“A Abin paralela me espionou”

Especialista nas relações sino-brasileiras denuncia delírios ideológicos do bolsonarismo, que instrumentalizou aparatos do Estado: “minha inclusão como alvo é reveladora: o diálogo acadêmico com a China era motivo suficiente para gerar desconfiança, vigilância e intimidação”

Méuri Elle/ Aos Fatos
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Recebi com indignação, mas sem nenhuma surpresa, a confirmação, no relatório final da Polícia Federal, de que fui espionado ilegalmente pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) no contexto da chamada “estrutura paralela” de inteligência montada durante o governo de Jair Bolsonaro. Esta ação criminosa, realizada com o uso do sistema clandestino FirstMile, revela a instrumentalização indevida do aparato estatal com fins políticos motivada por delírios ideológicos de um projeto autoritário de poder, em total desvio de finalidade e sem amparo constitucional, e, por isto, representa uma das mais graves violações aos direitos fundamentais cometidas pelo Estado brasileiro nas últimas décadas.

A responsabilização dos autores e beneficiários desta estrutura clandestina que transformou a inteligência de Estado em uma organização criminosa deve ser ampla, profunda e exemplar. O nosso país não pode conviver com estruturas paralelas de poder que operam na sombra.

Minha trajetória profissional é pública e transparente, e sempre foi pautada pelo compromisso com as instituições onde trabalho. É exatamente por isso que minha inclusão como alvo de espionagem é tão reveladora: ela indica que, para certos setores do Estado naquele período, o diálogo acadêmico com a China era motivo suficiente para gerar desconfiança, vigilância e intimidação. A independência e o prestígio intelectual de que desfruto incomodou setores do poder do Estado. Minha compreensão sobre a China e sobre as relações sino-brasileiras, amplamente difundidas em meus escritos e palestras, ajudaram o país a ampliar os seus horizontes de cooperação com o maior parceiro comercial do Brasil. E disso muito me orgulho.

Continuarei o meu trabalho com motivação ainda maior, e até enquanto encontrar portas abertas, fiel à minha história de mais de uma década dedicada ao fortalecimento do diálogo entre o povo brasileiro e o povo chinês, nações amigas desde 1974 quando os militares brasileiros, em plena ditadura, estabeleceram oficialmente relações diplomáticas com a República Popular da China liderada pelo Partido Comunista da China.

Reafirmo o meu compromisso com uma universidade destemida na busca de saberes que ampliam horizontes, com a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, com a defesa da democracia e da república brasileiras, com os direitos fundamentais e com a construção de um país onde o Estado jamais se volte contra seus próprios cidadãos.

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