O ruidoso colapso da ordem ocidental
Uma após a outra, as instituições que mantinham a hegemonia do Ocidente estão se tornando inativas. Declínio escancara-se com Trump, mas é anterior a ele. BRICS despontam como alternativa; porém, ainda não estão prontos. O que ainda falta?
Publicado 05/08/2025 às 19:51 - Atualizado 05/08/2025 às 19:56

Por Walden Bello | Tradução: Antonio Martins
Os recentes bombardeios unilaterais dos Estados Unidos a instalações nucleares do Irã reforçam o fato de que o multilateralismo liberal está morto — e já faz algum tempo.
Não é apenas no que diz respeito ao uso do poder militar que esta tendência se apresenta. As principais instituições da globalização liderada pelo Ocidente não funcionam mais ou estão em modo de espera. Isso ficou evidente com a decisão do governo dos EUA de boicotar tanto a Cúpula de Finanças e Desenvolvimento em Sevilha, na Espanha, no início de junho, quanto a Cúpula do Clima de Bonn, algumas semanas antes.
A Organização Mundial do Comércio nunca se recuperou do colapso da Quinta Reunião Ministerial em Cancun, em 2003, com os Estados Unidos, na verdade, assumindo a liderança em enfraquecê-la ao impedir nomeações para sua unidade decisória, o tribunal de apelações. Há uma resistência ferrenha no FMI e no Banco Mundial para mudar as cotas de poder de voto e conceder à China, aos demais BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) e a outros países do Sul Global o peso que merecem no equilíbrio global do poder econômico, em clara mutação
Há mais de quatro anos encerrou-se iniciativa do G-20 para suspensão das dívidas. Mesmo com muitos países do Sul Global afundando em uma crise de endividamento pior que a dos anos 1980, nenhum novo esforço para resolver o problema partiu do Norte Global. Em vez disso, o Clube de Paris tem alimentado um jogo de culpa, acusando a China de não se unir a uma frente comum para pressionar os países endividados.
No que diz respeito ao financiamento climático, o Sul Global executou um recuo conciliatório com a Iniciativa Bridgetown que, liderada por Barbados, integra desenvolvimento ao financiamento climático. Mesmo assim os US$ 58 bilhões liberados após anos de negociações difíceis são insignificantes, perto do US$ 1 trilhão necessário anualmente para cobrir perdas e danos infligidos ao Sul Global pelas atividades climaticidas dos principais poluidores. E, com um governo negacionista agora no poder em Washington, os outros grandes criminosos climáticos ganharam a desculpa para não ampliar seus compromissos, já frágeis e voluntários. A Conferência da ONU para Mudança Climática (UNFCCC) vai se reunir em Belém, Brasil, em novembro, para sua Cúpula do Clima anual, mas a realidade é que as negociações estão paralisadas.
Morte de uma Grande Estratégia
Os Estados Unidos foram decisivos nesse recuo do multilateralismo, e esse processo começou muito antes da ascensão de Donald Trump. O atual presidente foi quem cortou o blá-blá-blá, abandonou a hipocrisia e decretou o fim da grande estratégia do internacionalismo liberal que orientou os EUA nos últimos 80 anos — quando o país se comprometia a combater ameaças ao capital e ao poder estatal norte-americano onde quer que surgissem. Como observou Viktor Orbán, a figura europeia mais admirada por Trump, o plano de seu colega autocrata é recuar para as Américas, revitalizando o coração imperial (a América do Norte) enquanto fortalece o controle dos EUA sobre a América Latina — uma reafirmação agressiva da Doutrina Monroe.
E Orbán completa: “não haverá mais exportação de democracia.”
Trump pode parecer imprevisível, mas há uma linha de tendência por trás de seus zigue-zagues. Ele apenas reconhece o que seus predecessores se recusaram a ver: que o império está sobrestendido e já não tem recursos para manter seus múltiplos compromissos.Além disso, ele está respondendo ao segmento mais influente de sua base do Make America Great Again.Esse movimento é produto da crise de quatro décadas do capitalismo e do imperialismo. De um ponto de vista progressista, ele tem características contraditórias. É, para usar o termo de Althusser, uma “contradição sobredeterminada” que mescla os piores impulsos racistas, etnocêntricos e anti-intelectuais com um profundo desprezo pelas iniciativas neoliberais pró-globalização e pelas políticas intervencionistas e belicistas dos internacionalistas liberais e neoconservadores que dominaram a política nas últimas oito décadas. É fascismo, mas, ao contrário dos anos 1930, é um fascismo voltado para dentro, não expansionista.
O que está surgindo é um imperialismo na defensiva, que prioriza barreiras tarifárias contra importações estrangeiras. Ele adotou medidas duras para barrar migrantes não brancos e expulsar trabalhadores indocumentados; desmontou as cadeias globais de suprimento criadas pelo capital transnacional norte-americano; repatriou suas instalações produtivas para os EUA e — last but not least — afastou completamente o país dos esforços coletivos para enfrentar a crise climática. O programa MAGA defendido por ideólogos como Peter Navarro, o vice-presidente JD Vance, Tucker Carlson e Steve Bannon é muito popular, embora, para economistas ortodoxos, seja uma loucura.
