenizado, sim. E com muito dinheiro, tem que levantar o jornal”18.
1. Francisco Carlos de Andrade, entrevista à equipe em 04 de fevereiro de 2022.
2. Francisco Carlos de Andrade, entrevista à equipe em 10 de abril de 2022.
3. Ivan Seixas, entrevista à equipe em 30 de março de 2023.
4. Adriano Diogo, entrevista à equipe em 14 de fevereiro de 2022.
5. José Luiz Proença, entrevista à equipe em 18 de janeiro de 2023.
6. Jorge Okubaro, entrevista à equipe em 13 de fevereiro de 2023.
7. Wianey Pinheiro, entrevista à equipe em 25 de janeiro de 2023
8. Cesar Castiglioni, entrevista à equipe em 19 de fevereiro de 2022.
9. Antonio Carlos Fon, entrevista à equipe em 26 de maio de 2022.
10. André Ota, entrevista à equipe em 5 de maio de 2022.
11. Ivan Seixas, entrevista à equipe em 25 de março de 2022.
12. Ivan Seixas, entrevista à equipe em 30 de março de 2023.
13. Artur Scavone, entrevista à equipe em 23 de março de 2022.
14. Marival Chaves do Canto, entrevista à equipe em 12 de julho de 2022.
15. Marival Chaves do Canto, entrevista à equipe em 12 de julho de 2022.
16. Marival Chaves do Canto, entrevista à equipe em 12 de julho de 2022.
17. Marival Chaves do Canto, entrevista à equipe em 12 de julho de 2022.
18. Carlos Alberto Augusto, entrevista à equipe em 14 de fevereiro de 2023.
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