Por uma outra pedagogia no Antropoceno

Tempos de catástrofes requerem novas teorias educacionais, a partir de outros pontos de vista… e vidas. E apostar na construção de mentalidades sensíveis e na ética do amor. Bruno Latour, Ailton Krenak e bell hooks dão pistas para isso…

Excerto de “Criança e Natureza – Brincando com a Natureza na Cidade”, documentário de Maria Farinha Filmes
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O título deste breve ensaio é uma possibilidade de diálogo com a provocação realizada pelo pensador francês Bruno Latour, recentemente falecido, na obra Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. As inquietações intelectuais de Latour são bastante provocativas; todavia, tenho estudado seus textos da última fase em que se dedicou às políticas da natureza ou as ecologias políticas. Pensar com Latour envolve um conjunto de perspectivas, o que favorece com que atuemos a partir de um ponto de vista mais plural e abrangente. Recorro a este pensador sobretudo por reconhecer que estamos vivenciando a oportunidade de reconstruir as bases de nosso pensamento, abrindo espaço para que novas narrativas compartilhadas possam emergir. Aprendi com Latour que, em termos epistemológicos, o desafio não se encontra simplesmente na denúncia dos desafios ou das falhas do pensamento; mas, “enfrentar os mesmos desafios e vislumbrar um panorama que possamos explorar conjuntamente” (Latour, 2020, p. 36).

A emergência de um Novo Regime Climático, expressão preferida pelo pensador francês, coloca sob questão a nossa condição terrestre, procurando compreender de que “dependemos para existir”. Buscar examinar o que caracteriza nossa ação e nossa existência no planeta hoje demanda um novo repertório conceitual, notadamente Latour inquieta-se com a dimensão da orientação política. Em um contexto em que reconhecemos que a nossa presença no planeta ocasiona efeitos importantes – essa é a hipótese do Antropoceno -, também tendemos a considerar que a Terra pode ser um ator político fundamental. Em outras palavras, se a Modernidade nos lançou a um acelerado movimento por modernização (sintetizado na ação capitalista, na soberania dos Estados Nacionais e na centralidade dos humanos como indivíduos autônomos e racionais); hoje, somos convidados a dois movimentos contraditórios: “vincular-se a um solo, por um lado; mundializar-se, por outro” (Latour, 2020, p. 111).

O convite epistemológico realizado por Latour também nos permite “imaginar gestos” que nos favoreçam o engendramento de novos modos de vida e novas relações com o terrestre. Creio que o convite realizado por Latour precise ser levado adiante, especialmente no âmbito da formação humana em que a modernização ainda ocupa o papel de indutora privilegiada das políticas de escolarização. Além deste desafio teórico-político, de indagar pela orientação pedagógica no Antropoceno, esta escrita é realizada desde o Rio Grande do Sul – sul do Brasil – local onde vivemos um evento climático severo nas últimas semanas. Enquanto finalizo este ensaio, milhares de pessoas na minha cidade (São Leopoldo) ainda estão procurando meios para recomeçar: aguardando por acolhimento, cuidado e possibilidades de reconstrução de suas existências.

Tal como indiquei anteriormente, gostaria de “imaginar gestos”, isto é, gostaria de ensaiar alguns redirecionamentos nas teorias educacionais para que possemos nos orientar pedagogicamente no Antropoceno. Afinal, qual finalidade educativa orientará o trabalho pedagógico das escolas em meu Estado quando todas as crianças e adolescentes a elas retornarem? Seguiremos educando apenas para a vida produtiva? Seguiremos contabilizando as aprendizagens em testes ou exames padronizados? Seguiremos formando o sujeito livre e racional desconectado da dimensão terrestre? Ainda teremos pressa para inovar e atender aos imperativos do consumo? Ainda teremos priorizado a competitividade e glamourizado as escolhas individuais?

Enfim, a busca por pensar a orientação pedagógica no Antropoceno vai me levar a realizar três ou quatro comentários. Intencionalmente deixarei inúmeras brechas para que meus interlocutores e interlocutoras (que felizmente sempre me escrevem!) possam ingressar nessa tarefa compartilhada de imaginar novos gestos para a educação em nosso tempo. Vamos ao primeiro comentário.

