Pataxós pedem novo socorro, no sul da Bahia

Em nova ação de retomada de terras, indígenas enfrentam milícias que tentam roubar seus territórios – e que até fecharam a última via de acesso à praia Imbassuaba, visando isolar os povos. Carta pede proteção à escalada de violência iminente

Em retomada na TI Barra Velha, cacique Suruí Pataxó exibe um pano utilizado em rituais pelo jovem Samuel Cristiano do Amor Divino, assassinado em 2023. Tecido foi estendido em sua memória na retomada onde morava. Foto: Tiago Miotto/Cimi
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O povo Pataxó realizou, neste domingo (3), a retomada de uma área localizada no interior da Terra Indígena (TI) Comexatibá, no município de Prado, extremo sul da Bahia. A área, segundo os indígenas, é parte da aldeia Kaí e está sobreposta por duas propriedades. A retomada foi motivada pela ação dos proprietários das fazendas, que fecharam a última via de acesso à praia Imbassuaba. A ação deu origem a uma carta aberta em que pedem proteção e providências para a conclusão da demarcação de terras.

Os indígenas apontam ainda que já fizeram diversas denúncias sobre as ameaças sofridas por lideranças, feitas por fazendeiros e especuladores de terras que detém ou cobiçam as áreas sobrepostas à TI. Este ano, a estado de violência escalou após o assassinato de Vitor Braz, morto por disparos de arma de fogo. Em seguida, uma casa foi queimada na aldeia Monte Dourado, localizada na TI Comexatibá.

Na tarde desta segunda-feira (4), após a recém retomada, os Pataxó denunciaram, em suas redes sociais, que um indivíduo intimidou duas lideranças com uma arma de fogo.

Contexto

O território indígena Pataxó no extremo sul da Bahia enfrenta um cenário alarmante de ameaças e violências provocadas pela especulação imobiliária, fazendeiros ligados ao agronegócio, e políticos locais. A região, conhecida como Terra Indígena Comexatibá, já foi oficialmente delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2015, mas aguarda há mais de uma década a conclusão de seu processo de demarcação pelo governo federal.

Enquanto a morosidade estatal persiste, cresce a ocupação irregular do território por fazendeiros e empresários que atuam na comercialização ilegal de terrenos, sítios e fazendas dentro dos limites da TI Comexatibá. Além da grilagem (obtenção ilegal de terra pública por meio de documentos falsos), a venda de lotes e construção de condomínios residenciais sobre áreas de reforma agrária e sobrepostas ao território tradicional Pataxó tem avançado, desrespeitando leis ambientais, direitos indígenas e o próprio ordenamento constitucional.

Bloqueio ilegal do acesso à praia e reação Pataxó

Recentemente, um dos chamados “proprietários” da área decidiu bloquear todos os acessos à praia de Imbassuaba, historicamente utilizado por indígenas, pescadores, visitantes e moradores locais para pesca, lazer e práticas culturais. A interdição gerou indignação por parte de setores da comunidade de Cumuruxatiba, distrito de Prado, porém, nenhuma medida concreta foi tomada.

Diante da omissão do Estado, o povo Pataxó decidiu ocupar a área de forma pacífica e realizar uma nova etapa de autodemarcação do território, para garantir a reabertura dos acessos à praia e garantir a livre circulação para toda a comunidade, como estabelece a Constituição Federal. A área retomada integra a Aldeia Kaí era explorada por duas fazendas – “Portal da Magia” e “Portal da Fazenda Imbassuaba” – localizadas a poucos metros da Escola Estadual Indígena Kijetxawê Zabelê.

A resposta dos setores econômicos locais à retomada indígena tem sido marcada pela violência. Lideranças denunciam a presença constante de milicianos e pistoleiros, que armados entre Cumuruxatiba e as aldeias, ameaçam moradores, intimidam famílias e geram um ambiente de medo. Relatos de disparos de arma de fogo próximos às aldeias são recorrentes, somando-se a um histórico trágico de assassinatos de jovens Pataxó nos últimos anos, incluindo crianças e adolescentes.

Inação do Estado alimenta violência e impunidade

A demora do Estado brasileiro em concluir a demarcação da TI Comexatibá tem sido apontada pelas lideranças indígenas como a principal causa da intensificação dos conflitos na região. Além das mortes já registradas, os Pataxó denunciam a atuação ilegal de agentes de segurança pública como seguranças privados a serviço de fazendeiros — prática investigada pelo Ministério Público Federal.

Em carta aberta divulgada no dia 3 de agosto, a comunidade Pataxó afirma estar “cansada de esperar”, e denuncia que o território “vem sendo invadido, barganhado e comercializado nos mercados imobiliários”. O documento cobra providências urgentes ao presidente Lula, ao governador Jerônimo Rodrigues, à Funai, ao Ministério dos Povos Indígenas, MPF, DPU e Incra, exigindo a proteção das lideranças, o fim da violência e a conclusão da demarcação.

Defesa ambiental e econômica comunitária

A luta do povo Pataxó transcende a questão territorial: está profundamente ligada à proteção ambiental e à economia local. A TI Comexatibá abriga um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica preservada no litoral do Nordeste brasileiro, com espécies nativas de fauna e flora ameaçadas de extinção. A ocupação tradicional pelos Pataxó tem se mostrado não apenas sustentável, mas restauradora – com ações de reflorestamento e recuperação de áreas degradadas conduzidas pelas próprias comunidades.

Além disso, os modos de vida indígenas sustentam economias locais como a pesca artesanal, a coleta, o turismo de base comunitária e o artesanato, que gera renda e promove o cuidado com o território. A violação dos direitos territoriais indígenas impacta diretamente esses modos de vida e compromete o equilíbrio ecológico da região.

Autodemarcação como ferramenta legítima de resistência

A autodemarcação da Terra Indígena Comexatibá surge, como uma resposta diante da omissão institucional, da violência sistemática e da destruição ambiental. Ao retomarem áreas estratégicas de seu território, os Pataxó não apenas garantem sua sobrevivência física e cultural, mas também protegem o direito coletivo de toda a sociedade ao acesso livre às praias, à preservação dos ecossistemas e ao respeito à Constituição Federal.

É dever do Estado brasileiro cumprir seu papel de garantir os direitos dos povos originários, fiscalizar a venda ilegal de terras, proteger as lideranças ameaçadas e finalizar os processos de demarcação com urgência. Enquanto isso não acontece, o povo Pataxó seguirá em pé, em defesa da vida, da floresta e de seu direito ancestral de existir.

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