Uma quilombola contra as eólicas

Colada a Canoa Quebrada, a comunidade do Cumbe já não tem acesso livre nem à praia, nem ao manguezal. Os cataventos fragmentam o chão comum e estorvam os moradores. Eles resistem: “De que serve povo livre no território preso?”, indaga uma de suas lideranças

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Cleomar Ribeiro da Rocha, em entrevista a Elisangela Paim e Fabrina P. Furtado


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O texto a seguir é um capítulo do livro Mulheres em defesa do Território: Corpo, Água, Terras. Organizado por Elisangela S. Paim e Fabrina P. Furtado, autoras da entrevista, foi editado pela Funilaria e Fundação Rosa Luxemburgo, parceira da Outras Palavras. Apoiadores do site concorrem a seis exemplares da obra, em sorteio a ser realizado em 24/3.

Título original: “A carcinicultura nos tirou do mangue; o parque eólico nos tirou da duna”

Cleomar Ribeiro da Rocha é quilombola e pescadora do território quilombola do Cumbe, habitado por aproximadamente 170 famílias (cerca de oitocentas pessoas), que vivem do mar, das dunas e do mangue, localizado no município de Aracati, no litoral leste do Ceará, a cerca de 160 quilômetros de Fortaleza. O território é atingido por uma usina eólica da Companhia Paulista de Força e Luz Energia (CPFL), pela carcinicultura [criação de camarões em cativeiro], por empreendimentos turísticos e pelo derramamento de petróleo que afetou o litoral nordestino em 2020. Cleomar participou ativamente dos cursos de extensão “Direitos e saberes feministas em tempos de pandemia” (realizado em 2021) e “Mulheres em defesa do território-corpo-terra-águas” (realizado em 2022). Durante este último, organizamos um intercâmbio entre as mulheres participantes do curso e referências dos territórios da nascente e foz do rio Jaguaribe, curso de água que banha o Ceará. Cleomar foi uma das anfitriãs do encontro. Aqui compartilhamos fragmentos das conversas que tivemos com ela durante essas atividades.

Elis & Fabrina: Cleomar, conta para nós sobre você e seu território.

Cleomar: Sou Cleomar, mulher das águas, sou quilombola, uma defensora dos direitos humanos. Somos a voz do território, quem está aqui é um pedacinho do território, trazendo toda uma luta e resistência.

Sou do Ceará, Aracati, litoral leste, vivo no território quilombola do Cumbe. Para quem não conhece, temos uma parte que é área de manguezal, outra que é área de duna e mais uma que é de praia. Áreas com as quais sempre tivemos relação, que me representam, porque sou uma mulher pescadora, uma marisqueira.

Este território é minha ancestralidade, um território-vivência, um território-memória. Eu cresci aqui, conheço cada cantinho com muito amor, com muito afeto. O pertencimento do cuidado, de ver o território como um professor, como um educador. Digo que o território nos ensina muito, e, por termos acesso a cada cantinho, nós pescávamos na lagoa, na praia; produzíamos nossa farinha, assávamos os peixes.

Então, esse território significa muito, ele é identidade! Não sei falar de mim sem falar do território. E, como disse, sou a voz do território! Falo sobre a relação com ele, com o manguezal, com as áreas de dunas, com as lagoas, a praia, o mar… Vivi dentro do manguezal, de onde me alimentei, esse território que me deu água quando tive sede, um território que traz espiritualidade, encantaria. Inclusive, como temos pescas periódicas, no inverno e no verão, o território é dinâmico, passa por mudanças constantes. A gente acompanha todas as fases que o território naturalmente tem. Digo que a gente vai de acordo com as marés. É o território que faz a leitura, a gente vai sendo conduzida nesse processo. É essa relação que me faz, cada vez mais, resistir e lutar! Porque dizemos que o território sofre, e nós sofremos, porque somos território! Quando nosso território é impactado, degradado, destruído, poluído, nós também somos! Sentimos os mesmos sintomas do território!

