O escritor que olhava as crianças

Lembrança de Ghassan Kanafani, autor palestino assassinado em 1972 pelo Mossad. Seus contos mergulham nas razões íntimas e desejos dos jovens palestinos que desafiam a ocupação israelense. E remetem a Ruben Braga, que narrou os feitos dos “scugnizzi” rebeldes de Napoli, contra os nazistas

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Por Vera Aguiar Cotrim

MAIS:
> Este texto é uma síntese de um artigo mais desenvolvido, publicado na Revista Nau Literária, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em dezembro de 2024.
> Título original:
Infância e identidade nacional em “Filhos da Palestina”, de Ghassan Kanafani: um adolescente na luta armada

Este texto aborda a participação de crianças e adolescentes na luta pela emancipação da Palestina em relação à ocupação israelense, em dois contos de Ghassan Kanafani. Ele é motivado pela necessidade premente de se trazer à tona as razões pelas quais as crianças são alvos privilegiados da repressão e dos ataques israelenses nos territórios palestinos. Observamos hoje, após 07 de outubro de 2023, um verdadeiro infanticídio na Faixa de Gaza: no momento em que escrevo, contamos mais de 17 mil crianças assassinadas diretamente,1 um número maior ainda de crianças desaparecidas,2 provavelmente sob escombros, sem mencionar as feridas, as mutiladas, as que morrem por falta de tratamento médico, alimento, água. Por que os ataques israelenses mataram, em quatro meses, mais crianças do que todas as guerras do mundo o fizeram em quatro anos?3

Na linha de raciocínio de estudiosos e políticos que defendem o Estado de Israel, apoiam a limpeza étnica do território e a destituição política da Palestina, dois argumentos chamam a atenção por terem, por assim dizer, um “fundo de verdade”. Um deles defende que a Palestina não é um estado e, por isso, não é sujeito do direito internacional. O outro afirma que todo palestino ou palestina, mesmo dentro do útero de sua mãe, é um terrorista potencial e, por isso nenhum palestino ou palestina é um sujeito dos direitos humanos. Essas afirmações são, como veremos, uma expressão distorcida de um traço verdadeiro do povo palestino: a consciência política e a resistência civil cotidiana.

O primeiro desses argumentos aparece em um artigo de Louis René Beres, professor de Ciência Política e Direito Internacional da Universidade de Purdue, nos EUA, escrito em 1997. Ele defende que o Estado de Israel tem o direito e o dever de não respeitar os Acordos de Oslo, argumentando que a outra parte com quem os acordos foram firmados não constituem um Estado.4 Ele ajunta outros argumentos, também de cunho legal, todos muito bem respondidos por John Quigley (1997), professor de Direito na Universidade de Ohio. Não nos interessa aqui o debate particularmente jurídico entre os autores, mas sim a afirmação de que a Palestina não é um Estado, com a qual Quigley concorda.5 De fato, os acordos de Oslo foram firmados entre o Estado de Israel, na pessoa do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, e a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), na pessoa de Yasser Arafat. Por não ser um Estado, a Palestina não seria um sujeito do direito internacional6.

Não apenas a nação palestina, mas também cada um dos indivíduos palestinos é excluído da condição de sujeito dos direitos humanos. Isso é denunciado pelas especialistas da ONU, Margaret Satterthwaite, relatora especial para a independência de juízes e advogados, e Francesca Albanese, relatora especial para a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967. Elas destacam a completa ausência de julgamento justo para pessoas palestinas acusadas por Israel, na medida em que, “Na Cisjordânia ocupada, as funções de polícia, investigador, promotor e juiz são atribuídas à mesma instituição hierárquica – o exército de Israel”. Elas continuam: “O sistema duplo de tribunais estabelecido na Cisjordânia ocupada, em violação ao direito internacional, promoveu a legitimação da ocupação e dos assentamentos ilegais no território palestino ocupado, por meio de um sistema penal draconiano e militarmente aplicado somente aos palestinos, sem garantias do devido processo legal”. (…) Estamos especialmente preocupados com o fato de as crianças palestinas estarem sujeitas a esse sistema abusivo” (ACNUDH, 2024, tradução nossa)7.

