O Eternauta propõe a volta do herói coletivo

A que se deve o enorme sucesso da série que revisita quadrinho argentino? Seu enredo alude às ditaduras latino-americanas e às distopias atuais para provocar: quando a resignação paira no ar, é preciso reconstruir a consciência das maiorias

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Por Jose Durán Rodríguez, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

“Na primeira leitura, quando criança, a gente não percebe as camadas políticas — recorda o jornalista Damián Huergo (Buenos Aires, 1983) —, basicamente porque não sabia que em 1955 uma aliança de direita, entre setores conservadores, eclesiásticos e militares, havia bombardeado a população civil no coração do coração da Argentina, na Plaza de Mayo, com o objetivo de assassinar Perón, gerando mais de 300 mortos”. Sobre este episódio da história argentina.

Azcárate e Huergo concordam em apontar os flocos de neve mortais que caem nas páginas de O Eternauta como metáfora desse acontecimento histórico – uma primeira tentativa de derrubar Perón que se consumaria definitivamente alguns meses depois, dando início às ditaduras militares.

Na HQ, a nevasca surpreende Juan Salvo, o narrador, que joga cartas em casa com amigos. Diante da evidência de que esses flocos matam, eles discutem como se organizar para sobreviver sem sair, até que não lhes resta alternativa senão cruzar a porta da casa, vestindo trajes impermeáveis que confeccionaram para a ocasião.

A partir daqui, O Eternauta assume outra dimensão, onde os sobreviventes enfrentam uma invasão extraterrestre de besouros gigantes (“os cascarudos”), homens-robô, estranhos seres chamados Mãos (que morrem quando sentem medo) e bestas mastodônticas conhecidas como Gurbos. Por trás dessas criaturas – que atuam como força de choque contra sua vontade – estão Eles, o poder anônimo.

A escritora argentina Ana Llurba (Córdoba, 1980) observa que toda ficção dialoga com sua época, “mas só a boa dá uma voltinha a mais – e acho que foi isso que Oesterheld fez: trazer o imaginário pop para uma Buenos Aires palpável e detalhada, invadida por essas forças extraterrestres”.

A autora do romance Hemoderivadas (Aristas Martínez, 2022) também ressalta que a obra é sempre interpretada de maneira singular por cada leitor, com camadas de significado múltiplas e amplas. “A HQ permanece viva por essa ambiguidade. Limitá-la à biografia de Oesterheld ou ao contexto da época, como se faz com os contos policiais de Rodolfo Walsh, é muito reducionista”, observa Llurba.

Em abril de 1977, Oesterheld foi sequestrado pela ditadura militar de Jorge Rafael Videla. Junto com suas quatro filhas e três genros, o escritor integra a longa lista de desaparecidos da Argentina – pessoas das quais nunca se soube o paradeiro. Sua esposa, Elsa Sánchez, ativista e integrante das Avós da Praça de Maio, manteve viva a memória e obra de Oesterheld até seu falecimento em 2015.

Alberto Azcárate comenta que se poderia supor uma vida relativamente tranquila durante a ditadura para quem não se metia em política, mas que essa suposição não corresponde à realidade, em sua opinião. Ele lembra que muitas pessoas foram “desaparecidas” sem ter participado da guerrilha, nem mesmo de organizações de esquerda ou peronistas radicais – e ainda assim foram vítimas da ditadura.

Como exemplo, menciona o “desaparecimento” de Tenorio Jr, pianista de Vinicius de Moraes e Toquinho, “episódio retratado no impactante documentário de animação Atiraram no Pianista, de Fernando Trueba e Javier Mariscal”.

Super-heróis de bairro diante do apocalipse

Nas páginas de O Eternauta, a ação transcorre em locais conhecidos como a Avenida General Paz, o estádio do River Plate e o Congresso Nacional – todos atingidos pela queda dos mortais flocos fosforescentes. Essa proximidade, essa visão do apocalipse em um cenário familiar, impactou Huergo quando leu a HQ pela primeira vez na juventude. Foi na casa de seu tio Rubén, militante de esquerda que conseguiu “escapar da guilhotina” da ditadura.