Considerando o que o território significa para você, como você analisa os impactos dos grandes projetos de infraestrutura que estão acontecendo no Cumbe?

Vou falar sobre a chegada da usina eólica no território quilombola do Cumbe para vocês entenderem como é instalado um empreendimento desse porte, mesmo com a ideia de energia limpa, energia renovável que vai melhorar a vida de todo mundo, uma energia que não destrói. É essa a discussão, é esse o discurso do desenvolvimento que chega à comunidade.

Essa usina eólica chega com 67 aerogeradores. Fomos um dos primeiros territórios no Ceará a padecer dos impactos negativos, com a chegada da notícia de que a usina seria instalada em Canoa Quebrada, praia situada ao lado do nosso quilombo. Então, começou assim, sem a gente saber se seria no Cumbe. E como chega? Chega trazendo violência, violando os nossos corpos; os nossos corpos estão oprimidos dentro do nosso próprio território, ao qual ficamos sem acesso pleno.

A gente costuma dizer: “De que adianta um povo livre num território preso?” Território ao qual estamos sem acesso. Durante a instalação da usina, nossas crianças não iam mais para a escola sozinhas; surgiram muitos bares e, com isso, bebida; mulheres e crianças vulneráveis, expostas à exploração sexual, devido ao grande número de trabalhadores homens vindos de outras cidades; muita poeira dos caminhões gerando problemas respiratórios; problemas psicológicos. Tudo muito invasivo até hoje, com muitas restrições ao mar, às dunas.

E tem mais. Na década de 1990, a gente também enfrentou a chegada da carcinicultura,1 o camarão criado em cativeiro que domina toda essa área de manguezal. Área onde eu fui mais cuidada, mais alimentada, e de onde até hoje eu me alimento. Nas áreas de praia e duna, tenho uma relação com as enchentes que a gente tinha no território, e a gente tinha que morar nas dunas. A gente criou uma relação, plantávamos na duna, pescávamos nas lagoas e no mar, colhíamos frutas, tínhamos uma relação ancestral, um lugar de afeto. Ahhh, muito afeto!

A cachaça do Cumbe era uma cachaça muito afamada, conhecida. E, como o quilombo está localizado em uma região de um coronelismo muito grande de terras, de novos engenhos, onde já se trabalhava com a cachaça por muito tempo, diziam que o mangue não tinha importância, que a duna não tinha importância. Não tinha importância para eles, né?! E é por tudo isso que a gente discute o racismo, o racismo ambiental que afeta o nosso território. E que afeta também a nossa saúde dentro de um lugar que está destruído, fragmentado.

Em poucas palavras, a carcinicultura nos tirou do mangue, o parque eólico nos tirou da duna.

Cleomar, quais os impactos da usina eólica?

É tudo muito grande, muito gigante, você se assusta com aquele poder. A usina entra em uma comunidade que não tinha estrutura para receber um empreendimento desse tamanho. Por isso, lutamos de todas as formas para impedir.

Mas já estava tudo decidido antes mesmo de chegarem aqui, até porque o processo foi escondido da gente, diziam que era em Canoa Quebrada. Aí, quando a gente percebe, a usina está sendo construída praticamente dentro do nosso território. Sofremos muito com isso, foi como se nossa vida tivesse virado do avesso.

Estamos falando de uma comunidade onde muitas casas eram de taipa. E, com o empreendimento, muitas casas caíram. A igreja quase caiu, a escola quase caiu. Tem o impacto de carros pesados indo e vindo, o impacto das torres eólicas pesadas dentro do quilombo, dentro de uma comunidade que não tem estrutura. Não tinha como se preparar para uma estrutura dessas. Primeiro, entrou uma empresa para trabalhar nas dunas. O mais doloroso, nesse período de construção, era ver a devastação do território, a devastação das nossas lagoas sendo enterradas. Eles demarcaram toda a área, da estrada onde passavam os caminhões até o local de instalação de todas aquelas hélices, aquelas torres. E muitas dessas torres estão em lagoas tradicionais. Nós temos várias lagoas tradicionais na comunidade em área de duna e eram nessas lagoas onde passariam as estradas. Eles enterraram muitas lagoas. Não dava para acreditar em tanta destruição, naquele rasgado no território gerado pela usina eólica.