O mundo provavelmente está entrando em uma era de competição geoeconômica, na qual o livre comércio e a livre circulação de capital estão sendo substituídos por uma estreita cooperação entre capital nacional e Estado para limitar a penetração estrangeira no mercado interno e impedir a aquisição de tecnologia avançada — especialmente inteligência artificial (IA) — por rivais corporativo-estatais.
É uma política industrial com viés reacionário exacerbado. No caso de Trump, os métodos preferidos para lidar com o Sul Global são ações econômicas unilaterais (em vez de iniciativas multilaterais via instituições de Bretton Woods) e ataques militares isolados (em vez de operações conjuntas da OTAN), como os recentes ataques ao Irã — e definitivamente sem tropas em solo.
Dizem que a natureza abomina o vácuo. Com o sistema multilateral global dominado pelos EUA paralisado, muitos no Sul Global buscam fontes alternativas de assistência econômica e política.
Entre os candidatos está o grupo conhecido como BRICS, que tem algo que o G77 — apesar de suas virtudes como espaço de aliança para países em desenvolvimento — não tem: peso econômico.
A Ascensão dos BRICS
Os BRICS se desenvolveram institucionalmente de forma gradual. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), concebidos para funções semelhantes às do Banco Mundial e do FMI, respectivamente, foram criados em 2015, mas mantiveram perfil discreto. Talvez, para assegurar ao Ocidente que não buscavam substituir essas instituições-chave do sistema multilateral dominado por ele, além de desencorajar países em desenvolvimento a vê-los como fontes alternativas principais de financiamento para desenvolvimento e emergências. Até o final de 2021, os empréstimos acumulados do NDB somavam apenas US$ 30 bilhões, uma fração do volume do Banco Mundial no período 2015-2021.
Em 1º de janeiro de 2025, Egito, Etiópia, Irã, Indonésia e Emirados Árabes Unidos (EAU) juntaram-se aos cinco membros originais. O bloco de 10 países agora representa mais de 40% da população global e detém 28% da economia mundial (US$ 26,5 trilhões). O fato de tantos países — incluindo Tailândia e Malásia — estarem na fila para entrar no clube dos BRICS mostra que o Sul Global percebe que a balança pende contra o Ocidente, que se tornou defensivo, rabugento e inseguro.
Vários membros atuais e potenciais têm superávits significativos que poderiam ser direcionados a empréstimos para desenvolvimento. Além dos recursos enormes da China, os Emirdos Árabes têm US$ 2,23 trilhões em seu fundo soberano. A Arábia Saudita — que postergou sua adesão, mas deve entrar no futuro — possui US$ 1,3 trilhão em seu fundo. Esses valores poderiam multiplicar a capacidade do CRA e do NDB.
Essas expectativas depositadas nos BRICS por muitos no Sul Global são realistas? Em primeiro lugar, os BRICS — especialmente a China — foram cruciais para levar o equilíbrio de poder econômico global contra o Norte a um ponto de virada. A China, em particular, forneceu a muitos países do Sul Global uma fonte alternativa de financiamento no último quarto de século, ampliando seu espaço de desenvolvimento.Como observou o economista progressista Kevin Gallagher, a China é hoje o maior banco de desenvolvimento do mundo.
Isso gerou forte reação negativa no Ocidente. Embora haja falhas nos empréstimos chineses, circulam muitas mentiras de fontes ocidentais — como a alegação de que a China está levando países a uma “armadilha da dívida”. É balela incentivada pelo FMI. A ajuda chinesa não é desinteressada, mas não impõe as condicionalidades asfixiantes do FMI e do Banco Mundial.
Motivos para Cautela
Mas há razões para cautela. Os mecanismos institucionais dos BRICS para fornecer assistência ainda são incipientes.Não se trata apenas de ampliar sistemas de assistência. Muitos candidatos a ingressar esperam que os processos decisórios dessas instituições sejam mais participativos e democráticos que os das agências ocidentais. A grande questão é: os principais atores dos BRICS estarão abertos a compartilhar o poder decisório sobre seus recursos?
Outra questão: como os BRICS reúnem Estados autoritários e apenas formalmente democráticos, não é realista esperar que eles projetem suas preferências regimeis e estilos de governança num cenário multilateral?
Este ano marca o 70º aniversário da icônica Conferência de Bandung. O Sul Global avançou muito na descolonização e, sobretudo nas últimas sete décadas, em aproximar-se de um ponto de virada no equilíbrio de poder frente ao Norte.Mas a Declaração de Bandung não era apenas sobre descolonização política e econômica. Seu primeiro princípio, entre dez, era “respeito aos direitos humanos fundamentais e aos propósitos e princípios da Carta da ONU”.
Dois dos principais articuladores em Bandung foram Índia e China, que hoje desempenham papel central nos BRICS. Nehru e Zhou En Lai foram vozes exemplares do Sul Global em 1955, quando a descolonização era a questão urgente.No entanto, em relação ao primeiro princípio de Bandung, seus governos atuais estão longe de ser paradigmas de direitos humanos.A Índia hoje é governada por um regime nacionalista hindu que trata muçulmanos como cidadãos de segunda classe.Pequim é acusada de promover a assimilação cultural forçada dos uigures, embora o Ocidente possa exagerar esse processo. Quanto a outros patrocinadores-chave da conferência de Bandung, os regimes militares de Mianmar e do Egito são notórios por violações em massa de direitos humanos.