“Quando se é criança na Argentina, Nova York, Tóquio ou Barcelona são tão distantes quanto Marte, Xaldhia ou Krypton. Ver um herói – um personagem cotidiano que involuntariamente se torna herói, que joga truco, pai de família que protege os seus, envolto numa linguagem que eu não precisava decodificar – foi o que me fez segui-lo quadro a quadro, página a página.”

“Um herói próximo, que podia ter uma loja de ferramentas ou ser professor, que em sua jornada – ainda que navegando pela eternidade – borrava a linha entre realidade e ficção”, relata Huergo.

Azcárate, por sua vez, oferece outras interpretações possíveis para O Eternauta. Segundo ele, a obra avança além do cenário orwelliano de 1984, porque “embora herde a atmosfera asfixiante de sociedade de controle do romance, este já não é exercido apenas por uma entidade exterior ao indivíduo (o Estado), mas também por uma subjetividade introjetada no sujeito por duas vias”. A primeira seria mais “grosseira e visível”: a instalação de chips em pessoas comuns para transformá-las em homens-robô). A segunda, mais “sofisticada e familiar em nossa contemporaneidade”: convencê-las de que este é o único mundo possível, levando-as à inoperância e resignação.

Num certo momento, recorda Azcárate, Favalli — o professor de Física amigo de Juan Salvo — reflete sobre “a fraqueza de não ter agido antes”, frase que ele interpreta como “autocrítica por ter permitido que o inimigo se apoderasse de suas vontades”, comparando-a com “nossa contemporaneidade digital saturada de redes sociais, telas e ‘verdades’ em 140 caracteres”.

Da mesma forma, ele entende que O Eternauta também levanta questões sobre o papel da informação, memória e consciência no comportamento das sociedades, “já que em sua aparição o ‘fantasma’ esclarece a Oesterheld que o enredo que acabou de contar acontecerá dali a alguns anos. O roteirista então se pergunta se, ao contá-la, poderá evitar que o relatado aconteça”.

O roteirista chileno Carlos Reyes (Santiago do Chile, 1967) considera O Eternauta uma das maiores obras de ficção científica em quadrinhos em nível mundial, e a aponta como uma das razões que o fizeram acreditar que também poderia escrever HQs.

“Oesterheld e Solano López criaram na América Latina algo que o resto do mundo levou décadas para compreender: que os quadrinhos são uma linguagem autônoma, tão digna quanto o cinema, teatro ou literatura – uma plataforma comunicativa onde todas as experiências criativas cabem e são possíveis, desde as mais leves até as mais eruditas, do mero entretenimento (que também adoro) até a exploração de temas complexos e profundos. Eles me mostraram que os quadrinhos podiam ser tudo isso e mais”, explica o autor da graphic novel Los años de Allende, feita com o desenhista Rodrigo Elgueta. Juntos formam a dupla criativa responsável por outras HQs como Nosotros los Selk’nam e Víctor Jara: un canto comprometido.

A leitura de O Eternauta, “apesar de certos arcaísmos da época como excesso de textos em algumas passagens”, fez-no apreciar o caráter inovador e avançado da obra de Oesterheld e Solano López. Ali havia matéria-prima para muitos frutos: “Eles não subestimavam os leitores e deram densidade, espessura narrativa, a um meio que outros ainda viam como mero passatempo infantil”.

“Que seus heróis não fossem aqueles personagens invencíveis e poderosos das HQs norte-americanas, mas gente comum que se assusta, erra e nem sempre vence, foi outro acerto raro na época”, avalia o escritor, destacando como ousada a ideia de que “alguns extraterrestres são meros fantoches, carne para canhão dos verdadeiros invasores – sempre nas sombras -, o que permite múltiplas leituras e interpretações políticas”.