Como suportar tanta destruição de uma “energia limpa”? Então, olha o papel dessa “energia limpa”: destruir comunidades, destruir nossa vida, destruir nossas práticas e devastar o nosso território. Muitas pessoas perguntam: “Cleomar, mesmo com esse processo de construção, essa violência, essa degradação todinha, hoje é tranquilo?” Hoje, a situação é ainda mais grave. Eles são muito rasteiros, são muito maus!

Os empreendimentos visam somente o lucro! E é como se a gente não fizesse parte da terra, porque em nenhum momento nós somos vistos. Oh, ali tem um povo, tem as práticas culturais deles, tem a relação deles com o lugar, a cultura de ir à praia, de ir ao mangue, de ir às lagoas, de colher fruta, de buscar lenha. Acabaram com nossas práticas culturais nas dunas, até porque hoje a gente tem um campo minado de redes de fiação elétrica. E é bom lembrar que as dunas móveis têm um papel, nem eles conseguem conter a força delas.

Eles têm máquinas trabalhando todos os dias, todos os dias, todos os dias! Tem vezes que eles não controlam a força da duna, e de um dia para o outro ela se move muito rápido. Por causa dessa destruição, por causa da usina eólica, perdemos a nossa autonomia, a nossa identidade. A gente fica perdido no território. Então, apesar de o discurso ser de produção de uma energia boa, de uma energia limpa, de uma energia que não produz poluição, na prática ela está destruindo comunidades, está destruindo ancestralidades.

Que isso fique explícito, porque a ideia é que essa energia seja “limpa”, mas a gente contextualiza: “Olha, a energia não me deixa passar no meu território, a energia não me deixa mais fazer minhas práticas, a energia não me deixa mais usufruir das lagoas, pescar nas lagoas, ir à praia!”. Olha o papel desta “energia limpa”! Ela é sustentável? Ela é renovável? Destruindo mulheres, seus corpos, não só o meu, mas de quem vive na comunidade. E aí, quando chegamos a esse nível de adoecimento é porque estamos fragmentados, assim como o território!

O território resiste até onde pode, e nós, através da nossa relação com a terra, o lemos pedindo socorro. Como somos território também, estamos sentindo. A gente reflete a dor, a destruição; a privatização que a terra está sofrendo é a nossa privatização também. Porque eu não sou liberta, sou escrava ainda, no sentido de não ter mais minha liberdade no território. E a escravidão, a gente sabe que se renova dessa forma, esse tipo de escravidão da gente acorrentada no próprio território, nós somos impedidos de concluir nossas práticas. Tanto em áreas de manguezal, pela carcinicultura, quanto em áreas de duna, pela usina eólica.

Como vocês lidam com o enfrentamento de um projeto construído usando o discurso da energia limpa, como você mencionou anteriormente, em nome da transição energética?

Como a energia eólica vem com esse discurso de energia limpa, quem era doido de se dizer contra esse empreendimento? Os empreendedores diziam na nossa cara: “Os movimentos pediam a energia limpa, então chegou essa energia.” Tanto que hoje eles ainda dizem, eles contextualizam isso, “é uma energia que vocês pediram.” Mas essa energia tem que ser contextualizada, porque, como fomos o primeiro território quilombola a receber esse tipo de empreendimento aqui no Ceará, fomos também a primeira comunidade a contextualizar que energia limpa de fato era essa.