Isso é justificado pelo segundo argumento, que vem sendo utilizado atualmente por diferentes representantes do Estado de Israel para justificar o massacre de civis, particularmente crianças e mulheres grávidas, nos atuais ataques militares a Gaza, bem como na Cisjordânia, que sofre também com violência de colonos armados. Trata-se da ideia de que não há, na Palestina, distinção entre militares e civis, porque todo indivíduo, de qualquer idade ou gênero, é um terrorista em potencial. Por isso, argumentam sobre a justiça de se matar crianças e grávidas indiscriminadamente, cortando o mal pela raiz.

O Ministro da Defesa israelense, da extrema direita religiosa, afirma a supremacia judaica sobre a população árabe. Ele disse em entrevista para um canal de televisão israelense: “Meu direito, o direito de minha esposa e de meus filhos de circular pela Judeia e Samaria é mais importante do que a liberdade de circulação dos árabes”. Judeia e Samaria são nomes bíblicos de regiões da Cisjordânia, utilizados para evitar o nome “Palestina”. Ele acrescenta um irônico pedido de desculpas ao entrevistador árabe: “Desculpe, Mohammed, mas é a realidade”.8 Em seguida, defende o assassinato de crianças: Em suas palavras: “Não podemos permitir mulheres e crianças aproximando-se da fronteira… qualquer um que chegar perto deve levar uma bala”. Isso porque “Eles vão mandar mulheres e crianças como terroristas disfarçados. Se continuarmos assim, teremos outro 07 de outubro”9. Isso significa que a população civil, especialmente as crianças, são o alvo do exército de Israel. Além disso, a partir de uma concepção patriarcal, o Estado de Israel vê mulheres e crianças como extensões do homem, pessoas sem desígnio próprio, manipuladas pelos homens, todos eles terroristas.

Assim, a ação do Estado de Israel é planejada para a destruição da população civil e suas condições de existência. “Não haverá eletricidade nem água (em Gaza), só haverá destruição. Vocês queriam o inferno, terão o inferno”, declarou o major-general Ghassan Alian, que comanda a Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios Palestinos (COGAT) do exército israelense. Ariel Kallner, membro do parlamento de Israel, foi ainda mais incisivo: “Nakba para o inimigo agora! Este dia é o nosso Pearl Harbour. Ainda aprenderemos as lições. Neste momento, um objetivo: Nakba! Uma Nakba que ofuscará a Nakba de 48. Uma Nakba em Gaza e uma Nakba para qualquer um que se atreva a participar!10 Ele utiliza a palavra árabe Nakba seis vezes em uma única e breve manifestação virulenta, mostrando que Israel não nega que o que houve em 1948, com a fundação do Estado de Israel, foi uma catástrofe inaudita para o povo palestino. Ao contrário, afirma que a próxima agressão será ainda mais brutal, e talvez nisso ele também esteja certo.

A despeito de seu caráter desumano, há no fundo de toda essa vociferação violenta uma ideia que não deixa de ser verdadeira: a de que a resistência palestina à ocupação não é levada a cabo por um Estado, um exército, uma organização ou instituição específica, mas pelo povo palestino em sua vida civil, cotidiana.

Quando falo em fundo de verdade, não me refiro aqui, evidentemente, à alcunha de “terrorista” atribuída aos palestinos. Para discutir esse tema, teríamos de lançar mão de toda uma investigação histórica que mostrasse que qualquer organização popular que configure uma ameaça aos interesses dominantes, seja a classe dominante ou os países imperialistas, é acusada de terrorismo11. Por ora, basta destacar que o mesmo Louis René Beres (1997, p. 268) considera a OLP de Arafat, hoje e antes vista por Israel como a parte ponderada e racional, uma organização terrorista12.

Refiro-me ao fato de que a resistência às novas violências e expulsões é quase exclusivamente civil, com ou sem organização. Essa luta civil é cotidiana, ou seja, não se dá na esfera pública, uma vez que não se separa das demais atividades do dia a dia e não conta com apoio governamental. Trata-se da resistência da população autóctone contra um processo colonial que busca a aniquilação desta mesma população, e não de uma guerra em que a vitória é determinada pela supremacia de um exército sobre outro.

