O Kaiowacídio e as trincheiras da resistência indígena

Refugiados em seu próprio território, eles resistem ao Brasil da bala, fome e indiferença. Seu simples ato de existir é acinte ao capitalismo agrário. Mas no ser e permanecer, aliando-se a outros povos ancestrais, está sua estratégia de resistência

Imagem: Foto: Pedro Alves/Solidariedade Guarani Kaiowa
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Título original do artigo: Genocídio Guarani e Kaiowá: Um país cada vez menor

Texto e fotos de Antônio Augusto Rossotto Ioris

Em meio a tanta informação que recebemos diariamente, às vezes não é fácil perceber que um dos fenômenos mais importantes e perturbadores do mundo contemporâneo segue acontecendo em pleno território nacional: o massacre contínuo e sistemático dos povos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Tão séria quando as tragédias do Afeganistão, da Palestina, do México ou do Sudão, a situação dramática dos indígenas nos últimos anos parece demonstrar que este país perdeu todo senso de respeito humano, legalidade e decência. A intolerância do agronegócio e o fracasso do sistema político-judicial fazem com que os Guarani e Kaiowá não sejam apenas considerados cidadãos de segunda classe, mas também indígenas degenerados e de menor valor, desmerecedores de viver na sua própria terra. Apesar de a legislação desde o tempo colonial lhes garantir o direito líquido e certo às áreas ancestrais, confirmado e sublinhado no texto da atual Constituição, mais de 50.000 pessoas vivem uma vida de impostura, racismo e violência. Além de toda a crueldade cometida pelo roubo das suas terras por fazendeiros e pelo Estado nacional, é um genocídio diário, à luz do dia, que deixa este país cada vez menor, mais incompleto e com vergonha de si mesmo.

Como entender a problemática dos povos Guarani e Kaiowá sem perceber que o desenvolvimento brasileiro tem pés de barro e visão de ciclope? Que direito tem o pesquisador estrangeiro de tentar explicar o genocídio silencioso em andamento (discutido no livro Kaiowcide: Living through the Guarani-Kaiowa Genocide, Lexington Books, 2021), enquanto suas vítimas têm a vida permanentemente sob o risco da bala, da fome, da doença e da indiferença? Por que a trajetória socioespacial dos Guarani e Kaiowá é, ao mesmo tempo, específica e localizada, mas também demonstra, de forma incontestável, as fantasias da racionalidade moderna e da globalização elitista? O que faz de tais pequenas geografias uma oportunidade tão valiosa para se repensar a cartografia opressiva do Estado nacional e sua socioeconomia excludente?

Perguntas como essas continuam a me inquietar e desafiar profundamente desde a primeira vez que eu visitei uma reserva indígena no Mato Grosso do Sul, há alguns anos. O contato inicial foi breve, mas logo pude perceber que estava diante de uma das maiores e mais desafiadoras controvérsias da geografia mundial contemporânea. Comecei cada vez mais a admirar os dois povos irmãos, Guarani e Kaiowá, com identidades marcantes e conhecimentos extraordinários sobre si mesmos e sobre o cosmos, uma língua e religiosidade belíssimas, e pessoas ativas, generosas e seguras do seu lugar na história e no espaço. Sua ciência e o conhecimento passam longe da arrogância positivista da academia ocidental, mas baseiam-se em permanente experimentação e contato sensível e criativo com o mundo biofísico. Do pouco que consegui aprender até hoje sobre a incrível existência Guarani e Kaiowá, não me resta dúvida de que o país seria muito maior, e sua sociedade mais esperançosa, se melhor os compreendesse, atendesse as suas demandas e observasse direitos já fartamente assegurados em lei. É uma pequena-grande geografia que tem sido brutalmente desprezada, o que deixa a nação brasileira trôpega e vulnerável a políticos populistas ou explicitamente anti-povo. O país segue hoje sem rumo e com essa terrível dívida socioespacial pendente.

