WikiFavelas: A cultura das bordas do Brasil
Dicionário Marielle Franco revela os diálogos entre bailes funks, o festival de Parintins e o Carnaval. Enfrentam constantes tentativas de apagamento ou captura, mas reinventam a cultura brasileira e são ferramentas de resistência contra o racismo e o poder colonial
Publicado 23/07/2025 às 18:21

Introdução
As manifestações culturais populares no Brasil – como o carnaval, o boi-bumbá e os bailes funk– não são apenas expressões festivas ou espetáculos de entretenimento. Elas constituem territórios simbólicos e políticos onde se atualizam lutas por reconhecimento, pertencimento e justiça social. Ao analisar essas práticas a partir de verbetes do Dicionário de Favelas Marielle Franco e de experiências de pesquisa de integrantes da equipe, torna-se possível compreender como essas expressões atuam como formas de resistência produzidas nas margens e contra as margens da sociedade brasileira, trazendo à tona questões centrais como racismo, criminalização da pobreza, mercantilização da cultura e apagamento histórico.
No contexto brasileiro, marcado por um passado colonial e escravocrata que ainda reverbera nas desigualdades estruturais do presente, a cultura popular se insurge como espaço de crítica, memória e invenção. O Carnaval, o Festival de Parintins e o Funk, por exemplo, são capazes de revelar como essas manifestações atualizam saberes ancestrais e desafiam narrativas hegemônicas. Seus palcos – o sambódromo, o bumbódromo e o baile – funcionam como arenas de disputa simbólica, onde sujeitos historicamente silenciados projetam vozes, corpos e estéticas que reconfiguram a ideia de Brasil. Esses eventos condensam experiências de resistência coletiva que não se limitam ao espetáculo: estão nas ruas, nas aldeias, nas periferias, nos becos e nas vielas.
Nesse sentido, o presente texto, produzido pela equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, se propõe a refletir sobre os modos como essas manifestações culturais ancestrais operam como formas de resistência cultural e política, mobilizando diferentes linguagens e memórias coletivas. A análise busca evidenciar como essas expressões não apenas sobrevivem às tentativas de silenciamento, mas se reinventam como potentes tecnologias sociais, conectadas por ritmos, ancestralidades e práticas comunitárias. Ao colocar em diálogo essas manifestações, propõe-se uma abordagem crítica e decolonial que compreenda as culturas periféricas como pilares fundamentais da construção da identidade brasileira e da luta por um futuro mais justo e plural.
Cultura popular, resistência e identidade coletiva
É notório que o Carnaval, o Festival de Parintins e o Funk são manifestações culturais brasileiras que, embora distintas em suas formas, compartilham raízes profundas em processos históricos de resistência, criação estética popular e enfrentamento à marginalização. Essas expressões não apenas representam performances culturais, mas constituem arenas de disputas políticas e simbólicas, atravessadas por questões de classe, raça, território e pertencimento. Em um país moldado pela colonização, escravidão e exclusão social, é na cultura popular que se erguem os maiores monumentos de resistência e identidade coletiva. É possível observar e relacionar cada uma dessas expressões, especialmente ao dar ênfase a seus elementos rítmicos, sociopolíticos e comunicacionais, buscando compreender como operam como formas de resistência cultural nas margens da sociedade brasileira.
DaMatta (1997) apresenta um conceito interessante; o autor atrela as revoltas populares e que não são previamente planejadas à movimentos festivos e de rua como o carnaval. Isso porque, em ambas as situações, trata-se de manifestações espontâneas das massas, o que, consequentemente, leva a uma segunda constatação: manifestações culturais podem reagir violentamente à acontecimentos sem assumir plenamente as consequências e implicações políticas dessas ações. Podemos aplicar o mesmo conceito para as demais manifestações culturais aqui comparadas, tendo em vista que não somente são de cunho historicamente popular, mas também fazem parte de uma teia de construções que culminam também em posicionamentos políticos bem determinados.
