Roteiro para uma nova crítica à monogamia

Há ansiedade diante do futuro. O amor monogâmico vive da promessa de que a paixão dura para sempre. Cumpri-la exigiria conquistar afetos, sem espaço para dúvidas. Mas e se recorrermos, como sugere Nego Bispo, ao amor confluente que consagra o Cuidado?

Family Portrait, do artista sírio-palestino Yasser Abu Hamed.
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Este texto integra o Dossiê Anatomia da Arte de Amar, da edição 306 da revista Cult, parceira de Outras Palavras

É preciso iniciar com uma ressalva: trata-se de abordar o amor não apenas como um sentimento, mas de sublinhar suas condições culturais, históricas e sociais no que diz respeito à formação de casais. O meu interesse filosófico está na dimensão simbólica que implica discursos e prescrições que organizam as nossas formas de desejar, sentir e gerir relacionamentos. Em termos mais específicos, interessa-me como o ideal do amor romântico orienta determinadas condutas em relação à intimidade, à vida afetivo-sexual e à sua vinculação quase automática ao sistema monogâmico de conjugalidade.

A visibilidade dos debates sobre as várias formas de relacionamentos e as múltiplas dinâmicas amorosas tem aumentado. No que diz respeito aos formatos de relacionamentos, aos contratos e combinados, a validade universal da monogamia tem sido prontamente questionada pela agamia e por diversas outras modalidades não monogâmicas. Por outro lado, as dinâmicas do amor confluente e do romântico se chocam entre elas e com o poli­amor. Diante da tese colonial de que a maneira mais “civilizada” de amar está na combinação entre o formato monogâmico e a dinâmica do amor romântico, encontramos boas críticas do filósofo Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, e da psicóloga Geni Núñez. Monogamia não diz respeito somente à limitação de parcerias afetivo-sexuais, pois sua imposição “fazia parte de um projeto civilizatório que buscava incluir a moral cristã como única possível”, como argumenta Núñez em Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar (Paidos, 2023). O que implica importar as categorias da guerra para o território da intimidade e das vivências afetivo-sexuais. Afinal de contas, “no mundo monoteísta só há um deus, é uma disputa permanente. O povo de Israel contra o povo da Palestina, por exemplo. Estão se matando na disputa por um deus”, nas palavras de Nêgo Bispo.

Quais são os problemas do regime romântico-monogâmico? Um deles é a obsessão pela paixão como critério de validação do “amor verdadeiro”, que obrigatoriamente precisa se organizar na prática monogâmica. Em outro registro, as ciências sociais têm contribuído para lançar luzes sobre as relações entre os fenômenos amorosos e os contextos culturais e político-econômicos. Anthony Giddens, em A transformação da intimidade (1993), contribuiu com reflexões interessantes ao introduzir o amor confluente como uma dinâmica em ascensão diante da “crise” do amor romântico. Por sua vez, Eva Illouz deslindou as engrenagens do capitalismo afetivo em seu livro O amor nos tempos do capitalismo (2011), que retrata o mercado de relacionamentos amorosos regido pelas lógicas do capital e apto para os mais diversos tipos de customizações.

Diante desse breve cenário, quero problematizar a função do amor romântico, assim como a sua influência, na produção de subjetividade – modos de sentir e desejar. Abordo o debate por meio da aproximação de artefatos da cultura, em especial de filmes e músicas populares com narrativas de amor e relacionamentos afetivo-sexuais. No caso do cinema, recorro aos estudos de David R. Shumway e Tamar Jeffers McDonald. Para o primeiro, o ciclo das comédias românticas surgiu durante a década de 1950 para estimular e incentivar, principalmente entre as mulheres, a fé e a esperança no casamento como a única forma de viver o amor verdadeiro. Já McDonald analisa que, apesar das flutuações nas quatro fases desse gênero cinematográfico (encontro, conflito, separação e reencontro), o motor narrativo central é a busca pelo amor de forma divertida e quase sempre com um final feliz.

No Brasil, o gênero de canções populares mais tocado foi analisado por Andreone Medrado e Rhuan Fernandes, em Não monogamia: trânsito entre raça, gênero e sexualidade (Telha, 2023). Os autores afirmam que o para quem o “universo do sertanejo universitário pode nos oferecer um exemplo das vivências afetivas contemporâneas, pelo fato de o amor ser muito frequentemente cantado e retratado nesse gênero”. Os autores indicam que as temáticas giram em torno de diversão e aventuras afetivo-sexuais, mas uma parte considerável das letras aborda o ideal do amor romântico único e verdadeiro.