De fato, a maioria dos Estados do Sul Global é dominada por elites que, seja através de regimes autoritários ou democracias liberais, mantêm estruturas sociais e econômicas problemáticas. Os níveis de pobreza e desigualdade são chocantes. O coeficiente de Gini do Brasil é 0,53, tornando-o um dos países mais desiguais do mundo.O índice de 0,47 da China também reflete uma desigualdade enorme, apesar dos avanços notáveis na redução da pobreza. Na África do Sul, o coeficiente de Gini chega a 0,63, e 55,5% da população vive abaixo da linha da pobreza.Na Índia, a renda se polarizou nas últimas três décadas, com um aumento significativo de bilionários e outros indivíduos de alto patrimônio.
A realidade é que as grandes massas populacionais do Sul Global – incluindo comunidades indígenas, trabalhadores, camponeses, pescadores, povos nômades e mulheres – são economicamente marginalizadas. Mesmo nas democracias liberais, como Filipinas, Índia, Tailândia, Indonésia, África do Sul e Quênia, a participação democrática frequentemente se limita a votar em exercícios eleitorais periódicos e muitas vezes vazios de significado. Modelos de investimento e cooperação Sul-Sul, como a Iniciativa Cinturão e Rota e acordos de livre comércio, frequentemente envolvem a apropriação de terras, florestas, recursos hídricos e zonas marinhas, além da extração de riquezas naturais em nome do desenvolvimento nacional.Populações locais – muitas indígenas – são despojadas de seus meios de subsistência, territórios e domínios ancestrais com pouco acesso a recursos legais e à justiça, evocando o espectro de um colonialismo interno e contrarrevoluções.
Dois pontos são importantes aqui: embora o Norte Global tenha contribuído para perpetuar a pobreza e desigualdade no Sul Global, boa parte de nossa condição atual é obra das próprias elites do Sul. Em segundo lugar, a governança democrática em nível global não pode ser dissociada da governança democrática em nível local.
Capitalismo e Multilateralismo
Há uma terceira consideração – e não menor – ao avaliar o futuro dos BRICS, e aqui é útil comparar o momento histórico de Bandung com o atual.
Na época da Conferência de Bandung, a economia política global era mais diversa: existia o bloco comunista liderado pela União Soviética; a China, buscando transitar da democracia nacional para o socialismo; e Estados neutros como a Índia, que procuravam uma terceira via entre comunismo e capitalismo.
Após décadas de transformação neoliberal no Norte e no Sul Global, essa diversidade desapareceu. Talvez o maior obstáculo a uma nova ordem global equitativa seja o fato de todos os países permanecerem inseridos no capitalismo global, onde a busca por lucros continua sendo o motor da expansão econômica – gerando enormes desigualdades e ameaçando o planeta.
Embora os centros dinâmicos do capitalismo global tenham se deslocado nos últimos 500 anos – do Mediterrâneo para a Holanda, depois para a Grã-Bretanha, Estados Unidos e agora Ásia-Pacífico, o capitalismo continua a penetrar os confins do globo e a se enraizar mais profundamente nas áreas que subjugou.
Como diz um famoso manifesto, sob o capitalismo “tudo que é sólido desmancha no ar”, criando desigualdades dentro e entre sociedades e agravando a relação entre o planeta e a comunidade humana. Seja capitalismo de mercado, desenvolvimentista ou estatal, todas essas variantes compartilham a mesma dinâmica de extração de excedentes, com enormes externalidades planetárias.
Será possível avançar para um sistema multilateral mais participativo sem construir um sistema pós-capitalista de relações econômicas, sociais e políticas? O mundo não está condenado a repetir a experiência do Ocidente. É muito positivo que a hegemonia do Norte esteja se fragmentando e que o sistema multilateral criado para dominar o Sul Global esteja em colapso. Em vez de tentar consertar esse sistema, é melhor buscar o objetivo estratégico de desmantelá-lo, usando uma combinação de negociação, promoção de uma contra-agenda radical e coerção como armas complementares.
Desarticular Sevilha e Belém, mas…
Com os EUA saindo do processo de Financiamento para o Desenvolvimento e boicotando a pré-COP 30 em Bonn, os europeus devem ser deixados para “salvar” o multilateralismo em Sevilha e Belém.
Essas assembleias devem ser usadas para desacreditar ainda mais o multilateralismo. Substituir esse sistema não será fácil, porém, e haverá retrocessos e descarrilamentos nesse processo.
Como disse o marxista italiano Antonio Gramsci: “O velho mundo está morrendo, e o novo mundo luta para nascer: agora é o tempo dos monstros.” Chegar a um porto seguro não é possível sem grandes riscos e, como na história de Ulisses, os proverbialmente monstros de Cila e Caríbdis ainda podem ameaçar a viagem.
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