Por que construir uma poética de esquerda?
O campo progressista, muitas vezes, denuncia o sofrimento, mas não propõe outras formas de existência. Não se trata de substituir conteúdo pela forma, mas de ter consciência de que as pessoas também se nutrem com arte, rituais coletivos e utopias concretas
Publicado 28/07/2025 às 16:22

Enquanto a extrema direita ocupa corações e mentes com mitos, medos e símbolos facilmente assimiláveis, parte da esquerda segue presa à crença de que a denúncia racional da exploração bastaria para despertar a consciência revolucionária. Ainda que acumulando diagnósticos certeiros sobre o capitalismo e suas violências, muitos comunistas esquecem um dos motores mais potentes da política: a disputa pelo simbólico.
Essa omissão não é casual. Deriva de uma tradição que desconfia do sensível, do subjetivo e do afetivo, como se fossem domínios menores, supérfluos ou manipuláveis — incompatíveis com a “seriedade” da análise materialista. No entanto, é justamente esse campo — o do imaginário social, das emoções políticas, das identificações inconscientes — que estrutura a adesão popular a projetos históricos. Sem ele, não há como construir hegemonia.
Gramsci compreendia isso. Em seus Cadernos do Cárcere, o comunista italiano insistia que a luta política é também uma luta cultural, travada nas crenças, valores, linguagens, estilos de vida. É ali que se constrói o “senso comum” de uma época. Walter Benjamin, por sua vez, advertia que “o fascismo estetiza a política” — e ao fazê-lo, mobiliza massas não pela razão, mas pela encenação, pelo desejo, pelo mito. Não reconhecer essa dimensão é um erro estratégico que custa caro.
A extrema direita entendeu esse jogo muito melhor. No Brasil, o bolsonarismo se enraizou não só por suas pautas reacionárias, mas pela estética militarizada, pelo imaginário cristão fundamentalista, pelos memes que falam uma linguagem popular. Seu êxito não está apenas em manipular a ignorância, mas em oferecer pertencimento, afetos compartilhados, senso de comunidade — ainda que em torno da violência, do medo e da exclusão.
A esquerda, por outro lado, costuma tratar o simbólico como um detalhe. Muitas vezes, confia demais no poder do “discurso correto”, da informação verdadeira, do esclarecimento racional. Mas a política não é apenas o campo da verdade — é o campo do sentido. E o sentido é uma construção que envolve desejo, imagem, afeto. Como afirma Vladimir Safatle, “não há processo de transformação sem a constituição de um novo corpo político sensível, que reordene os afetos”.
Safatle denuncia a falência de uma esquerda que se limita à crítica e esquece da criação. Uma esquerda que descreve o sofrimento, mas não propõe novas formas de existência. Segundo ele, é preciso refazer o vínculo entre política e experiência sensível, entre transformação social e reinvenção do imaginável. Isso implica recuperar o papel da arte, da música, das linguagens simbólicas, dos rituais coletivos que dão corpo à utopia.
Evidentemente, não se trata de substituir o conteúdo pela forma, ou de cair em um marketing revolucionário vazio. Trata-se de entender que a luta simbólica não é acessória, mas estruturante. Todo projeto político bem-sucedido mobiliza imagens de futuro, metáforas de mundo, mitologias fundadoras. O neoliberalismo fez isso com sua promessa de liberdade individual. O fascismo, com seu culto à ordem e à pureza. O que a esquerda oferece hoje, para além do discurso da crise?
Recuperar o simbólico é também reaprender a falar com o povo. Isso não significa rebaixar a linguagem ou fingir simplicidade, mas reconhecer as formas reais com que as pessoas vivem, sentem, acreditam e se identificam. O evangelismo popular, por exemplo, é uma forma de organização simbólica que estrutura redes de apoio, promessas de salvação, identificação com um projeto moral. Ignorar esse universo em nome de um racionalismo laico e ilustrado é mais do que ineficaz: é arrogante.
Reencantar a política não é tarefa menor. Exige uma esquerda que consiga imaginar novamente — e de fazer imaginar. Uma esquerda que cante, que chore, que fabule. Que construa não apenas programas e planos de governo, mas poéticas de vida, rituais coletivos, utopias concretas. Uma esquerda que produza símbolos, que dispute a estética, que abrace a contradição como potência e não como erro.
Talvez seja hora de lembrar que a revolução também é um ato de criação. Que não basta desmascarar o capitalismo: é preciso oferecer novas máscaras, novos rostos, novas formas de ser no mundo. Como escreveu Benjamin, “não há documento da civilização que não seja também um documento da barbárie”. Cabe à esquerda escrever, com suas mãos, os documentos do porvir — e para isso, é preciso mais do que razão. É preciso alma.
Referências bibliográficas
Benjamin, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Gramsci, Antonio. Cadernos do Cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
Hall, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adail Ubirajara Sobral. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Laclau, Ernesto; Mouffe, Chantal. Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Três Estrelas, 2015.
Safatle, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. Com Alain Badiou, Slavoj Žižek
e organizadores. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
Williams, Raymond. Marxismo e Literatura. Trad. Idelber Avelar. São Paulo: UNESP, 2007.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.