Wikifavelas, 5 anos de memória decolonial

A (re)existência do Dicionário Marielle Franco, em tempos difíceis. Suas bases: construir um novo olhar coletivo sobre as periferias. Seu novo projeto: Memória Viva, em que líderes comunitários contarão o que a branquitude esconde

Imagem: David Amen/WikiFavelas
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Por Cristina Pedroza de Faria (Kita Pedroza), Palloma Menezes, Gizele Martins, Hugo Oliveira e Clara Polycarpo

Título original:
A memória viva como direito humano para as favelas e periferias

A proximidade da data em que foi lançada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 10 de dezembro de 1948, nos convida a pensar sobre contextos em que a construção de direitos é uma vivência cotidiana. Segundo o Relatório Mundial 2024 da organização Human Rights Watch, houve uma exacerbação do cenário de supressão de direitos humanos, em termos mundiais, em comparação com o ano anterior, assim como dos conflitos bélicos e das desigualdades econômicas. Fazem parte destas circunstâncias o aumento do sofrimento humano frente ao provável novo recorde de aquecimento global, em 2024, e dos eventos climáticos extremos decorrentes de diversos fatores.

Em termos de conflitos geopolíticos, além de demarcar a não aceitação dos horrores vividos no passado, a Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada pós Segunda Guerra Mundial, segue buscando, hoje, do alto dos seus 76 anos, instituir limites para centenas de conflitos armados que tornam o mundo cada vez mais violento – entre guerras em maior e menor escala. Hoje, o direito à vida em si se encontra a tal ponto ameaçado, que viver dignamente também é, ainda, um enorme desafio para grande parte da população mundial. É o que, por exemplo, vemos a partir da continuidade do genocídio bárbaro contra o povo palestino, no Oriente Médio, e a estatização das mortes sendo também legitimada contra a população negra e favelada, no Brasil. Violências estas estruturadas na base de desigualdades e opressões seculares. Segundo relatório divulgado no artigo O novo mapa da desigualdade global, “os 10% mais ricos da população global atualmente respondem por 52% da renda global, enquanto a metade mais pobre da população ganha 8% dela”.

No Brasil, apesar das tímidas melhorias recentes em indicadores sociais como o da pobreza extrema – que recuou 5,9% no período entre 2021 e 2022 -, persiste a desigualdade estrutural de renda: o 1% mais rico tem rendimento médio mensal per capita 31,2 vezes maior do que os 50% mais pobres, de acordo com a edição 2024 do Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades. Vale lembrar o caráter interseccional das desigualdades sociais, que atravessam diferentes marcadores sociais como gênero, relações étnico-raciais, fatores econômicos, educacionais e socioespaciais. Um exemplo, entre muitos, é o fato de o maior contingente de pobres se concentrar entre as pessoas de cor/raça preta ou parda, ou seja, 40,0% em 2022 – patamar duas vezes superior à taxa da população branca (21%).

Nesse contexto, a DUDH permanece sendo um importante instrumento político e simbólico, que funciona como parâmetro de luta para diversos segmentos sociais, entre eles, representantes de povos originários brasileiros e inúmeros movimentos sociais urbanos. Em nome dessas lutas por mudanças concretas em circunstâncias históricas de opressões que atravessam a nossa história, lideranças faveladas perderam a própria vida, como é o caso da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, por motivações políticas. Após 6 anos de investigações, finalmente, os atiradores responsáveis pelo seu assassinato foram condenados, sendo obrigados a pagar multas e indenização para os familiares. Os mandantes, porém, seguem sem o devido reconhecimento e punição pelo Estado.

Inclusive, em dezembro de 2024, no marco desta data, o Brasil foi oficialmente condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como responsável pelo desaparecimento forçado de 11 jovens que viviam em Acari, favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, no caso que, há 35 anos, ficou conhecido como a Chacina de Acari. O tribunal também considerou o Estado responsável por falhas graves na investigação dos fatos e dos homicídios de duas familiares que investigavam o caso, determinando medidas de reparação para as famílias. A luta pelo direito à vida é também uma luta pelo direito à memória e à reparação.

Marielle Franco colaborou com a construção do Dicionário de Favelas Marielle Franco, que completa 5 anos em 2024, e foi homenageada, com a inclusão do seu nome neste projeto que dá continuidade a suas lutas. Ela ficou conhecida mundialmente por sua luta em defesa dos direitos humanos, especialmente das mulheres negras, dos moradores de favelas e da população LGBTIQIA+. Tentaram calar sua voz, como fizeram com tantas outras lideranças populares, mas sua trajetória deixou muitas sementes e o Dicionário de Favelas tem o compromisso de difundir os valores pelos quais ela viveu e morreu. Neste sentido, uma rede contra a violência, por memória, verdade e justiça, tem sido cada vez mais fortalecida – sendo o Dicionário de Favelas Marielle Franco parte dessa compromisso.