O Carnaval, nesse sentido, carrega em seus desfiles a expressão mais visível da resistência negra no Brasil, sendo palco onde questões de classe e raça ganham corpo e voz em escala global. Em 2024, a escola de samba Unidos do Viradouro apresentou um desfile intitulado “Arroboboi, Dangbé”, exaltando divindades afro-diaspóricas e combatendo estigmas religiosos associados às práticas de matriz africana. Em 2025, nove das doze escolas que formam o Grupo Especial levaram para a Avenida enredos que exaltam personalidades pretas ou histórias e elementos contemplados em religiões de matrizes africanas, como a Umbanda e o Candomblé. Mas se olharmos para trás veremos a intensa presença de enredos exaltando a africanidade das escolas. A histórica presença de militantes do movimento negro, artistas periféricos e intelectuais nos enredos reforça o Carnaval como espaço de disputa contra o racismo estrutural, mesmo diante das dificuldades enfrentadas pelas agremiações. A concentração dos recursos nas mãos de poucas escolas e o fechamento de espaços públicos para blocos alternativos também evidenciam as tensões de classe, onde a cultura popular resiste ao processo de mercantilização e reafirma a centralidade da negritude na construção da identidade brasileira.
No Amazonas, o Festival de Parintins tem se consolidado como um dos maiores palcos para a celebração e visibilidade da cultura negra, quilombola e indígena da Amazônia, temas importantes na existência e preservação do festival. Exemplo vivo disso é a artista Marciele Albuquerque, Cunhã Poranga do Boi Caprichoso, Indígena Munduruku e ativistas em temas como a fome, mudanças climáticas e preservação ambiental da Amazônia. A parintinense Lívia Christina, que atualmente ocupa o posto de Rainha do Folclore do Boi Garantido, representa uma outra pauta importante e que o Festival ecoa: o público LGBTQIAPN+. Em 2024, ainda como Porta-Estandarte do boi, a artista se apresentou em uma das noites do festival com uma indumentária nas cores da bandeira do movimento e é popularmente conhecida pelos torcedores como ‘A Rainha da Diversidade’.
Nos bailes funk, por sua vez, a disputa simbólica se manifesta de maneira contundente pela apropriação do espaço urbano e pela construção de narrativas periféricas. A criminalização constante de bailes, especialmente nas favelas do Rio de Janeiro, expõe como a estética preta e favelada é sistematicamente associada à marginalidade. Em 2017, o Projeto de Lei 248/2017 chegou a tramitar na Câmara dos Deputados com o objetivo de tipificar o funk como “crime de saúde pública”, evidenciando a tentativa de silenciamento das manifestações culturais das favelas. Ao mesmo pé, a sociedade se depara com diversas ocorrências de operações policiais que se iniciam durante bailes funks nas favelas – o que vai contra, inclusive, a determinação da ADPF 635 que estabelece um horário para início e fim de operações policiais. Recentemente, dois jovens foram baleados durante uma incursão policial que começou por volta das duas horas da manhã na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Outro exemplo, ainda mais chocante, e que atravessa a marginalização do funk até chegar à marginalização de territórios de favela e suas manifestações culturais, foi o do jovem Herus Guimarães Mendes. Ele foi morto a tiros e outras cinco pessoas ficaram feridas durante uma operação policial da PMERJ que se iniciou enquanto acontecia uma festa na favela do Santo Amaro, também no Rio de Janeiro.
Carnaval e Escolas de Samba: um recorte da cultura periférica
No caso do Carnaval, tudo acontece como se a sociedade fosse capaz de inventar um espaço especial onde rua e casa se encontram (DaMatta, 1997). E esse encontro remonta a séculos e pertencimentos diversos. O Carnaval de Pernambuco, especialmente em Olinda e Recife, por exemplo, é uma das festas populares mais vibrantes e autênticas do Brasil. Com raízes que remontam ao período colonial, a festa mistura influências europeias, africanas e indígenas, combinando tradições seculares com manifestações contemporâneas, como os bonecos gigantes – inspirados em festas religiosas – e os papangu, figuras mascaradas que desfilam pelas ruas com trajes coloridos e vibrantes e inspiram foliões em outras partes do país. Em Santana de Parnaíba, São Paulo, por outro lado, Carnaval é uma festa de quilombo: o “Grito da Noite”, manifestação secular, marca a abertura oficial do carnaval parnaibano. Os cabeções, que acompanham o cortejo são uma das mais legítimas representações da arte popular quilombola, conservando práticas culturais como o samba de bumbo.