Concorda com essa visão Antonio Altarriba (Zaragoza, 1952), Prêmio Nacional de Quadrinhos da Espanha (2010) por El arte de volar (ilustrado por Kim), que recorda ter se atraído menos pelo impacto visual de Solano López e mais pelo papel dos Eles: “os incontestáveis vilões da série, onipotentes e ao mesmo tempo invisíveis e anônimos. Os mecanismos do poder são tão obscuros quanto implacáveis”.

Seu primeiro encontro com O Eternauta foi em 1979, ao comprar a edição da segunda parte (OEternauta e outros contos) publicada pela Nueva Frontera. Interessado nos recursos experimentais de Breccia nas ilustrações, ele admite ter preferido os desenhos à história. Anos depois, ao conhecer a primeira HQ, viu que era muito melhor.

Altarriba argumenta que a premissa não era original – tratava-se de uma invasão alienígena, tema já explorado em filmes como Invasores de Marte (1953), a adaptação de A Guerra dos Mundos de H.G. Wells, e A Invasão dos Ladrões de Corpos (1956). Era tema frequente também nos romances e HQs da editora EC Comics na mesma época, mas Altarriba ressalta que a diferença de O Eternauta está em seu viés político.

“Poderíamos dizer que em O Eternauta não temos uma ficção científica que deriva para uma visão política, mas sim uma visão política que se disfarça de ficção científica para se tornar mais aterradora. Transpor a ação para outros mundos, uma civilização alienígena supostamente avançada, permite levar mais longe a repressão e anulação dos indivíduos pelas tirania”.

Para ele, outra característica marcante da obra é o protagonismo compartilhado: “É verdade que Juan Salvo opera como um aglutinador da ação, mas não é um herói modelo e invencível como em outras HQs”.

Além de O Eternauta, Altarriba analisa o contexto dos quadrinhos na Argentina, muitas vezes subestimado: “Esquecemos que é um país crucial na história universal dos quadrinhos. Antes da França ou EUA, autores argentinos levaram essa forma de expressão a sério, acreditando em seu potencial artístico e político”.

“Na Argentina já se faziam HQs artisticamente rigorosas, politicamente engajadas e narrativamente inovadoras nos anos 1950”. Por isso, ele vê O Eternauta não como reação aos quadrinhos da EC, mas como “lição de como, com poucos recursos e uma forma expressiva considerada infantil, podia-se fazer grande arte. Foi essa consciência adulta do meio que impulsionou O Eternauta e outras obras-primas argentinas dos últimos 70 anos”.

Nessa linha, Alberto Azcárate recorda que, durante sua adolescência nos anos 1960, os quadrinhos, chamados historietas na Argentina, eram “um gênero popular, de ampla difusão e diversidade de personagens para diferentes públicos”.

Oferta era concentrada em revistas como “Misterix, El Tony, Fantasía e D’Artagnan”, além dos “pequenos fascículos de historietas” que chegavam às bancas semanalmente: “Eram séries com o instigante e frustrante ‘continua’, trazendo epopeias de Buffalo Bill, Zorro, Bat Masterson, Tom Mix, Hopalong Cassidy e O Cavaleiro Solitário”.


Leia abaixo trecho de uma crítica da série O Eternauta, lançado pela Netfix, escrita por Carlos Rehermann para o La Jornada.

A série O Eternauta: uma leitura atenta da história em quadrinhos

Com heróis coletivos, exércitos argentinos patrióticos e sorridentes “nestornautas” rondando, o primeiro aspecto a reconhecer é a coragem dos produtores da série da Netflix.

Quando foi lançada a campanha promocional, utilizou-se o mote “herói coletivo”. Mas diante das primeiras reações negativas de parte significativa do público, tentaram afastar o fantasma do Nestornauta. O slogan promocional mudou para uma frase menos perigosa: “Ninguém se salva sozinho”.

A primeira temporada adapta menos da metade da história em quadrinhos e mostra que os roteiristas estudaram profundamente Oesterheld e estão conscientes dos perigos. Um deles é dar rosto a um mito.