Como é que essa energia é limpa se vem destruindo comunidades, vem destruindo povos, vem destruindo ancestralidade, vem destruindo práticas? Eu não posso mais continuar com as minhas práticas culturais, estou proibida, estou limitada, estou sendo expulsa de um território que é tão importante para mim, para nossas práticas. Eu digo que o território é estruturante, porque traz essa reprodução cultural, ancestral, social, econômica, mas hoje a gente tem que viver de estratégias, incidências.

Como viver no território atingido por tantos projetos? Como se reinventar hoje para ter um território para viver, para que a nossa ancestralidade, nossas práticas não sejam todas exterminadas por conta de um parque eólico que se diz limpo? Essa energia não é limpa. Nós estamos com os corpos destruídos, nossos corpos estão fragmentados, nossos corpos estão oprimidos por um parque eólico que se diz limpo.

Para as empresas, as nossas vidas não importam, não são impactadas. E a gente traz essa contextualização para afirmar que ele não é limpo, porque está afetando um território que tem esse significado importantíssimo para a gente.

Diante de todas essas violências, silenciamentos, violações, impedimentos de praticarem suas atividades, seus modos de vida, como vocês se organizam?

A associação quilombola vem num processo intenso de luta, em que costumamos dizer que o que está acontecendo hoje estamos há tempos alertando. Estamos denunciando desde o início de nossa luta, falando sobre o papel dessa “energia limpa” no nosso território. Para chegarmos à praia, por exemplo, temos que ter um acordo. Isso porque precisamos circular, precisamos passar para pescar, para acessar a praia, as nossas lagoas, as nossas áreas. Então, é uma luta constante, uma luta diária, é uma luta para gente se manter aqui, porque a eólica não nos deixa transitar.

Para eu chegar à praia ou às lagoas, tenho que passar por essa usina eólica. E aí, se você for perguntar à direção da empresa se somos impedidos, eles dizem: “Não, eles passam. O cuidado que a gente tem é de orientar para que eles não corram nenhum risco.” Destaco que o risco faz é tempo que estamos correndo, desde que escutamos falar destes empreendimentos.

A empresa é cada vez mais violenta. Para a gente passar, a gente tem que brigar, brigar para chegar ao nosso cemitério. É tudo muito agressivo por parte dessa usina, que se diz “limpa.” Para a gente chegar ao nosso cemitério, que é um cemitério secular, considerado sagrado, temos que pedir permissão. No início, tínhamos que escrever um ofício quando alguém morria. Nós tínhamos um caminho para chegar ao cemitério que foi destruído pela carcinicultura. Para irmos à duna, a gente tinha que fazer um ofício para a empresa. Isso mudou depois que fizemos um acordo, um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), para que pudéssemos passar para enterrar nossos mortos, nossos entes queridos. Então, não é
qualquer dia que podemos ir ao cemitério.

Vejam a gravidade disso tudo! Mas isso parece ser tão banal, tão certo. Para nós, é tão violento ter uma “energia limpa”, e sermos maltratados por essa “energia limpa”! A gente está sendo destruído, a gente está sendo expulso por essa “energia limpa”!

Mas seguimos resistindo. Organizamos, todos os anos, a Festa do Mangue,2 que já era uma prática nossa, mas a oficializamos como forma de resistir, como forma de luta, de fortalecimento, de dizer que existimos, de identidade. Minha identidade é o mangue, minha identidade é o território, e as consequências se refletem em nossos corpos, em nosso adoecimento, em criminalização, perseguição.

Assim, nos organizamos, como associação, para também combater isso. Nós costumamos dizer que somos um povo festeiro que gosta de dançar também. E a festa do mangue traz muito isso, essa forma de combater toda a opressão que
vivemos dentro do território. Então, somos um povo quilombola, pescador oprimido por uma “energia limpa”.

