Sobre psicanálise e luta de classes

Haveria uma psicanálise popular? Isso importa? Afinal, a criação de Freud é um palco de disputas políticas e sociais. Nem revolucionária, nem elitista por natureza – mas aquilo que escolas, instituições e coletivos fizerem dela. Aí estão a chave (e o incômodo) para entendê-la…

Imagem: institutoveralem
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Há dois anos, o público brasileiro, principalmente o psicanalista e o interessado em psicanálise, foi profundamente beneficiado com a tradução para o português brasileiro da obra Uma história da psicanálise popular, do psicanalista francês Florent Gabarron-Garcia e publicada originalmente em 2021. Apesar de recomendar a leitura dessa obra a todos aqueles que, assim como eu, não reconhecem a realidade da difundida imagem monolítica da psicanálise — seria preciso um martelo para quebrar em pedaços esse rochedo da castração? —, não pretendo fazer sua resenha crítica. Certamente, pretendo fazer alguns comentários a respeito da importância dessa obra, mas quero fazer um exame mais cuidadoso a respeito de sua tradução. Mais especificamente, da tradução do título. Embora eu tenha gostado da tradução do miolo, considero que a escolha adotada para o título pela tradutora Célia Euvaldo (ou teria sido uma escolha editorial da Ubu Editora?) resulta em consequências teóricas e políticas capazes de gerar mal-entendidos a respeito da própria obra. Vejamos.

O título original em francês é Histoire populaire de la psychanalise. Em tradução literal para o português, o título deve ser lido como “História popular da psicanálise”. Como você deve ter percebido, entre a tradução literal (História popular da psicanálise) e a escolha feita pela tradutora/editora (Uma história da psicanálise popular), as mudanças são aparentemente insignificantes: inserção de um artigo indefinido (Uma história…) e deslocamento do adjetivo “popular” (de “história popular” para “psicanálise popular”).

A primeira mudança, em minha opinião, não altera substancialmente o entendimento do título. Mas se pode dizer o mesmo a respeito da segunda mudança? Sintaticamente, apenas verificamos o deslocamento de um adjetivo no interior de um mesmo sujeito — se considerarmos “história” o núcleo do sujeito e “da psicanálise” seu complemento nominal. Gramaticalmente, o professor Pasquale diria que ambas as opções estão corretas. No entanto, historiograficamente, esse deslocamento assume uma importância que pode passar despercebida ao não especialista e que pode ser fonte de mal-entendidos a respeito da proposta da obra de Gabarron-Garcia.

Para esclarecer a importância desse deslocamento, vamos comparar ambas as propostas de tradução do título. Em História popular da psicanálise, a função do adjetivo “popular” é indicar a abordagem historiográfica adotada. A história da psicanálise poderia ser investigada por meio de suas instituições (história institucional da psicanálise), de suas rupturas doutrinárias (história das ideias da psicanálise ou psicanalíticas) ou ainda a partir da relação entre a sociedade e as práticas psicanalíticas (história social da psicanálise). Optou-se por investigar a psicanálise por meio de sua história popular, cuja abordagem será esclarecida mais adiante.

Já em História da psicanálise popular, não é mais a abordagem que é esclarecida, e sim o objeto historiográfico. Da mesma forma como argumentado no parágrafo anterior, a investigação histórica poderia ter como objeto a psicanálise brasileira, a psicanálise hospitalar, a psicanálise no século XXI e, entre outros, a psicanálise universitária. No entanto, de acordo com a tradução sugerida pela tradutora/editora, o objeto historiográfico é a psicanálise popular.

O deslocamento do adjetivo “popular” para o objeto historiográfico poderia estar a serviço de um esclarecimento, cuja exigência teria sido percebida pela tradutora/editora, a respeito de qual psicanálise estaríamos falando. Ao invés de falarmos de uma psicanálise genérica e abstrata, como proposto pelo título original, estaríamos lidando com um objeto historiográfico específico e concreto: a psicanálise popular. Entretanto, se está a serviço de uma elucidação ou mesmo de uma desambiguação (entre “psicanálise” e “psicanálise popular”), aquele deslocamento também revela que, se toda psicanálise popular é psicanálise, nem toda psicanálise é psicanálise popular. A psicanálise popular seria, assim, somente um capítulo, maior ou menor, da história da psicanálise. Mas seria essa a proposta da obra de Gabarron-Garcia? Investigar uma experiência específica e compartimentada da psicanálise, adentrar somente um dos departamentos dessa instituição maior que é a psicanálise?