Num livro, os personagens são suas ações e diálogos ou pensamentos; no cinema soma-se a intensa presença física dos atores. E quando são famosos, essa presença inevitavelmente ganha duas faces: vemos Juan Salvo e simultaneamente vemos Ricardo Darín e o que achamos que sabemos sobre ele.

Essa dupla presença tende a enviesar o significado; sabendo que Favalli é o ator uruguaio César Troncoso e Juan Salvo diz “os que estão lá fora não contam” – frase típica de herói uruguaio -, o sentido ganha uma peculiar complexidade.

A criticada decisão de ambientar a história no presente é tão válida quanto uma reconstrução histórica, mas traz algumas vantagens. Por um lado, mostrar um “aqui e agora” da catástrofe global permite recuperar o clima de inquietação que teve para os leitores de 1957. Por outro, a Argentina hoje tem a experiência de uma guerra internacional que não tinha na época da publicação da HQ; as lembranças de Juan Salvo (na série) sobre sua participação na Guerra das Malvinas matizam a necessária (como exige a HQ) aparição do exército, de uma memória tão terrível.


Qualquer intervenção militar anterior a Malvinas se poderia associar à repressão de populações indefesas. Independentemente da opinião sobre aquela guerra ou dos motivos da ditadura para iniciá-la, ambientar a ação após Malvinas desobstrui o caminho e desvia, ainda que minimamente, a rejeição que se sente ao ver heróis militares argentinos.

Talvez um dos maiores problemas da série esteja na mudança do papel da mulher nas narrativas atuais em comparação com as de 70 anos atrás. As únicas mulheres da HQ são Elena, esposa de Juan Salvo, e sua filha Martita. Seus papéis se limitam a preparar comida, servir de apoio para diálogos circunstanciais (“mas primeiro comam”, exigem antes dos homens saírem para o matadouro), ou próprios de uma idiota (“mas e se os invasores não vierem com más intenções? Se forem bons?”, diz Elena em meio à devastação planetária). A série outorga às mulheres certo grau de cidadania, dando-lhes profissões úteis à comunidade, embora ainda as mantenha, nesta primeira temporada, em plano secundário frente à ação bélica.

Porque, sim, a HQ é essencialmente do gênero bélico. A série, cautelosa, adentra-se no gênero com menos uniformes que a HQ, mas com igual quantidade de ingredientes surpreendentes – insetos e extraterrestres infiltrando-se gradualmente na trama, e os perturbadores homens controlados à distância pelos invasores.

Se Oesterheld foi incorporando elementos inesperados, pressionado pela demanda, para manter a tensão narrativa, a série tem a vantagem de conhecer toda a trama antecipadamente, podendo assim dosar de forma mais equilibrada o aparecimento desses elementos.

A série tem um ótimo elenco, cenografia de alto nível, ótima direção e ritmo bem trabalhado. Como na HQ, a forma não inova; aquela disposição em tiras uniformes tem como correlato uma continuidade de ação tradicional; a música incidental acompanha sem sobressaltos; a montagem, mantendo como na HQ o ponto de vista de Juan Salvo, segue o manual.

A série evita o relato-marco e a autoficção – O Eternauta materializando-se na casa do roteirista-; porém opta por revelar gradualmente e com maior sutileza a condição de viajante no tempo de Juan Salvo, que o espectador vai descobrindo ao longo dos episódios. É o aspecto mais interessante da transposição, cujo desenvolvimento na segunda temporada será interessante observar.

Se pensarmos na versão de 1969 da HQ, com os extraordinários desenhos de Breccia, talvez pudéssemos sonhar com uma série visualmente mais arriscada. Seria pedir demais: esta produção certamente abrirá caminho para outras, adequadas aos públicos massivos que as plataformas de streaming demandam.

A editora Frontera obteve notável sucesso em um mundo muito diferente deste. Talvez o mais inovador que se possa imaginar hoje seja adaptar uma história de sete décadas atrás para continuar construindo um mito.

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