Uma outra forma que temos de nos organizar é o Bloco Carambola, que também é uma festa, a gente desfila no carnaval cultural. A gente criou uma agenda para ter, em cada mês, uma comemoração, como, por exemplo, o Dia do Quilombo, dia da nossa certificação.

Também fazemos muita aula de campo perto da usina eólica. A gente não entra, mas realiza as aulas, sabemos que há vigilância e também perseguição à nossa ida. Uma das coisas que o empreendimento fez foi dividir a comunidade. Vemos isso em vários territórios, a divisão imposta pelas empresas, que buscam dividir para dominar. Dividir é uma estratégia colonialista.

Como tem sido o processo de luta em defesa do seu território e do seu corpo, como mulher, quilombola, pescadora?

Dentro de um quilombo cheio de conflitos, cheio de perseguição, a gente ainda tem a força para buscar nossa identidade, nossa história e ancestralidade que o colonialismo tenta apagar. Digo que estamos costurando nossa história apagada pelo colonialismo, pelos coronelismos da região. E, por isso, é importante estarmos nesses espaços, não tem nada mais verdadeiro do que trazermos a nossa realidade, falarmos por nós. A nossa história foi sempre muito contada na visão do colonizador, e a gente precisa contar nossa própria história, nossa própria realidade, e não deixar que falem por nós.

A colonização é um processo em que eu não posso ser, não posso pensar, fazer outra leitura da vida, da história, não posso ser uma mulher rebelde, não posso ser uma mulher de luta, não posso ser uma mulher que resiste. Meu pertencimento, minha história, minhas práticas são mais gritantes do que tudo o que me inferiorizou a vida inteira, em que tentaram impor que eu não tinha condições. O patriarcado não me deixou estudar e cortou sonhos. O patriarcado mata! Hoje, me orgulho de defender meu território, defender a mulher que sou, as mulheres que estão na luta. Quero dar visibilidade à potência que somos, nós mulheres somos potentes, mesmo sofrendo com a colonização, com o sistema capitalista que se impõe sobre nossas vidas. A minha infância foi isso e me fez essa mulher de luta, tenho pressa de lutar,
de mudar a história.

Agradeço também às organizações que nos apoiam, que nos acolhem, cuidam de nós quando saímos dos territórios para encontros com outras mulheres, isso é muito bom! Sem dúvidas, além do processo de enfrentamento dentro dos territórios, nos sentimos amadas e cuidadas! Lá, com as empresas e as outras pessoas de fora da comunidade, o cenário é outro. Parece que somos as vilãs, o povo do mal!

É esse o entendimento que é passado para nós. A gente defende a vida; ao mesmo tempo, parece que a luta de nós, mulheres, em defesa do território, é marginalizada. Tive que sair do mangue, trabalhando com marisco, para defender o território, para defender o mangue. Era o meu autocuidado: trabalhar na maré, ver as marés, a cheia, a seca. Nós temos os processos dentro dos territórios, somos cuidadas, até para trabalhar! O manguezal cuida, cuida de nós. No trabalho, não sentimos que estamos trabalhando, nos sentimos cuidadas. Dali, a gente leva o alimento. Tive que sair para fazer esse papel do cuidado.

E, como disse, nós somos o território, essa dor está em nós. E aí, você faz a leitura da terra, o mangue está sendo degradado, as nossas águas estão sendo poluídas, os nossos oceanos estão sendo privatizados, porque a eólica também diz que é dona das nossas praias. Nos períodos de inverno, temos as pescas, temos uma relação muito grande com aquelas dunas, com as lagoas, vamos buscar ervas e não vamos mais para esses lugares. Isso é muito doloroso, isso traz adoecimento!

Estamos aqui com áreas de manguezal sendo destruídas, são mais de dez hectares ocupados pela carcinicultura, perdemos o acesso. Às vezes, dizem assim: “nós somos frágeis!” Mas são essas situações que nos fragilizam! E para a gente sair de nossas origens, de nossas práticas, enfrentar outros cenários, estar em outros lugares, para defender esse território, que é importante para as gerações que vêm, precisamos estar fortalecidas.