Em perspectiva antropológica, Christoph Wulf (2021) tem nos interpelado a reconhecer a necessidade de “corrigirmos as imagens que temos do que é ser humano e das nossas práticas sociais e culturais” (p. 16). As teorias educacionais que foram construídas a partir do século XVII assentavam-se na necessidade de formar um indivíduo racional, capaz de compreender e intervir livremente no mundo social e natural. No discurso pedagógico que emergiu em tais condições “universalidade, racionalidade e representatividade tornam-se princípios de sua educação e de seu entendimento do mundo e de si mesmo” (p. 19). Em linhas gerais, mesmo que por caminhos divergentes, a educação produzida na Modernidade apostou no progresso humano, conduzido a partir de um método que nos atribuía uma condição superior (moral e intelectual) em relação aos outros povos e à natureza, levando adiante certo eurocentrismo na composição de nossa relação com a vida e com o mundo.

A questão levantada pelo pesquisador alemão, na obra Educação como conhecimento do ser humano da Era do Antropoceno, remete-nos à necessidade de refundar as teorias educacionais a partir de novas bases.

No Antropoceno de hoje, na “Era dos Humanos”, em que os seres humanos determinam cada vez mais o destino de todo o planeta, questões sobre os seres humanos e como eles são formados na educação estão ganhando importância. Devido ao potencial produtivo e destrutivo dos seres humanos em relação à formação do futuro do planeta há uma necessidade de teoria educacional que leve também em consideração essas dimensões (Wulf, 2021, p. 17).

O primeiro gesto que gostaria que imaginássemos juntos refere-se à necessidade de uma reconstrução da teoria educacional, sintonizando-a aos desafios advindos da era do Antropoceno. A preocupação com essa questão não se vincula somente às perspectivas da Antropologia Filosófica produzida na Europa, mas também percebemos em pensadores brasileiros como Aílton Krenak (2022). Em continuidade, com o pensador (ou ‘sentipensador’) de nossos povos originários podemos nos preparar para imaginar outro gesto: a possibilidade de constituição de mentalidades sensíveis.

No texto “O coração no ritmo da terra”, que integra o recém-publicado Futuro Ancestral, Krenak coloca sua atenção para pensar as relações entre educação e futuro. Recorrendo a sua história de vida, o pensador produz um estranhamento com o modelo da educação ocidental que procura incidir na vida das pessoas, preparando-as para o futuro. Por um lado, Krenak destaca que se trata “de uma violência sobre o percurso que eles já estão habilitados a percorrer aqui na Terra” (p. 95). Por outro lado, a busca por futuro, na educação de uma criança, pode nos levar a uma aceleração do tempo ou ao advento de uma narrativa única. Enfaticamente, seu ponto de partida é que “estamos vivendo cada vez mais a projeção de futuros muito improváveis, embora continuemos preferindo essa mentira ao presente” (2022, p. 97).

Desde essa perspectiva, estaríamos limitando, em nossas práticas educacionais, a possibilidade de a criança trazer a novidade para o mundo. Aprecio a formulação de Krenak acerca deste tópico, sobretudo quando afirma que “deveríamos considerar que dali emerge uma criatividade e uma subjetividade capazes de inventar outros mundos – o que é mais interessante do que inventar futuros” (p. 100). Inventar outros mundos incluiria outras aprendizagens, outra relação com a natureza, com a comunidade, com as memórias, enfim, com a própria Terra. Com isso, o pensador dos povos originários convida-nos a pensar em “mentalidades sensíveis”.

Não há nada mais importante do que a vida. Estamos passando por uma experiência coletiva de apreensão diante de crises e pandemias, mas a constituição de mentalidades sensíveis significa também resiliência, capacidade de esses seres continuarem criando um mundo menos sensível ao terrorismo psicológico que tem atingido a vida contemporânea (Krenak, 2022, p. 104-105).