No Rio de Janeiro, usando como referência o Carnaval para além das ruas – ou seja, o carnaval dos subúrbios, dos bate-bolas e da resistência longe dos holofotes – , a festa operou historicamente como espaço de reinvenção simbólica das classes populares negras. Desde o primeiro desfile, em 1932, na Praça Onze, o desfile das escolas de samba tornou-se palco de narrativas históricas e míticas que resgatam a ancestralidade, abordam religiosidade e denunciam injustiças sociais, além de, pontualmente, realizarem homenagens à determinadas instituições ou pessoas.
No entanto, a legitimação da cultura periférica carioca foi fruto da luta das comunidades e da disputa por popularidade dos governos à época. As camadas populares usaram a ideia de “escola de samba” como uma estratégia para ganhar mais respeito e visibilidade perante as autoridades. Ao escolherem esse nome, foram capazes de valorizar suas tradições culturais e dar a elas uma nova aparência, que é reinventada a cada carnaval. A escola se tornou um meio de inclusão social e de afirmação cultural. Por meio dessas agremiações, conhecimentos e experiências anteriormente negligenciados pelas instituições oficiais começaram a receber atenção, sendo considerados com seriedade e reconhecimento. As escolas transformaram-se em locais onde as comunidades puderam compartilhar sua própria narrativa e celebrar figuras e temas que anteriormente não tinham espaço. Ademais, cada escola começou a criar símbolos e traços próprios, reforçando as conexões com as regiões em que se encontram e contribuindo para a formação da identidade local. Em síntese, é possível dizer que as escolas de samba, por meio de seus enredos, apresentações e músicas, oferecem uma rica experiência de aprendizado sobre história, cultura e identidade. Elas se consolidam como espaços de valorização do conhecimento afro-brasileiro, contribuindo significativamente para a promoção do respeito e a luta contra o racismo.
Exemplos como “Heróis da liberdade” do Império Serrano em 1969, foi considerado até mesmo um samba que desafiou os militares em um período de Ditadura Militar, cantando sobre liberdade em um momento que tal ato poderia ser considerado subversivo. Na década de 1980 tivemos obras como “A Grande Constelação de Estrelas Negras”, da Beija-Flor de Nilópolis e do renomados Joãosinho Trinta como carnavalesco e Laíla diretor de carnaval, desfile que acabou se consagrando campeão. Em 1988 tivemos duas obras de arte: a Mangueira trouxe uma homenagem aos cem anos de abolição da escravatura como o enredo “Cem anos de liberdade, realidade e ilusão”. Um enredo extremamente crítico sobre o que foi feito nesses 100 anos para a vida da população negra e exaltando o papel do negro na construção do Brasil. Por fim, o enredo da escola campeã desse mesmo ano, a Vila Isabel foi “Kizomba, a festa da raça”. Mais um enredo que contou a comemoração dos cem anos de abolição da escravatura, prestigiando a figura de Zumbi dos Palmares, extremamente exaltado durante o samba na avenida – enredo obra do mestre Martinho da Vila.
A exaltação da cultura e religiosidade afro também fazem parte do dia a dia das escolas. Sem que isso pareça uma doutrinação e, sim, uma celebração de sua própria herança. A festa também se consolida como forma de resistência e valorização de figuras culturais que, em outros espaços de representação, costumam ser ignoradas ou deixadas de lado. Atualmente, estamos vivenciando uma nova safra de carnavalescos, o que pode contribuir muito para a manutenção de enredos que falem verdadeiramente sobre quem constrói o Carnaval. Por muitos anos, talvez para ficar mais palatável ao grande público, homenagens um pouco mais genéricas foram utilizadas, e alguns enredos um tanto confusos foram colocados no solo sagrado da Avenida.