Não é nenhum segredo que os Guarani e Kaiowá têm um passado escrito à base de graves violências e um presente estruturado pela injustiça e pelo racismo. Esse pesadíssimo ônus deveria ser a primeira prioridade a ser resolvida por qualquer governo realmente democrático e de fato comprometido com as pessoas, indígenas e não-indígenas. Por enquanto, o que prevalece no eixo Três Poderes-Faria Lima é a maldição de Erysicthonis (ou Erysichthon), o personagem de Ovídio que, como punição pelo seu malfeito, torna-se cronicamente insaciável, devora todos os animais, vende a filha para poder comer mais, sem nunca deixar de estar faminto, ao ponto de começar a devorar a si mesmo e ficar cada vez menor. A atividade econômica brasileira, calcada no latifúndio, no agronegócio e no rentismo bancário, é a demonstração mais lamentável de que a vida social pode imitar as tragédias da arte clássica. É uma economia amaldiçoada por suor e lágrimas de tantos indígenas, negros, pobres, sem-terra, sem nada. Um país que reverencia seus muitos Erysicthonises não escapa de ser a República de Nonada, palavra com que Guimarães Rosa abriu sua obra mais antológica e reveladora de uma geografia quimérica e diabólica. Como em Grande Sertão: Veredas, tanto movimento, tanta angústia, tanta incompreensão, para quê? Para nunca sair de Nonada. Mais soja, mais cana, mais nada.

Sem quitar seu débito com o passado e resolver sua insensatez para com o futuro, este país tampouco merece um nome pleno. É um meio-país, apequenado e triste, cujo nome precisa ser relativizado para ficar explícita sua incompletude e falência civilizacional. Não é Brasil, mas Brasil*: esse asterisco é, em grande medida, a cicatriz do genocídio Guarani e Kaiowá, vivenciado a cada dia por quem é tratado como refugiado nas próprias terras dos familiares e dos antepassados. Brasil* é a marca de uma economia suicida e de uma sociedade que não cabe em si mesma. O asterisco é o olho furado de uma república ciclópica, monstruosa e cega. Brasil*, imitação farsesca do Reino de Hades, teve sua configuração defendida pelo ex-tenente Bolsonaro durante campanha em Dourados em 8 de fevereiro de 2018: “Nem mais um centímetro [quadrado] para o índio. Na Bolívia temos um índio como presidente, por que aqui eles precisam de terra?”. O mau militar, removido do Exército por incompetência e péssimo comportamento, veio ao chão Guarani e Kaiowá para lhes ameaçar com o exílio e oferecer a lâmina fria do fascismo. Cartografia de Nonada forjada por servos (minions em inglês) de Erysicthonis. Lembra-nos a célebre frase de Joseph Conrad em Heart of Darkness, novela publicada em 1899, sobre a destruição de vidas e lugares na África colonizada: “The horror! The horror!”

O genocídio Guarani e Kaiowá — designado aqui como Kaiowcídio — é, na verdade, apenas a fase mais recente de um longo processo genocida que, desde o século XVII, tentou destruir os povos Guarani e desestabilizar significativamente sua socioespacialidade devido a invasões, escravizações e perseguições. Kaiowcídio é a reencarnação e o renascimento de antigas práticas genocidas, dissimuladas por um Estado de Direito legalista e a pressão do agronegócio. O foco nos últimos anos pode ter mudado de assimilação e confinamento para o abandono e confronto, mas persiste a mesma intenção de enfraquecer e eliminar os habitantes ancestrais da terra por meio da asfixia de sua religião, identidade e, em última instância, geografia. Assim como o lema “mate o índio, salve o homem”, usado para tentar concluir a erradicação de tribos indígenas na América do Norte, em Mato Grosso do Sul a lógica de Kaiowcídio tem sido “abusar, rejeitar e, se necessário, prender ou matar os que se colocam no caminho do desenvolvimento econômico”.