Além da refundação das teorias educacionais (Wulf, 2021) e da constituição de mentalidades sensíveis (Krenak, 2022), gostaria de acrescentar um terceiro gesto a ser imaginado para que nos orientemos pedagogicamente no Antropoceno. Com bell hooks (2021), considero necessário seguirmos conversando sobre o amor, uma vez que quando dele nos afastamos “nos arriscamos a penetrar em um quadro de selvageria de espírito tão intensa que talvez jamais encontremos o caminho de volta”. A busca pelos caminhos de novas formas de educar não poderia impedir que nos sintamos tocados pelo encantamento com a vida e a melhor palavra para isso, em diálogo com a pensadora estadunidense, ainda é ‘amor’.

Dialogar com as futuras gerações – sobre os saberes, as artes ou os pensamentos compartilhados – pode atribuir ênfase para o amor, em suas diferentes nuances. Ainda que possa parecer sentimentalista ou romântico, concordo com hooks que “todos os grandes movimentos por justiça social de nossa sociedade têm enfatizado fortemente uma ética do amor”. Mais que isso, esse tema merece nossa atenção em um contexto em que os jovens parecem estar se afastando dessa dimensão. Em um consideração pessoal, a pensadora nos oferece uma boa elaboração.

A decepção e uma sensação persistente de coração partido me levaram a começar a pensar mais profundamente no significado do amor em nossa cultura. Meu desejo de encontrar o amor não me fez perder meu senso de razão nem de perspectiva, ele me incentivou a pensar mais, a falar de amor e a pesquisar o tema em textos populares e também em estudos mais sérios.

Inspirado na indagação de Latour, procurei neste texto – em caráter preliminar e aberto ao diálogo – indagar sobre como podemos nos orientar pedagogicamente no Antropoceno. Em uma perspectiva teórica plural, o desafio encontra-se em ‘imaginar gestos’ que nos permitam redesenhar as formas como aprendemos a educar na Modernidade Pedagógica e que possamos revisitar nossos propósitos e nossas práticas com crianças e adolescentes. ‘Imaginar gestos’, na companhia das provocações de Bruno Latour, supõe atribuir ao ‘Terrestre’ o reconhecimento de que seja “um ator político [que] se mostra claramente diferente daquele atribuído à ‘natureza’ dos Modernos” (p. 108). Com Latour (e sua orientação política no Antropoceno), ousamos pensar sobre a perversidade da modernização e assumimos a possibilidade de afirmar que “os pontos de vida, e não somente os pontos de vista, multiplicam-se” (Latour, 2020, p. 107).

O advento do Novo Regime Climático, assim como as ambivalências que o Antropoceno pode nos trazer, exige uma nova orientação: a legitimidade do Terrestre como ator fundamental reorganiza a vida coletiva. Uma orientação política, de acordo com Latour, requer, antes de mais nada, que saibamos “refazer a descrição dos terrenos da vida” (p. 114). Uma vez que buscamos a inspiração nesse pensador, interessa-nos redescrever os sentidos do pedagógico no Antropoceno e construir novas narrativas acerca da formação humana em nossa época. Ao longo deste texto breve ousamos descrever três novos terrenos – como uma lista inicial – pelos quais a pedagogia poderia se orientar, quais sejam: redesenhar as formas pedagógicas modernas, constituir mentalidades sensíveis e reinventar o amor como um afeto educativo. Convido os leitores e as leitoras para que ampliemos esse diálogo e que consigamos avançar em outras orientações pedagógicas para o Antropoceno!


Referências:

HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021.

KRENAK, Aílton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? – Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Disposições curriculares para uma agenda formativa direcionada ao comum: uma renovação pedagógica em curso?. Revista Latinoamericana de Estudios Educativos, v. 53, p. 47-72, 2023. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/366916401_Disposicoes_curriculares_para_uma_agenda_formativa_direcionada_ao_comum_uma_renovacao_pedagogica_em_curso

WULF, Christoph. Educação como conhecimento do ser humano na era do Antropoceno. São Paulo: Cortez, 2022.

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Um comentario para "Por uma outra pedagogia no Antropoceno"

  1. Minha contribuição está no livro NEUROEDUCAÇÃO PARA O ÊXITO que integra na tríade racionalidade-amor-ação. Para uma nova filosofia educacional há que ter como fundamento-chave o princípio triádico confirmado pela física quântica que se reflete no cérebro triádico ou triúno das neurociências. Sem esse conceito refundador e reorganizador, fica tudo em meras opiniões e interesses individuais ou subgrupais…

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