Por direito à memória e por direito à vida: ecos da re-existência

Dentre as inúmeras lutas existentes, no Brasil, pelo direito à voz, memória, auto representação e construção de conhecimentos relativos a favelas e periferias, o Dicionário de Favelas Marielle Franco completa 5 anos, tendo como compromisso contribuir e participar na trajetória de lutas de moradores desses territórios pela valorização de sua participação social na construção das cidades, da democracia e pelo direito a viver dignamente nos locais onde construíram as suas raízes.

Por meio da WikiFavelas, plataforma virtual de acesso aberto para a produção e registro de conhecimentos sobre favelas e periferias, o Dicionário de Favelas busca estimular a construção coletiva de conhecimentos, histórias, memórias e dados sobre favelas e periferias no Brasil e no mundo. Com o intuito de reconhecer o protagonismo das populações desses espaços, nos diversos setores da vida social, desenvolve uma série de ações – pesquisas, oficinas, parcerias, seminários, ciclos de estudos etc. Uma de suas iniciativas mais recentes nesse sentido é o projeto “Memória Viva”, lançado em novembro de 2024, que integra os esforços de disseminar o entendimento da memória como direito humano, ao reunir entrevistas com lideranças comunitárias de vários territórios da cidade do Rio de Janeiro – como veremos a seguir.

Desde 2019, quando lançado no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica da Fiocruz (Icict/Fiocruz), o projeto avançou, tanto em capacidade técnica, como também em possibilidades de articulação para além da internet, em parcerias e colaborações. Atualmente, a WikiFavelas registra mais de 2.000 verbetes produzidos por cerca de 1.700 colaboradores cadastrados de forma gratuita, e tal avanço se traduz por meio do enraizamento da plataforma em diferentes setores, assim como na diversidade de territórios, coletivos e grupos presentes neste ambiente de acesso aberto. Suas ações transbordam o meio virtual, como é o caso do projeto “Memória Viva“, que traz para o foco central memórias coletivas expressadas a partir de entrevistas gravadas com lideranças históricas de diferentes territórios que fazem parte da construção e da organização do movimento de favelas do Rio de Janeiro.

Dessa forma, o Dicionário de Favelas se consolida como uma ferramenta de produção e circulação de saberes periféricos que desafia as epistemologias hegemônicas e promove práticas de re-existência. Conforme Adolfo Albán Achinte (2017), “re-existência” vai além da resistência tradicional, frequentemente entendida de forma binária como uma resposta ao poder opressor. A re-existência sugere uma dinâmica criativa e insurgente que reinventa modos de ser e existir no mundo, a partir de estéticas, práticas e pedagogias que desafiam as lógicas coloniais.

Nesse contexto, o Dicionário de Favelas abriga memórias, afirma identidades e valoriza saberes comunitários. Essa iniciativa dialoga diretamente com a perspectiva decolonial (Torres, 2017; Walsh, 2013; Mignolo, 2015), ao contribuir para a construção de alternativas às estruturas modernas/coloniais de poder e conhecimento. Segundo Maldonado Torres (2017), a re-existência opera na confluência entre o incerto e o contraditório, elaborando-se nos corpos, territorialidades e subjetividades que reconfiguram o presente.

O Dicionário de Favelas, como espaço de articulação entre arte, política e ativismo, amplifica o eco dessas práticas. Ele promove insurgências que questionam narrativas dominantes e fortalecem territórios de produção coletiva de saberes, alinhando-se às epistemologias do Sul (Santos, 2010). Esses saberes emergem não apenas como contrapontos, mas como proposições que afirmam a potência criativa das favelas. Como destaca Achinte (2017), a re-existência implica uma (re)invenção cotidiana que se manifesta em múltiplos campos, como o artístico, o político e o pedagógico, potencializando as transformações sociais.

Ao celebrar essa trajetória de 5 anos, o Dicionário de Favelas reafirma seu compromisso com a construção de mundos possíveis, onde as vozes subalternizadas assumem centralidade. Essa prática reflete um contínuo processo de re-existência que não apenas responde às imposições coloniais, mas cria caminhos de emancipação e autonomia para os territórios periféricos. Assim, torna-se não apenas um espaço de registro, mas um território de luta e transformação, onde a resistência se converte em uma potência de re-existir.