De forma geral, o cinema e a música operam como moduladores de subjetividade, como maneiras de atestar modos reconhecidos e válidos de relacionamentos. Félix Guattari e Sueli Rolnik, em Micropolítica: cartografias do desejo (1986), reforçam que “as forças sociais que administram o capitalismo entenderam que o processo de subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção, mais essencial do que o petróleo e outras energias”. Eu não vou discorrer sobre os graus de importância das produções capitalistas. Mas é relevante considerar que o cinema, especificamente as comédias românticas estadunidenses, e as populares canções do gênero sertanejo universitário no Brasil, contribuem para retratar tanto o imaginário social afetivo quanto os modos ativos de processos de subjetivação. A subjetividade, nossos modos de sentir, pensar e desejar, tem “natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida”, ainda nas palavras de Guattari e Rolnik. Ou seja, é na constante tensão que construímos maneiras de amar e vivenciar o que sentimos.

Os processos de produção de nossas formas de sentir, em especial do regime amoroso “oficialmente” válido, são hegemonicamente construídos sobre a dinâmica do amor romântico e a forma da monogamia. Na comédia romântica, a mulher é protagonista dentro de uma identidade discursiva feminina que a transforma em alguém que só poderá ser completamente validada socialmente se encontrar o seu par. Mesmo que ela tenha carreira, lazer e espiritualidade, além de uma boa rede afetiva composta por pessoas amigas e familiares, ela não será completa sem um “homem”. As contribuições da crítica literária e de cinema E. Ann Kaplan, em A mulher e o cinema: os dois lados da câmera (1983), ajudam a pensar que uma personagem feminina na comédia romântica não passa de uma projeção masculina. Nos filmes em que o amor romântico conduz a narrativa, afirma Kaplan, “as mulheres não funcionam como significantes de um significado (a mulher real), como supunham as críticas sociológicas, mas como significante e significado suprimidos para dar lugar a um signo que representa alguma coisa no inconsciente masculino”.

No patriarcado, os processos de subjetivação não estimulam as mulheres a terem necessidade de amar, “mas de serem amadas”, como já registrava Freud em “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Daí, representar alguma coisa no “inconsciente masculino” se articula com a interpretação feita pela psicóloga Valeska Zanello, que parte da teoria psicanalítica, numa perspectiva de gênero, para repensar o narcisismo das mulheres por meio do desejo de serem amadas por um “homem especial”. Em Saúde mental, gênero e dispositivos (2018), Zanello pensa o fenômeno do narcisismo na vivência das mulheres a partir do conceito de dispositivo amoroso. A identidade de uma mulher é construída, validada e reconhecida publicamente a partir de um homem que a seleciona entre tantas outras. O gênero comédia romântica ativa e reativa esse dispositivo. A mulher está aprisionada pelo desejo do homem. Sem um “grande amor”, ela não será realmente bem-sucedida – dizem amigas, familiares e colegas de trabalho. Do mesmo modo, um dos principais elementos das canções sertanejas analisadas por Medrado e Fernandes é “a necessidade de a mulher ser a escolhida (especial, insubstituível e inesquecível), sob pena de ser preterida (em relação a outra ou outras mulheres)”.

O sistema sexo-binário, em que a mulher deve ser validada por um varão viril e provedor, enquanto o homem precisa de uma ajudadora, digna e fiel, tem base religiosa cristã. Os estudos de Nêgo Bispo e Geni Núñez confluem nessa articulação estratégica entre amor romântico, monogamia e cristianismo. É a partir do modelo cristão colonial que exclusividade e indissolubilidade ganham relevância. A ideia básica reza: o verdadeiro amor deve ser único e eterno. O projeto colonial se serve do cristianismo. Como no evangelho de Marcos 10:7-9: “ ‘Por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne’. Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém o separe”.

O casal unido forma um novo núcleo, uma nova unidade social, cujo caráter é indissolúvel. A dimensão sacra está em cena. A narrativa é simples: o amor romântico se constrói atravessado e assentado sobre um imaginário religioso, marcado pelo pacto da exclusividade, que estabelece um vínculo entre fidelidade e eternidade. Como também lemos em Coríntios 7:4: “Quanto aos assuntos sobre os quais vocês escreveram, é bom que o homem não toque em mulher, mas, por causa da imoralidade, cada um deve ter sua esposa e cada mulher o seu próprio marido. O marido deve cumprir os seus deveres conjugais para com a sua mulher, e da mesma forma a mulher para com o seu marido. A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido. Da mesma forma, o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher”.