O foco deste artigo é a participação das crianças na resistência contra a ocupação e na luta pela autodeterminação do povo palestino, conforme aparece em dois contos do escritor palestino Ghassan Kanafani (1936-1972), reunidos na coletânea Filhos da Palestina. Isso porque a participação de crianças e adolescentes na luta palestina é um signo de seu caráter popular e civil, característica de um povo excluído da esfera do direito.

Antes, contudo, de adentrarmos as representações literárias, vale apresentar alguns dados. As crianças palestinas são presas e sofrem maus-tratos pelo exército de Israel cotidianamente há décadas. Um relatório elaborado pelo UNICEF em 201313 afirma: “Nos últimos 10 anos, cerca de 7.000 crianças foram detidas, interrogadas, processadas e/ou presas no sistema de justiça militar israelense – uma média de duas crianças por dia” (UNICEF, 2013, p. 08). Essas detenções caracterizam-se pela violência sistemática:

Os maus-tratos contra crianças palestinas no sistema de detenção militar israelense parecem ser generalizados, sistemáticos e institucionalizados. Essa conclusão se baseia nas repetidas alegações sobre esse tipo de tratamento nos últimos 10 anos e no volume, consistência e persistência dessas alegações. A análise dos casos documentados por meio do mecanismo de monitoramento e relatório sobre graves violações dos direitos da criança, bem como as entrevistas conduzidas pela UNICEF com advogados israelenses e palestinos e com crianças palestinas, também corroboram essa conclusão. (UNICEF, 2013, p. 13)

E adiante:

O padrão de maus-tratos inclui a prisão de crianças em suas casas, entre meia-noite e 5h da manhã, por soldados fortemente armados; a prática de vendar os olhos das crianças e amarrar suas mãos com laços de plástico; abuso físico e verbal durante a transferência para um local de interrogatório, incluindo o uso de amarras dolorosas; falta de acesso a água, comida, banheiros e cuidados médicos; interrogatório com uso de violência física e ameaças; confissões coagidas; e ausência de acesso a advogados ou familiares durante o interrogatório. (UNICEF, 2013, p. 14)

É evidente que as crianças palestinas são tratadas pela ocupação israelense como terroristas, a quem é negada a condição de sujeito de direitos. O que as crianças de fato fizeram? O mesmo relatório responde a esta questão: “A maioria das crianças processadas nos tribunais militares é acusada de atirar pedras” (UNICEF, 2013, p. 08).

Eis aqui um fato: as crianças palestinas, pobres, pequenas e desarmadas, atiram pedras em tanques e soldados treinados, fortemente armados. A participação das crianças em lutas sociais ou resistências nacionais não é, contudo, exclusividade da Palestina. O escritor brasileiro Rubem Braga, que acompanhou as forças armadas brasileiras em sua campanha na Itália, em 1944-45, no bojo da Segunda Guerra Mundial, como correspondente do Diário Carioca, narra a participação de crianças de Nápoles na resistência contra o fascismo. São majoritariamente meninos pobres, de rua, que resistem à ocupação nazista alemã, apoiada pelos fascistas nacionais, sem estarem submetidos a qualquer exército ou instituição. A crônica “Os moleques de Nápoles” (BRAGA, 1964, p. 39) começa caracterizando os scugnizzi:

Belos moleques esfarrapados que andam por toda parte, são vorazes por cigarro, dormem em algum buraco e comem vagamente o que aparece. Os scugnizzi não são, digamos assim, perfeitos gentlemen e é impossível saber até que ponto sua moral privada é rígida.

Mas os scugnizzi são os donos de Nápoles. E são donos por direito de conquista: foram eles que conquistaram Nápoles. Quando os americanos entraram na cidade não havia mais um só fascista a resistir. Isso é uma bela e grande história e um dia certamente será melhor contada.