Fato que merece destaque é que, olhando para o cenário da maioria dos intérpretes do Grupo Especial do Rio de Janeiro – pessoas responsáveis por cantar o enredo das escolas de samba na Avenida –, encontramos uma predominância de artistas negros. Por outro lado, não há a mesma representatividade nos altos cargos das escolas de samba do grupo especial; apenas a Mangueira conta com uma mulher negra no cargo de presidente, sendo ela Guanayra Firmino, que assumiu o cargo pela primeira vez em 2022 e foi reeleita, continuando no cargo até 2028, coincidindo com o centenário da escola.
É importante ressaltar que dentro e fora da Avenida, as escolas de samba cumprem um papel que está além de exaltar figuras e elementos que são parte da resistência e representatividade da festa; elas também não deixam que barbáries sejam esquecidas. Um exemplo recente e marcante é protagonizado pela Mangueira, que em 2019 marcou o carnaval com um samba-enredo que retratou as trajetórias dos povos negros e indígenas, permitindo uma reflexão sobre o potencial educativo do carnaval no combate ao racismo no Brasil. A mesma letra tratou também sobre a memória da vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em março do ano anterior.
Festival Folclórico de Parintins: uma representação nortista
Por outro lado, ao norte do país, o Festival de Parintins, realizado na Ilha Tupinambarana do estado do Amazonas, articula narrativas de identidade regional, pertencimento quilombola e representações indígenas nas mais variadas formas, distribuídas nos seus 21 itens avaliados durante as apresentações. A disputa entre os bumbás protagonistas da festa, Caprichoso e Garantido, que acontece há quase 60 anos, é mais do que uma celebração folclórica, é um campo de representação política e cultural. Ambos os bois são alimentados por toadas que valorizam os saberes ancestrais, a resistência dos povos da floresta, a defesa dos territórios indígenas e os perigos do avanço predatório sobre a Amazônia. Além das apresentações artísticas, o festival é sustentado por trabalhadores — carpinteiros, artesãos, costureiras, artistas e coreógrafos — que constroem uma linguagem visual marcada por elementos da floresta, da religiosidade popular e das lutas de povos originários. Para àqueles que realizam o sonho de se fazerem presentes na Ilha da Magia em período de festival é comum acordo: as apresentações no Bumbódromo não são apenas espetáculos, são atos políticos.
No contexto histórico, o “Boi-Bumbá” é uma expressão cultural originária do Nordeste, especialmente do Maranhão, que foi trazida pelos primeiros migrantes desse estado para o Amazonas, em sua maioria, ao povoar o extremo norte do país. A festa é centrada na representação da lenda do Boi-Bumbá, que tem início com Mãe Catirina, grávida, expressando o desejo de comer a língua do boi mais bonito da fazenda. Para satisfazê-la, seu esposo, o vaqueiro Pai Francisco, sacrifica o animal de estimação do patrão. O delito é revelado, e Francisco é detido. Para salvar o boi, o proprietário da fazenda manda chamar um padre e um médico, que conseguem trazer o animal de volta à vida. O vaqueiro é perdoado, e todos celebram com uma grande festa. Quando adaptada para Parintins, a lenda passou por algumas alterações: o médico foi trocado por um pajé, o personagem negro foi substituído por um indígena, e a prisão de Pai Francisco só ocorre com o auxílio de uma tribo indígena.
O Caprichoso foi fundado em 20 de outubro de 1913, resultado de muitas mãos de pessoas como Seu Roque Cid e seus irmãos Antônio Cid, Beatriz Cid e Pedro Cid, originários de Crato, no Ceará, que chegaram a Parintins em busca de trabalho e fizeram uma promessa a São João Batista: se conseguissem emprego, dedicariam um boi ao santo; dessa forma, surgiu o Caprichoso, o boi negro com uma estrela na testa. Do outro lado, Lindolfo Monte Verde criou seu próprio boi no mesmo período, que começou como uma simples brincadeira entre as crianças no quintal de sua residência. Com o apoio de sua mãe, Dona Alexandrina, ele confeccionou as primeiras camisas e chapéus vermelhos. Com 18 anos, Lindolfo enfrentou sérios problemas de saúde durante uma viagem ao Pará e fez uma promessa a São João Batista: se fosse curado, seu boi brincaria para sempre. A promessa foi realizada, dando origem ao Boi Garantido, nas cores vermelha e branca, com um coração na testa, conhecido como o boi do povo.