O projeto “Memória Viva”

Em comemoração aos 5 anos do Dicionário de Favelas Marielle Franco, o “Memória Viva” foi lançado reunindo entrevistas com lideranças comunitárias de vários territórios da cidade do Rio de Janeiro, com produção da equipe do projeto, em parceria com o 146x Favelas, a Distribuidora VídeoSaúde e o Canal Saúde (os últimos dois integrados à Fiocruz).

Ao longo do ano, a equipe foi a campo entrevistar lideranças e articuladores de diferentes gerações, cujas trajetórias fazem parte das histórias das favelas e periferias onde atuam e expressam o próprio processo de construção da cidade. O resultado consistiu na produção de uma série de vídeos e podcasts disponíveis na WikiFavelas. Os episódios são apresentados por Mônica Francisco, liderança histórica do Morro do Borel, cientista social e ex-deputada estadual, que, a cada episódio, bate um papo sobre as trajetórias de lideranças de favelas. A ideia do projeto é criar um espaço de conversa no qual moradores(as) possam reviver lembranças do passado, fazer análises da presente conjuntura e debater perspectivas sobre o futuro das favelas.

Nesta primeira fase do programa, foram ouvidas 13 lideranças históricas de diferentes territórios, que fazem parte da construção e organização de movimentos de favelas no Rio de Janeiro, além da coordenadora do Dicionário de Favelas. Suas histórias e atuações perpassam as Zonas Sul, Norte e Oeste da cidade, além da Baixada Fluminense. São elas: Itamar Silva (Santa Marta); Alan Brum (Complexo do Alemão); Sr. Beserra (Manguinhos); Cleonice Dias (Cidade de Deus); Claudia Rose (Maré); Iara e Carlos (Cidade de Deus); Marcelo Dias (MNU); Sonia Fleury (Dicionário de Favelas); Juliana França (Japeri); Jurema Batista (Andaraí); Mônica Francisco (Borel) e Benedita da Silva (Chapéu-Mangueira).

O projeto “Memória Viva” surge da necessidade de se debater as relações entre direito e memória partindo de experiências de quem constrói a cidade a partir de suas margens. Tal necessidade se faz presente porque até pouco tempo atrás as favelas ainda estavam ausentes nos mapas da cidade do Rio de Janeiro. Inclusive, é apenas em 2024, como parte dessa busca pelo direito à memória, que o IBGE, finalmente, altera a nomenclatura sobre a significação das favelas e periferias do país, valorizando as categorias “favelas e comunidades urbanas” como forma de identidade e reconhecimento da importância de dar voz e visibilidade a localidades historicamente marginalizadas.

Neste sentido, as décadas de exclusão e o desconhecimento público de sua história na construção da cidade expressam como as favelas por muito tempo foram relegadas ao esquecimento. Ao relegar a favela à condição de não pertencimento, Estado e sociedade promovem não apenas a exclusão territorial, mas também a degradação e a perda da memória, da ação e da fala, já que é com palavras e atos que nos inserimos no mundo, como lembram Fleury e Menezes (2022, p.320):

“No caso das favelas, a permanente construção de uma memória coletiva sobre esses territórios é parte do processo de positivação da identidade da população favelada, bem como da luta pelo reconhecimento e pelos direitos de cidadania a uma cidade inclusiva. Nesse sentido, a luta pelo direto à memória nas — e das — favelas não pode ser compreendida sem que lembremos o quanto os moradores desses territórios tiveram — e ainda têm — de lutar para (re)existir e mostrar que a favela e os favelados, além de carências, também possuem múltiplas potências.”

Ao serem enquadradas como um problema para a cidade, as favelas, ao longo da história e ainda hoje, são representadas, com frequência, de forma negativa no debate público. Tentando questionar essas representações e os impactos negativos e violentos que ela produz em seus cotidianos, moradores dessas localidades buscam, por meio da cultura e do resgate da memória, disputar o significado de ser favelado(a).

A disputa do que é ser favelado ocorre na luta por direitos, nas diferentes formas de associativismo e também na afirmação de identidades plurais, faveladas, reivindicando cidadania através de manifestações culturais. Tais lutas envolvem a emergência de novos sujeitos políticos em favelas e periferias designada por D’Andrea (2020) como a emergência dos sujeitos e sujeitas periféricos. Trata-se da afirmação e da positivação da identidade das juventudes de favelas e periferias, construídas em torno da polarização entre carências e potências, lugar desde o qual, por meio de manifestações culturais e estéticas, problematizam-se questões de classe, raça e gênero. Tais questões aparecem sob diferentes formas, como letras de música e dança, e uma estética própria (hip-hop e funk, poesia e dança), como nas batalhas de slams e do passinho, dentre outras, mas aparecem também em muitos projetos de memória em favelas.