Quando nos voltamos para o sentido do título original, que propõe a investigação da psicanálise por meio de sua história popular, verificamos ter havido um mal-entendido. Especificar a abordagem utilizada na investigação histórica é uma prática comum e reconhecida entre os historiadores. Essa especificação contribui para mais bem selecionar os métodos de análise historiográficos, mas também para destacar a relevância de determinadas perspectivas que teriam sido, até então, negligenciadas ou propositalmente esquecidas. Uma “história popular” da psicanálise, ao investigar esse objeto historiográfico a partir de um ponto de vista nada hegemônico, nada monolítico, contribuiria, em primeiro lugar, para desmistificar o preconceito herdado de uma certa tradição política — certamente, o avesso do monólito de Stanley Kubrick — que enfatiza uma narrativa histórica, senão solidária de um ponto de vista das classes dominantes, ao menos refratária a pontos de vista que questionassem sua validade exclusiva.

Nesse sentido, não poderíamos aplicar o mesmo argumento utilizado anteriormente para analisar as consequências da tradução adotada pela editora? Assim, se toda história popular da psicanálise é história da psicanálise, nem toda história da psicanálise é história popular da psicanálise. Mas seja em um caso, seja em outro, ainda estamos falando de psicanálise. Isso quer dizer que uma história popular da psicanálise contribui para lançar luz sobre práticas e eventos que não são apenas parte da psicanálise, mas são a própria psicanálise. A desconsideração sistemática dessas práticas e eventos resulta em uma imagem da psicanálise que não condiz com sua própria história, marcada por conflitos e rupturas — um desconhecimento fundado na identificação da história com sua imagem. E não estou falando somente das famosas rupturas de Sigmund Freud com Alfred Adler e Carl Jung, e sim das rupturas internas à própria psicanálise.

O que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que a proposta da obra de Gabarron-Garcia não é investigar uma psicanálise popular. Na verdade, não é relevante saber se existe ou não uma psicanálise popular. O que interessa é perceber que uma abordagem popular da história nos mostra uma psicanálise que se constituiu e se constitui como palco de conflitos, como esforços ora mais democráticos e revolucionários, ora mais fascistas e reacionários. Dito de outra maneira: a psicanálise é palco da luta de classes.

Falando nisso, apesar de essa ideia ter sido vislumbrada por Christian Dunker no prefácio a essa obra (“sempre houve uma espécie de luta de classes dentro da psicanálise”, p. 8), vale lembrar que o psicanalista não teceu comentários a respeito da tradução do título e de suas consequências teóricas e políticas. E quando se referiu a uma “história marginal da psicanálise” (p. 11), pode ter se mantido fiel ao sentido historiográfico do título original, mas ao associar “popular” a “marginal” acabou interpretando que as práticas democráticas e revolucionárias não alcançam o centro da psicanálise, mas orbitam em sua periferia, permanecendo em sua margem, o que não corresponde exatamente à proposta de Gabarron-Garcia.

Se não está imune à luta de classes, então podemos concluir que a psicanálise não é essencialmente nem elitista nem revolucionária. A psicanálise será aquilo que as escolas, as instituições e os coletivos fizerem dela. Essa perspectiva não agrada aos psicanalistas mais reacionários — e, provavelmente, nem a muitos psicanalistas revolucionários. Isso porque nos mobiliza a angustiante posição de quem se vê em um conflito indeterminado. Posso a qualquer custo argumentar pelo caráter revolucionário da psicanálise, mas isso não vai impedir que muitos psicanalistas neguem o genocídio na Faixa de Gaza ou que conciliem suas posições doutrinárias com a pauta da extrema-direita — ou ainda que mostrem cumplicidade com a tortura, como fez Amílcar Lobo durante a ditadura militar no Brasil. A psicanálise não está imune ao conflito — isso não quer dizer que a extrema-direita venceu. E me parece que essa é a principal contribuição da obra de Gabarron-Garcia.

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