O Festival Folclórico de Parintins foi estabelecido em 1966 para gerenciar os conflitos entre os torcedores dos dois bois. A proposta originou-se de um grupo de jovens da Juventude Alegre Católica (JAC), vinculado à igreja. De acordo com Raimundo Muniz, um dos idealizadores, a violência entre os brincantes nas ruas havia se tornado insustentável. Alguns afirmam que o festival, além de promover a paz, foi criado como um meio de arrecadar dinheiro para os projetos da igreja. A festa foi se expandindo e atraindo atenção, o que culminou em mudanças na organização do evento, que passou a ser responsabilidade da Prefeitura de Parintins em 1983. Com o suporte do governo, houve investimentos em infraestrutura e promoção. As apresentações ainda eram feitas em tablados de madeira improvisados até 1987. Somente em 1988, o governo do Amazonas abriu um local específico para o festival: o Centro Cultural e Desportivo Amazonino Mendes, chamado popularmente de Bumbódromo, em alusão ao sambódromo do Rio de Janeiro.
Funk: o símbolo dos bailes e da resistência
Nascido em becos e vielas nos anos 1980, o funk é a trilha sonora de uma juventude excluída que encontrou na música uma forma de comunicação direta, urgente e transformadora. Como apontam Adriana Facina e Dennis Novaes, os bailes funk não são um desdobramento direto dos bailes black, mas herdam seus elementos principais: música tocada em alto som, público de maioria negra, criatividade nas danças e uma moda característica. A sonoridade da bateria eletrônica se espalhou pelo mundo na década de 1980 e não foi diferente nos bailes cariocas. A expressão “funk” passou a ser usada neste período de forma genérica para se referir a uma variedade de gêneros musicais como o latin freestyle, miami bass, electro funk e hip-hop. Os bailes continuavam a crescer em quantidade e tamanho. Centenas de equipes de som organizavam festas por toda a cidade, reunindo milhares de pessoas. Foi neste período que equipes de som como a Furacão 2000, Pipo’s, Cash Box e Soul Grandprix — algumas delas atuantes desde a década de 1970 — se consolidaram no imaginário não só de funkeiros cariocas como de fãs em várias cidades do país.
Apesar do sucesso inquestionável, historicamente, os bailes têm sido alvo não das políticas de cultura, mas de segurança pública. A implementação das UPPs ao final da década de 2000, por exemplo, alterou o cenário do funk carioca, proibindo bailes e festas e reproduzindo uma cultura de criminalização da arte negra e periférica. Segundo pesquisa realizada pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, publicada no Dicionário de Favelas Marielle Franco, entre 2002 e maio de 2025, foram identificadas pela equipe de pesquisa 130 proposições com esse objetivo. A partir de 2019, observou-se um aumento significativo na elaboração de projetos que associam o funk à apologia ao tráfico de drogas e à sexualização de crianças e adolescentes. Somente nos cinco primeiros meses de 2025, já foram registradas 63 propostas que tentam criminalizar esse gênero musical, originado nas favelas e periferias cariocas.
A repressão aos bailes, a criminalização de MCs e a associação compulsória com crime e violência fazem parte de uma estratégia de controle dessa arte que segue sendo resistência, especialmente na vida de jovens negros. Como lembra a pesquisadora Tamiris Coutinho, em fala publicada no Estadão, “o funk brasileiro é um movimento de resistência” que insiste em existir mesmo diante da perseguição social. Essa representatividade é também simbólica: ao ocupar espaços — seja em bailes de rua, rádios comunitárias ou playlists nas plataformas digitais —, o funk afirma a presença e o pertencimento de histórias, muitas vezes, marginalizadas pelo Estado.