Desde os anos 1990, proliferam ações que permitem identificar a manifestação da vontade de memória, da vontade de patrimônio e da vontade de museu em favelas. Hoje, há inúmeros projetos sociais dedicados ao tema da memória em áreas faveladas. São projetos que, endógenos ou não, defendem a ideia de que a favela tem memória, de que é não apenas parte da cidade, mas parte historicamente relevante do urbano carioca, como bem resume Mônica Francisco:

“Essa coisa da memória é uma coisa que vem caminhando com a gente há um bom tempo, olhando para os museus de favela, para os museus de favela a céu aberto, como é no Cantagalo, Pavão Pavãozinho e tantos outros espaços. Esse conceito de memória é muito a partir da favela, (…) de olhar para os lugares, para as pessoas, para a ação no cotidiano. Então, trazemos isso como uma ação e eixo importante e estratégico do Dicionário de Favelas Marielle Franco (…), que tem a ver com a discussão no Santa Marta da cidade como favela, a partir da ocupação desses lugares pelas Unidades de Polícia Pacificadora, e com o quanto a memória desses espaços é fundamental. (…) Essa presença e dinâmica de expansão desse projeto cada vez mais vai se refinando na atuação e garantindo que memória é importante, memória viva”.

Alguns dos projetos de memória em favelas trabalham com a produção de textos escritos, outros com história oral, outros com coleções de fotografias, documentos ou mesmo objetos. No caso do “Memória Viva”, a ideia desde o início foi a construção de um projeto que tivesse como protagonistas os moradores de favelas, trocando experiências sobre suas próprias histórias, fazendo balanço de mudanças de conjuntura e refletindo sobre a cidade e o país a partir das favelas, como destacou Iara Oliveira ao contar sobre projeto de memória que desenvolve na Cidade de Deus:

“No Alfazendo, a gente trabalha a memória. Então, quando os jovens entram aqui, a primeira formação deles é identidade. (…) Porque, se você não sabe quem é, de onde veio e qual é a importância da sua família, da sua formação e do local onde vive, você não luta por ele. (..) Então, quando você fala de favela, hoje as favelas estão sem identidade. As pessoas mais velhas estão morrendo e estão deixando sem registro. A gente criou um centro de memória virtual, o ‘Fala aí CDD’, onde já tem uns 4 a 5 mil pessoas (…). O registro é muito importante. (…) Então, quando a Iara não estiver mais aqui, que venham outros jovens e que lutem pela Cidade de Deus, mas sabendo que existiu um comitê comunitário, que existiu uma Cleonice, que existiu um Carlos, que existiu o padre Júlio, a Zélia Batista, e que essas pessoas foram importantes pro crescimento e desenvolvimento local. O trabalho do Dicionário vem um pouco nessa lógica, de você rever e registrar quem são as pessoas e esses movimentos locais que fazem a cidade, na verdade, construída todo dia. Porque quem constrói a favela são os favelados. As cidades são os favelados. E nós é que construímos as favelas”.

Ter uma moradora de favela com tanta experiência na vida associativa de favelas e no debate e luta política como Mônica Francisco fez toda diferença para que as entrevistadas e os entrevistados construíssem uma conversa densa e politizada sobre suas trajetórias, afetos, experiências, frustrações, medos, desejos e projeções de futuro. Como bem explicou Alan Brum, essas conversas visavam “trazer aliados a partir de conhecimentos produzidos desses territórios, das vivências, das suas memórias, trazer a memória para o futuro. A gente adora trabalhar com o contrassenso das palavras. É raiz do desenvolvimento, é memória para o futuro. Porque é isso, porque a gente precisa conhecer a história para avançar”.