Enquanto digo que estou sendo expulsa, estou sendo oprimida, a energia eólica diz ser uma “energia limpa”! Quem está mentindo? Porque não somos vistas, e, muitas vezes, acham que somos uma fraude quando digo que estou sendo expulsa, que estou sendo oprimida dentro de um território por uma energia que se diz limpa!

É um sofrimento muito grande. Eu choro. Cada dia é um desafio. É tão forte, é tão doloroso! Acho que passar meus sentimentos de indignação, da injustiça que sentimos dentro dos territórios é importante. O território tem uma representação muito grande em minha vida! O mangue sofreu, em grandes períodos, por ser um lugar fedido, nojento! Mas ele me alimentou a vida inteira, me alimenta! O mangue é o berço da vida, para termos nossos peixes nos oceanos, precisamos cuidar dos nossos manguezais!

Às vezes, em alguns momentos, quando não conseguimos falar, nos abraçamos, porque a fala não sai, a dor é grande! E a gente revê nossas estratégias: “como é que a gente vai fazer?” Tem hora que a gente não tem saída, mas a gente também avalia onde está o problema, a gente identifica onde está, como rebater tudo isso? Que crime eu cometo por defender meu território? Qual é o crime?

É um direito meu viver o meu modo de vida, é regra para mim, o que minha comunidade me ensinou para mim é regra! Cuidar do meu quintal produtivo, ir para a minha pesca, ir para o meu passeio, porque o território faz esse autocuidado. Eu fui, a vida inteira, cuidada por um território que me proporcionou tudo o que eu queria! A luta me ensinou muito a ter esse papel de mulher dentro do território, mas saímos de lá, do quilombo, muitas vezes criticadas, aquele preconceito do racismo de dizer “o que essas mulheres estão fazendo lá no Rio de Janeiro?”. Se o meu filho está, por exemplo, com alguma dificuldade no colégio, dizem que ele está ruim porque a mãe dele não pára em casa. Isso mexe, isso dói! O processo que nós, mulheres, enfrentamos para estar na luta! Eu já ouvi dizer “coisa feia, mulher estar na luta, mulher brigando!”.

Aprendi e aprendo muito, muito, com outras mulheres em luta. Cada mulher, que escuto falar da sua luta, me fortalece no meu território. O processo de defesa do território não é fácil, é muito adoecedor! É constante, é constante a injustiça! O carcinicultor, os empresários da usina eólica apontam o dedo na nossa cara constantemente! Somos vigiadas dentro do nosso território o tempo todo! Para eu andar no território, andar nas dunas, tem vigília atrás de mim! Queria eu poder tirar aquelas torres, eu não posso carregar uma torre daquela!

Então, aqueles vigias são para quem? São para nós, para nos vigiar e nos criminalizar! E a gente responde processos judiciais. É por isso que estamos no programa de defesa dos direitos humanos, porque somos constantemente ameaçadas, porque fazemos nossa defesa, nossa luta.

Por fim, a minha formação foi a do território, essa formação que me deixou mais humana, e que eu, como mulher negra pescadora, tenho que ter, tenho que fazer algo, não sou covarde, tenho que lutar por esse território, mesmo adoecida, mesmo com esse processo violento que estamos vivendo! Adoecida, eu estou lutando!

1Técnica de criação de camarões em cativeiro. A carcinicultura precisa fazer comporta, que seria uma forma de drenar a água, então precisa das águas que chegam naquelas camboas para passar para seus tanques de camarão. Carcinicultura são tanques de camarão em cativeiro.

2A Festa do Mangue é um evento tradicional realizado anualmente no Território Quilombola do Cumbe e tem como principal objetivo ocupar o território, falar do ecossistema manguezal e de sua importância para a comunidade quilombola-pesqueira.

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