O que fazer com o militar

Em novo livro, um dos grandes estudiosos brasileiros do tema sustenta: políticos furtam-se a distinguir os assuntos da Defesa Nacional dos interesses corporativos. Cidadania precisa conhecer as Armas que custeia e exigir do Estado uma definição clara de seu papel

Foto: Cb Estevam/CComSEx
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Este texto é um capítulo do livro O que fazer com o militar: Anotações para uma nova defesa nacional, de Manuel Domingos Neto (leia outros textos dele), colaborador de Outras Palavras

Os brasileiros desconhecem as Forças Armadas que lhes custam caro; ignoram para que servem; apreendem mal suas índoles, práticas e vínculos com o estrangeiro poderoso; são ludibriados pelas justificativas de suas intervenções políticas, privilégios corporativos e elevados dispêndios; são iludidos pela propaganda enganosa das corporações que, incapazes de garantir a Defesa, apresentam-se como paradigmas de eficiência e devotamento à sociedade.

Lideranças civis evitam tratar de assuntos de Defesa e os entregam ao militar, que tresanda. Na confrontação mundial anunciada, aprofunda sua dependência a uma potência decadente e se perde em meio a mil tarefas distantes da capacitação para dissuadir estrangeiros pérfidos.

Os políticos, por despreparo ou conivência temerosa, sequer distinguem os assuntos da Defesa Nacional dos interesses corporativos. Alguns falam em “tutela militar” sem explicar precisamente em que consiste e como é exercida.

O mesmo desleixo ocorre com diplomatas, juristas, empresários e cientistas, como se a política externa, a justiça, o desenvolvimento científico e tecnológico e a vida em sociedade fossem desvinculados dos instrumentos de força.

São raros os jornalistas que, tratando da Defesa Nacional e das corporações, percebem os recados embutidos nas declarações oficiais e nas conversas reservadas com ocupantes de postos na hierarquia.

A literatura acadêmica voltada para as Forças Armadas, embora enriquecida recentemente, persiste fragmentada, pouco lida e escorada na forma anglo-saxônica de pensar. Não responde às questões cruciais, em particular as relativas à dependência externa. Explora o protagonismo político do militar e margeia suas implicações para a Defesa. Centra-se nos oficiais e ignora a tropa. As ciências sociais não valorizam o militar como objeto de estudo porque não se livram do binarismo “civilização ou barbárie”, como se uma existisse sem a outra.

Virou moda bater nos “intérpretes do Brasil”, mas os críticos não reparam a derrapada dos autores clássicos que consistiu no “esquecimento” do guardião do sistema colonial-escravista.

O desconhecimento em relação ao militar é um erro. Não há um só aspecto da vida em sociedade que não seja direta ou indiretamente afetado pelos instrumentos de força do Estado. Uma colega me disse que, pensando assim, eu concluiria que até a Capela Sistina seria obra de militares. Lembrei-lhe que a engenharia fora desenvolvida por razões guerreiras e que, na época da construção da capela, o Vaticano não largava a espada. Há sangue impregnando as entranhas da Capela.

O militar sabe disseminar valores; usa símbolos que condicionam a sociedade. O senso comum não percebe as práticas induzidas pelo castro, como as atividades esportivas e criações musicais. Os esportes nasceram do preparo para a guerra, mostra a história da maratona. O esporte mais popular do mundo, o futebol, é uma alegoria da guerra. Guerreiros cantam e dançam antes e depois de abater o semelhante. O aperfeiçoamento de instrumentos de sopro foi impulsionado pela necessidade de comunicação do comandante com a tropa. Ao tempo em que Napoleão expunha a modernidade no campo de batalha, Beethoven o homenageava inaugurando a modernidade musical na combinação de sopros e cordas da “Eroica”.

Alguns perguntam para que servem as Forças Armadas. Ora, no Brasil, o sistema colonial-escravista e a sobrevivência de seu legado seriam impensáveis sem os instrumentos de força do Estado. Não cabe imaginar o país eludindo os detentores da violência estatal. As ciências sociais desvalorizaram as corporações como objeto de estudo ao se aterem às manifestações políticas do militar, ignorando o militar em si.

A sociedade deve observar os homens armados e adestrados para o combate para não ser submetida à sua vontade. Quem comanda os instrumentos estatais de força, controla o Estado e sobrepõe-se à sociedade. A capacidade de intervenção do militar foi turbinada pelo uso combinado de instrumento letais e não letais, na configuração da chamada “guerra híbrida”, da qual a “guerra jurídica” e as “manobras informacionais” são expedientes.

É preciso cobrar do Estado a quebra do monopólio do conhecimento sobre assuntos de Defesa e sobre as corporações, domínios distintos, mas indissociáveis.

Na ribalta política, o castro não perde seus modos. Pazuello falou como soldado quando disse ao ex-presidente da República: “Um manda, outro obedece”. Não atinou que ocupava uma representação política. Ou compreendeu e dissimulou. Militar aprende a dissimular e camuflar: ver sem ser visto, mostrar força quando está fraco, mostrar fraqueza quando está forte, fingir que vai mas não vai. Tudo isso se aprende desde cedo no quartel. Em cargo ministerial, Pazuello foi um pervertido: mostrou insensibilidade com a perda de vidas humanas. Esteve à altura de seu chefe.

Evitando punir Pazuello, seu comandante avivou o ativismo político das fileiras. Pensando com Piero Leirner, o comandante, fazendo cálculos, pode ter deixado correr frouxo examinando diferentes cenários: se Bolsonaro ganhasse as eleições, tudo estaria arrumado; se perdesse, a corporação arguiria que o ex-presidente teria corrompido certos oficiais. A segunda alternativa prevaleceu.

Não há mais generais dirigindo ministérios, mas o titular da Defesa de Lula apresenta-se como representante da vontade castrense. O militar manda, mesmo estando fora da ribalta. O Estado Maior do Exército aponta como condicionante de sua capacidade operacional diversos “fatores críticos”, sendo o primeiro deles assim enunciado:

“A carência de percepção da população brasileira acerca de atores, circunstâncias e cenários que possam se configurar em ameaças ao Estado, após um longo período livre de conflitos externos, é um fator crítico a ser considerado. Essa percepção torna-se ainda mais desvanecida, em função da natureza difusa de tais ameaças potenciais.”

Tendo em vista o desaviso da sociedade e do próprio Estado, a Corporação toma para si a missão de intervir nas mais diversas políticas públicas. No mesmo documento, consta o seguinte:

“A existência de vazios demográficos e a defasagem de atividades econômicas em algumas regiões do país geram desafios à coesão nacional e ao permanente esforço de integrar a nação, com reflexos para a concepção da segurança e defesa nacionais.”

Por “vazios demográficos”, o militar entende, inclusive, as terras indígenas. A extensão dos territórios constitucionalmente garantidos aos povos originários configuraria ameaça à segurança do Brasil. Por “defasagem de atividades econômicas”, o militar entende as áreas mais pobres, imaginando-as desintegradas da economia e da nação. Raciocina como em meados do século passado. Não capta que o desenvolvimento promovido pela Ditadura compreendia o benefício de algumas regiões em detrimento de outras. Não aprendeu que, no capitalismo, a desigualdade é combinada. Considera de sua competência corrigir os rumos do país.

Para aprumar seu passo, a cidadania precisa conhecer o soldado que custeia e exigir do Estado uma definição clara de seu papel.

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