Também pensando sobre passado e futuro, no lançamento do projeto “Memória Viva”, no dia 28 de novembro, no Programa Sala de Convidados do Canal Saúde, Cleonice Dias contou que gosta de usar a imagem de arco e flecha nas mãos de uma mulher negra para pensar a memórias nas favelas:

“É só pensar, pra direcionar bem, né? Uma flecha você tem que puxar bastante. O arco tem que puxar e com a maior certeza possível do alvo. E estrategicamente você tem que olhar onde quer chegar, olhar a força que faz. E voltar é voltar sempre na história construída. A luta no passado, né? (…) Quando a gente olha para a estrutura da cidade do Rio de Janeiro, nós vemos que a primeira ‘Cabeça de Porco’ que sai do centro da cidade sai porque, ali no centro, não podem ficar os pobres. E eles têm que ir buscar a favela. Junto com isso, vem a ideia de classe perigosa, que é importada da França e aí associada aos pobres – pobres e negros. E aí, você dá um passo à frente e acerta para entender o que está acontecendo hoje e volta para o passado. Você olha o que foi construído historicamente. do ponto de vista dos povos que são submetidos, que estão empobrecidos; não do ponto de vista da classe dominante, de quem tem o poder, mas de quem luta. E aí a gente tem um outro contexto: a favela. Ela é a afirmação, porque é uma resistência em todos os níveis. (…) São as mães crecheiras, as avós que levam as crianças para escola, quando as mães estão trabalhando. Tem uma resistência viva de vida na favela.”

Ainda no programa de lançamento do programa, Itamar Silva ressaltou a importância de se pensar na história da cidade a partir de um olhar territorializado, generificado, racializado e coletivo. Como afirmou o morador do Santa Marta, a importância do projeto “Memória Viva” se relaciona com o momento em que a gente vive:

“Eu acho que a gente vive um momento de muitos individualismos. Há uma exacerbação da capacidade individual de cada um. E parte da juventude carrega essa pretensão, essa capacidade. Acho que o Memória Viva recoloca algumas figuras no centro da reflexão, na medida em que traz a experiência, conta o passado de alguns militantes moradores daquela favela, a importância desse engajamento e propõe o diálogo, permitindo que essa juventude se reconheça nos seus. O projeto traz elementos da história das lutas, da necessidade da construção pensando no futuro. Então acho que carrega esse potencial, uma memória viva de estabelecer esse encontro entre gerações diferentes, mas que estão ali, naquele mesmo território, ou na mesma situação de desigualdade. (…) Então acho que é fundamental. (…) Tem um passado, uma história com a qual a gente precisa se reconectar, não para repeti-la, mas exatamente para construir o caminho à frente, né?”

Favelas, Direitos Humanos e o direito a ter direitos

Desde que surgiram, as favelas brasileiras têm sido espaços marcados por diversos desafios relacionados ao que hoje chamamos de direitos humanos, incluindo o acesso limitado a serviços básicos como água potável, energia elétrica, saneamento, saúde, educação e transporte. Conforme o artigo “A favela é expressão de direitos humanos”, escrito por Igor Vitorino e publicado no Dicionário de Favelas, foi justamente diante da ausência desses direitos humanos básicos que as favelas surgiram. No cotidiano da vida urbana, as favelas são “o grito humano pelo direito a morar” e indicam “a busca incessante por condições dignas de moradia, mesmo quando usam as sobras da cidade para construir suas casas”, nas palavras do autor. O direito a ter direitos, para essa enorme parcela da população, sempre esteve na ordem do dia.

Além dessas situações, que expressam violências cotidianas, moradoras e moradores das favelas também estão crescentemente submetidos à violência policial, à ocorrência de chacinas e à falta de segurança em seus territórios. Há também a discriminação e a estigmatização enfrentadas pelas regiões de periferias e denominações afins, que veem a pluralidade de seus corpos, fazeres e conhecimentos serem reduzidas ao perigo da história única, tão bem definido pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie – a partir de outro lado do Sul Global – como a insistência em histórias negativas que superficializam a experiência e negligenciam diversas outras histórias, criando estereótipos “que fazem uma história tornar-se a única história”.

Para quem vive nesses territórios e movimentos que comungam com as suas lutas, por um lado, há o esforço necessário de denunciar condições de vida ainda muito distantes do ideal da vida digna preconizado pela DUDH, cujos princípios também estão presentes na Constituição Federal Brasileira de 1988. E, por outro lado, é fundamental registrar, lembrar e enaltecer as memórias, histórias e epistemologias de tantas populações faveladas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo, a partir do seu próprio ponto de vista.


Referências bibliográficas:

Achinte, A. A. (2017). De la resistencia a la re-existencia: hacia una praxis decolonial del ser.

D’Andrea, T. (2020). A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo.

Fleury S, Menezes P. (2022). Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saúde debate.

Maldonado-Torres, N. (2017). On the coloniality of being.

Mignolo, W. (2015). The darker side of Western modernity.

Sanmartin, Cíntia, F.(2022). Artivismos urbanos: sobrevivendo em tempos de urgências.

Santos, B. de S. (2010). Epistemologias do Sul.

Walsh, C. (2013). Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir.

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