Sustentando o avanço genocida, segue forte a agressão e o roubo do mundo indígena que foi na prática ampliado desde a segunda metade do século passado e resultou em sérias consequências pessoais e comunitárias, incluindo situações de hostilidade, depressão, alcoolismo, violência doméstica e suicídios. Quando ficou evidente aos Guarani e Kaiowá que o governo continuaria a prevaricar e atuar para manter as desigualdades estabelecidas, a decisão coletiva foi iniciar uma reocupação coordenada de suas áreas ancestrais perdidas para o desenvolvimento por meio das retomadas, o que desencadeou uma reação correspondente de fazendeiros e autoridades na forma de Kaiowcídio. Isso significa que, além dos obstáculos enfrentados por qualquer outro grupo subalterno da sociedade brasileira racista e conservadora, os Guarani e Kaiowá também passaram a ter que enfrentar o desafio monumental de recuperar suas terras para reconstruir relações espaciais em meio a um genocídio em curso.

Por causa das múltiplas dificuldades dentro das comunidades e nos pequenos espaços habitados, onde sua etnia e identidade pode ser minimamente respeitada e valorizada, os Guarani e Kaiowá foram implacavelmente impelidos para uma luta diária e antigenocida por sobrevivência social, religiosa e física. Na expressão de Aníbal Quijano, eles são levados constantemente a ser “o que não são”, ou seja, existem grandes barreiras para aceitar suas especificidades étnicas e suas necessidades mais fundamentais como grupo social distinto. Em particular, e muito preocupante, as altas taxas de suicídio permanecem inalteradas e são 18 vezes maiores do que no restante da população brasileira. Mesmo o assassinato regular de Guarani e Kaiowá, tanto durante as retomadas quanto em escaramuças isoladas, tornou-se tão comum que muitos incidentes agora escapam das manchetes mais corriqueiras. Quando outras causas de morte são levadas em consideração, como perda de vidas por fome e desnutrição, insalubridade, falta de água potável, insegurança alimentar, atropelamento, diferentes tipos de drogas e depressão aguda, entre outras, não é difícil perceber a profundidade do sentimento amargo de genocídio entre as famílias e comunidades. Kaiowcídio é social, psicológico, estético, biofísico e existencial.

Isso deixa milhares de pessoas, com todas as idades, encurraladas em uma existência quase-impossível e os obriga a ser cada vez mais indígenas para sobreviver, ainda que a reação hegemônica da sociedade não indígena seja rejeitá-los e tentar convertê-los cada vez mais em sub-humanos, porque menos indígenas. A maioria dos Guarani Kaiowá, mesmo muitos dos que vivem nas reservas oficiais, anseia por retornar à terra de seus pais e avós. Mesmo aqueles que parecem de alguma forma integrados ao mundo não indígena cultivam a memória e a referência da terra perdida para o desenvolvimento dominante e excludente. O sentimento geral é algo como estar no intermezzo de uma provação turbulenta que já dura várias décadas e será talvez resolvida, um dia glorioso, com a chegada de volta à área para onde a família foi expulsa.

Genocídio indígena é, portanto, o nome, o sobrenome e o endereço do capitalismo agrário e do desenvolvimento rural de Mato Grosso do Sul e em boa parte das fronteiras agrícolas brasileiras. As fases genocidas anteriores resultaram na trágica desintegração de espaços vividos com referências étnicas e no confinamento dos Guarani e Kaiowá em locais superlotados, com os piores indicadores sociais do Brasil* e níveis inimagináveis de miséria humana. Mas quando os Guarani e Kaiowá perceberam que seu aniquilamento completo era o plano compartilhado por fazendeiros, empresários e governo, passaram a organizar grandes assembleias, as Aty Guasu, para melhor se conectar com outros povos indígenas, fazer campanha por reconhecimento político, mandar seus jovens para escolas e universidades, e retomar áreas de onde os idosos e os falecidos ancestrais foram expulsos. Como os setores poderosos da sociedade brasileira só se comunicam com os indígenas usando um alfabeto genocida, colocaram em prática o que fazem de melhor: um novo genocídio no formato de Kaiowcídio. Pela perspectiva dos poderosos, ser indígena não pode continuar de forma alguma. Ser indígena é automaticamente pedir e receber genocídio.