A resistência do funk se expressa claramente na reação à criminalização e à violência institucional. A prisão recente de MC Poze do Rodo, em maio deste ano, é um exemplo perfeito desse embate: ele foi algemado, sem camisa e sem sapatos, numa operação que pode ser classificada como um espetáculo de humilhação estatal. Dado o exemplo, é importante pontuar que não há recurso financeiro que consiga impedir que jovens negros sejam constantemente criminalizados; mesmo com uma situação financeira considerada estável e acima da média, Poze sofreu tamanha violência dentro de sua própria casa. Essa perseguição, que inclui acusações de “narcocultura”, repete um padrão histórico da criminalização de expressões negras e periféricas, que já atingiu o próprio samba, como trabalhado a seguir na figura do carnaval. Com o avanço da internet, contudo, esses episódios provocam reações em massa – como a campanha “MC não é bandido“, que aconteceu também na forma de “DJ não é bandido”, com a prisão de Rennan da Penha – e renovam a energia do movimento, que se vê chamado a defender a própria existência.
A importância do funk transcende o campo artístico: ele funciona como instrumento de denúncia social. Letras explicitamente narrativas retratam a violência vivida nas favelas, a ausência do Estado e a evasiva lógica de sobrevivência que muitos enfrentam. Conforme apontou o antropólogo Vinícius Rodrigues, em matéria recente para o UOL, “retratar a desigualdade social em letras de música não é crime”, mas foi institucionalizado como tal, o que evidencia escancaradamente a falta de tato para lidar com questões gritantes de desigualdade da nossa sociedade – e o racismo. Dessa forma, o funk também assume um caráter político, não apenas cultural, ao apontar diretamente para a iniquidade estrutural e cobrar visibilidade e direitos para a sociedade.
Interculturalidade intrínseca entre essas expressões
O que une essas três expressões é, entre outros, a centralidade dos sujeitos em sua constituição e a tentativa constante de apagamento ou neutralização de seus potenciais críticos. Podemos perceber que a interculturalidade entre ambas as manifestações culturais atua diretamente como ferramenta política contra a colonialidade do poder que persiste, muitas vezes, de forma mascarada nos detalhes que circulam as festas. Além disso, é impossível não pontuar a tentativa de controle capitalista que permeia ambas as festas e, cada vez mais, faz dessas manifestações culturais um comércio exagerado e inacessível, no fim das contas, para as próprias mãos as que constroem. Falando sobre mercantilização especificamente, os ingressos para o Festival de Parintins de 2025 custaram entre R$4800 e R$2880 (para os três dias), enquanto alguns setores para os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro tiveram ingressos a mais de R$2000 (por dia). Com um olhar superficial e pouco senso crítico, esses valores podem até não assustar; mas vale lembrar – e reparar – que quem constrói esses eventos não é o público que pode, em sua maioria, se dar ao luxo de gastar um valor desses para admirar a sua própria obra.
Por outro lado, essas manifestações seguem operando como tecnologias sociais de resistência. É perceptível que essas expressões, mesmo diante da adversidade, constroem circuitos próprios de engajamento comunitário não somente para o público que constrói cada uma, mas também para aqueles que seguem como espectadores e admiradores das culturas. Com o olhar que vai além dos grandes eventos que fazem parte das tradições, sendo eles os bailes funks, o carnaval do sambódromo e o Festival de Parintins, o engajamento dos admiradores acontece 365 dias no ano: no carnaval, isso se dá nas rodas de samba e ensaios de quadra; em Parintins, no boi de rua e alvorada; no funk, nas batalhas de passinho e nas rodas de funk que se espalham pelas favelas e periferias.
Além disso, os ritmos são centrais como linguagem política. O repique e o tamborim no samba, a percussão da Marujada e Batucada e o batidão ritmado do funk compartilham a função de reunir corpos e memórias, evocando ancestralidades e sendo, de forma contagiante, manifestações de expressão de canto, dança e toque. O Carnaval, o Festival de Parintins e o Funk não são apenas festas ou produtos culturais, mas formas de resistência e reinvenção política. Suas conexões revelam como as culturas populares operam, simultaneamente, como território simbólico e material de disputa, onde sujeitos historicamente marginalizados reinventam a cultura brasileira, com uma disputa saudável da representatividade se suas manifestações; elas não se sobrepõem, elas conversam e se conectam a todo tempo. Olhar para essas representações a partir de uma perspectiva crítica e decolonial é fundamental para compreender os embates contemporâneos por memória, identidade e justiça cultural no Brasil.
Bibliografia:
DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
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