Geni Núñez comenta em Descolonizando afetos: “Embora muitas pessoas não associem a monogamia a uma religião específica, mas a algo universal e neutro, na verdade ela é uma orientação cujas bases vêm diretamente do cristianismo”. Na Europa ocidental medieval, os artefatos da cultura, pela voz de trovadores e da literatura, fizeram da paixão o critério da escolha conjugal. As formas tradicionais de escolher um par passaram a ser questionadas. Por que o pai, o clã ou os acordos entre famílias deveriam decidir com quem se casar? Ora, Tristão e Isolda desafiam as ordens reais. A tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare, apresenta a paixão como força e coragem para lidar com as mais severas tempestades. Julieta e Romeu não se deixam influenciar pelos conflitos de suas famílias. Os Capuleto e os Montecchio vivem em estado de guerra, mas a paixão do casal desafia essa realidade. A paixão é exaltada como sentimento de ligação entre os amantes.

De acordo com alguns estudos, como o de Fernando Gomes Pinto, a paixão dura em média de seis a 24 meses, podendo, em alguns casos, a depender de variáveis como a distância e a fre­quência de encontros, durar 36 meses. Uma pessoa apaixonada fica em estado de estresse sem ter sua imunidade comprometida. Um sentimento fugaz que, assentado sobre bases eurocristãs, recebe uma carga intensa da fantasia de eternidade do amor romântico formatado pela monogamia. A paixão não dura para sempre, mas a monogamia vive dessa promessa.

As atuais relações amorosas permanecem “submetidas” à dinâmica eurocristã, que valoriza a paixão e a monogamia publicamente. A indústria cultural não produz narrativas de regimes amorosos não monogâmicos que sejam vistos como “normais”, mas os coloca nas zonas do exótico, marginal ou anormal. Por acaso, as canções de amor e as comédias românticas autorizam regimes amorosos em que o verdadeiro amor apaixonado não seja consumado pelo enlace monogâmico? O problema não é a existência da monogamia, mas sua postulação como universal e única modalidade correta de associação conjugal, supondo sua natureza sagrada e inquestionável. O que acaba por se tornar uma perspectiva ideológica que mascara a multiplicidade de realidades sufocadas pelo projeto colonial.

Um dos aspectos filosóficos que quero ressaltar está na relação com o tempo. A hegemonia do amor romântico está comprometida com o medo de que o sentimento da paixão acabe. Existe ansiedade diante do futuro. O regime amoroso romântico-monogâmico exige conquista, exclusividade e promessa de eternidade. As dúvidas dos amantes estão reunidas em torno das artes da conquista. “Dentro da ideia de conquista, está a luta para acabar com a resistência. A conquista do amor faz da amante o objeto do desejo e a inimiga ao mesmo tempo”, escreve Brigitte Vasallo em O desafio poliamoroso (2022). Os conceitos de disputa, conflito e, principalmente, guerra impõem estratégias e artimanhas para se tornar a pessoa mais especial do mundo para alguém. Nêgo Bispo diz: “É muito mais interessante pensar como vamos cuidar de outra vida quando ela está precisando de cuidado”. Talvez, seja o caso de recorrermos ao amor confluente para consagrarmos o cuidado. Porque enquanto o desejo de amar estiver mobilizado pelas forças sociais regidas pela ânsia de conquistar, e amparado pela fantasia de ocuparmos um pódio afetivo na vida de alguém, o amor caberá, sufocado, apenas nos antigos manuais de arte da guerra.

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Um comentario para "Roteiro para uma nova crítica à monogamia"

  1. Thaís disse:

    Olá,
    Penso que o presente artigo não corresponde ao pensamento da maioria das pessoas, pois já a história registra problemas em relacionamentos decorrentes da bigamia ou da poligamia.
    O ser humano em seu íntimo, anseia amar e ser amado, isso já desde o ventre de sua mãe. O amor é a prática de cuidados e requer reciprocidade, por isso há um sentimento de posse e sempre será assim.
    O problema que hoje, não se constroi relacionamentos sólidos, tudo é baseado em interesses; a paciência, o respeito ( base de qualquer relacionamento) estão quase em extinção.
    Portanto, não é bom modernizar as maneiras de sentir afeto, considerando só afeto sexual como parâmetro de vida, porque assim o ser humano será somente mais um animal a procriar, sem raciocinar como que seus atos pode afetar o outro. Por exemplo, na floresta o Leão mata a girafa por instinto e por fome, já o ser humano tem que ser igual?
    Precisamos primeiro, ter amor e cuidado próprios só assim, vamos aprender amar o outro, o que o outro que resolvi ” amar” aceita ou não!

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