Varoufakis: assim o Ocidente constroi sua ruína

Elites do mundo eurocêntrico empenham-se agora em destruir os valores que asseguraram sua hegemonia. Democracia, direitos humanos, justiça, diversidade – tudo arde no altar do rentismo. Resta a China como alternativa? Aceitará o desafio?

Imagem: Freepic
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Por Yanis Varoufakis | Tradução: Antonio Martins

Após a vitória eleitoral de Donald Trump, um grupo heterogêneo de pensadores acredita, na Europa e no Sul Global, que o Ocidente está em declínio. Na verdade, nunca tanto poder esteve concentrado nas mãos de tão poucas pessoas no Ocidente, mas isso por si só significa que o poder ocidental está condenado?

Na Europa, há boas razões para abraçar esta narrativa. Assim como o Império Romano transferiu sua capital para Constantinopla para estender sua hegemonia por mais um milênio, abandonando Roma aos bárbaros, o centro de gravidade do Ocidente mudou-se para os Estados Unidos, deixando a Grã-Bretanha e a Europa à estagnação que as torna inertes, atrasadas e cada vez mais irrelevantes.

Mas há uma razão mais profunda para o sentimento sombrio dos especialistas: a tendência de confundir o declínio do compromisso do Ocidente com seu próprio sistema de valores (direitos humanos universais, diversidade e abertura) com o declínio do Ocidente. Como uma cobra que troca de pele, o Ocidente está acumulando poder, ao abandonar um sistema de valores que sustentou sua ascensão durante o século XX, mas que não serve mais a esse objetivo.

A democracia nunca foi um pré-requisito para o surgimento do capitalismo, e o que agora consideramos o sistema de valores do Ocidente também não é. O poder ocidental foi construído não sobre princípios humanistas, mas sobre a exploração brutal em cada país, aliada ao comércio de escravos, ao comércio de ópio e a vários genocídios nas Américas, na África e na Austrália.

Durante sua ascensão, o poder ocidental não foi contestado no exterior. A Europa enviou milhões de colonos para subjugar povos e extrair recursos. Os europeus fingiam que os nativos que encontravam não eram humanos. O primeiro ato de todos os genocídios – das Américas, África e Austrália à Palestina de hoje – consiste em declarar terra nullius, uma terra sem povo, disponível portanto para os colonos que a desejavam.

Mas quando era inquestionável no exterior, o poder ocidental foi desafiado em casa por suas classes baixas empobrecidas. Elas se levantaram em resposta às crises econômicas causadas pelo fato de as maiorias serem incapazes de consumir os bens que produziam, em fábricas pertencentes a muito poucos. Esses embates evoluíram para conflitos em escala industrial, entre as próprias potências ocidentais que disputavam mercados entre si. Vieram as duas guerras mundiais.

Como consequência, as elites do Ocidente tiveram que fazer concessões. Internamente, aceitaram a educação pública, sistemas de saúde e previdência. Internacionalmente, a indignação com as guerras brutais e genocídios do Ocidente levou à descolonização, às declarações universais de direitos humanos e aos tribunais criminais internacionais.

Por algumas décadas após a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente desfrutou do conforto da justiça distributiva, de economias mistas, da diversidade, do Estado de direito em seus países e de uma ordem internacional baseada em regras. Do ponto de vista econômico, esses valores foram muito bem atendidos por um sistema monetário global planejado centralmente e comandado pelos EUA, conhecido como Bretton Woods. Ele permitiu que os Estados Unidos reciclassem seus excedentes para a Europa e o Japão, essencialmente dolarizando seus aliados para sustentar suas próprias exportações líquidas.

Mas, em 1971, os Estados Unidos haviam se tornado um país deficitário. Em vez de apertar o cinto no estilo alemão, explodiram Bretton Woods e aumentaram seu déficit comercial. Alemanha, Japão e, mais tarde, a China tornaram-se exportadores líquidos, cujos lucros em dólares foram enviados a Wall Street para comprar dívida do governo dos EUA, imóveis e ações de empresas em que os EUA permitiam que estrangeiros investissem.

Então, a classe dominante norte-americana teve uma epifania: por que fabricar as coisas em casa quando se podia confiar que capitalistas estrangeiros enviariam tanto seus produtos quanto seus dólares para os EUA? Assim, esta classe exportou linhas de produção inteiras para o exterior, desencadeando a desindustrialização dos centros industriais estadunidenses.

Wall Street estava no centro desse novo e audacioso mecanismo de reciclagem. Para desempenhar seu papel, ela não podia ter limites. Mas a desregulamentação em larga escala precisava de uma economia e uma filosofia política para apoiá-la. Esta demanda criou sua própria oferta: nasceu o neoliberalismo. Em pouco tempo, o mundo estava inundado de derivativos, surfando no tsunami de capital estrangeiro que inundava os bancos de Nova York. Quando a onda quebrou, em 2008, o Ocidente quase quebrou com ela.

Líderes ocidentais em pânico autorizaram a criação de US$ 35 trilhões para socorrer os financistas, enquanto impunham austeridade às suas populações. A única parte desses trilhões que foi realmente investida na produção foi usada para construir o capital da nuvem que deu às Big Techs seu poder de penetrar os corações e mentes das populações ocidentais.

A combinação de socialismo para financistas, colapso das perspectivas para os 50% mais pobres e rendição de nossas mentes ao capital da nuvem das Big Techs deu origem a um Novo Ocidente. A suas elites arrogantes já não serve o sistema de valores do século passado. Livre comércio, regras antitruste, emissão zero de carbono, democracia, abertura à migração, diversidade, direitos humanos e o Tribunal Penal Internacional foram tratados com o mesmo desprezo com que os EUA trataram ditadores amigos – seus “próprios canalhas” – quando se tornaram desnecessários.

A Europa tornou-se impotente, por sua incapacidade de criar poder político comum após ter criado moeda comum. O mundo em desenvolvimento está mais endividado do que nunca. Apenas a China atravessa o caminho do Ocidente. A ironia, no entanto, é que a China não quer ser uma hegemônica. Ela só quer vender seus produtos sem impedimentos.

Mas o Ocidente agora está convencido de que a China representa uma ameaça letal. Como o pai de Édipo, que morreu nas mãos do filho porque acreditou na profecia de que este o mataria, o Ocidente está trabalhando de forma incansável para empurrar a China a dar um salto, e desafiar seriamente o poder ocidental. Isso pode ser feito, por exemplo, transformando os BRICS em um sistema semelhante a Bretton Woods, baseado agora não no dólar, mas no renminbi.

Em 2024, o Ocidente continuou a tornar-se mais forte. Mas, depois de atirar seu sistema de valores no lixo, também cresceu sua propensão a arquitetar seu próprio declínio.

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