Tudo isso demonstra uma agência política duradoura que resulta da própria continuação dos povos indígenas como grupos distintos, tanto quanto sua existência é o resultado de políticas especializadas relacionadas ao espaço que os ajudam a resistir e responder à agressão genocida. A excepcional habilidade e determinação dos Guarani e Kaiowá para lidar com o genocídio em curso parece estar localizada precisamente na implantação de diferenças assumidas e imputadas — compreendendo elementos de conhecimento terrestre, religião, linguagem, cosmologia e etnia — em uma tentativa de manter e expandir o apego a um espaço social que é simultaneamente perdido, sentido e desejado. Em outras palavras, a existência do indígena deriva das ligações racionais, emocionais e simbólicas às referências ontológicas guarani-kaiowá e conexões com as experiências acumuladas ao longo das gerações.

A luta antigenocida dos Guarani e Kaiowá é um esforço coletivo para superar obstáculos socioespaciais terríveis e buscar manter os elementos-chave de seu mundo por meio, principalmente, da recuperação de áreas ancestrais perdidas para o desenvolvimento regional. Genocídio é a experiência mais horrível que qualquer grupo social pode ter que enfrentar, mas pode ser combatido por meio da mobilização de identidades espaciais e étnicas e, mais importante, reforça a vontade de lutar e a importância da ação política coesa. Os Guarani e Kaiowá foram parcial e temporariamente assimilados ao longo da colonização e expansão agrícola, para que pudessem ser contidos e explorados por meio de relações de mercado despersonalizadas. Dessa forma, diferenças socioespaciais foram manipuladas para torná-los invisíveis pela perspectiva do desenvolvimento dominante e para justificar a apropriação de terras indígenas e adoção de outras práticas ilegais e racistas. Ao mesmo tempo, a própria singularização dos Guarani e Kaiowá é sua melhor esperança de resistência e a principal força que lhes permite continuar esperando por uma vida melhor em uma ordem mundial diferente. Este exemplo concreto de mundos indígenas e não indígenas profundamente imbricados é fundamental para demonstrar a necessidade de mobilizar uma geografia indígena crítica como uma ferramenta para questionar os impactos da modernidade ocidental e os conceitos normalmente usados para justificar o avanço do capitalismo agrário. Ser e permanecer Guarani e Kaiowá é conseguir mobilizar o que há de diferente nas suas experiências, práticas e estratégias em relação a imaginários espaciais e a relações sociais concretas.

Um genocídio indígena, como Kaiowcídio, não pode ser julgado em termos de número de pessoas, extensão das reservas, cadeiras no parlamento ou cobertura da mídia, mas antes de tudo pela monstruosidade das relações passadas e presentes, que continuam sendo baseados na violência, no abandono e no racismo. Se a problemática indígena é importante e perturbadora, o mais importante é a perspectiva de que a “política indígena” amplie seu papel na política local e nacional. Ameaça ou esperança, a depender de como se perceba, é como um espectro acima do governo nacional brasileiro e de setores da sociedade civil, porque a pauta indígena de demandas e sua moral superior é evidente, tanto quanto sua capacidade de forjar alianças e subverter tendências político-econômicas perversas. Os Guarani e Kaiowá estão fazendo isso de maneira brilhante, mesmo à custa de sacrifícios exaustivos de muitos por poucas, mas tangíveis, realizações. Sua luta pela terra causou muita angústia e tensões internas, mas também fortaleceu sua capacidade interna de negociar e agir e sobreviver, visando a um dia acabar e superar o Kaiowcídio.

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