Os scugnizzi, apesar de esfarrapados, são belos. Sua conduta moral talvez seja questionável, mas isso não retira deles o título heroico de donos de Nápoles, pois conquistaram a cidade que fora ocupada por nazistas. Nesta ocupação, além dos escassos alimentos e bens serem roubados, pessoas estavam sendo levadas para trabalhar para os nazistas, que não tratavam mais os italianos como aliados, mas como subordinados. O que fizeram essas crianças, como levaram a cabo a conquista de sua própria cidade? Tudo começou quando um alemão matou um italiano. Vale acompanhar a continuação da crônica:

Um scugnizzo andou pelos telhados, espreitou o alemão assassino e o derrubou com um tiro de pistola.

Onde ele arranjou a pistola, ninguém sabe.

Dias antes os alemães tinham recolhido todas as armas de civis e militares italianos.

Muita gente, porém, não entregou as armas, ou não entregou todas as que tinha.

Havia armas em esconderijos e os scugnizzi são técnicos em esconderijos.

Se um alemão tinha sido morto, 20 italianos deviam pagar. 20 homens foram agarrados nas vizinhanças para serem fuzilados no mesmo local em que tombara o alemão. Era o terror nazista, capaz de assustar os mais bravos. Mas à tarde, à hora do fuzilamento, havia no lugar, além dos alemães e dos 20 prisioneiros, uma chusma dos piores e mais esfarrapados scugnizzi de Nápoles. E essa molecada começou a gritar, e a protestar e a interferir. Um deles lançou contra os nazistas alguma coisa, que poderia ser uma pedra, mas era exatamente uma granada de mão. (BRAGA, 1964, pp. 39-40)

Os scugnizzi são uma “chusma”, isto é, uma pequena multidão de meninos da mais baixa camada social. Dentre eles, os mais bravos, capazes de enfrentar os nazistas, são “os piores e mais esfarrapados”. Dominam a cidade e seus esconderijos como se fossem sua própria casa, porque, como meninos de rua ou que ganham a vida nas ruas, Nápoles é sua casa. Assassinar um nazista com uma pistola, roubada ou emprestada, ou explodir alguns deles com uma granada de mão afanada no meio da guerra é muito justo, porque se trata de autodefesa contra um exército que opera para um projeto expansionista e supremacista, que não hesita em destruir e expropriar os demais povos, agindo como senhor até mesmo de seus próprios aliados fascistas. Mas atacar os nazistas com pedras demonstra uma coragem rara, particularmente, a coragem de quem não tem mais nada a perder.

E, de fato, o que os scugnizzi têm a perder é apenas sua miserável liberdade:

Ratos e pardais humanos, os scugnizzi se postaram em cada canto da cidade em que podia passar um alemão. Atacados, fugiam pelos becos, metiam-se pelos buracos, sumiam pelos telhados e apareciam em alguma outra parte para matar outro alemão e despojar imediatamente o cadáver de suas armas. A reação alemã foi terrível, e a noite inteira as metralhadoras cacarejaram na escuridão. Os fascistas ficaram ao lado dos nazistas, mas a revolta no seio do povo se propagou. (BRAGA, 1964, p. 40)

Os fascistas e os nazistas em especial produziram o terror nos habitantes de Nápoles. Mas “O heroísmo dos scugnizzi arrebatou homens e mulheres” e, a partir daí, a revolta popular se expandiu e ampliou a resistência contra a ocupação: “Por toda parte se ergueram barricadas, todas as armas foram desenterradas e na cidade que os americanos bombardeavam o povo lutava contra seus dominadores” (BRAGA, 1964, pp. 40-41). Não apenas faziam parte da luta, mas essas crianças que mais se pareciam com animais miúdos e sujos vivendo em buracos mobilizaram a resistência dos adultos contra a ocupação, de modo que, só depois de darem o exemplo, é que os oficiais do exército italiano “que odiavam o fascismo” passaram a elaborar planos de ação e organizar operários, crianças e o povo em revolta:

No dia 30 de setembro os últimos alemães e fascistas sumiram pelas estradas acossados pelos scugnizzi que os perseguiam ou se postavam em tocaias. Muitos nazistas esbarraram com barricadas que não puderam transpor: e quando as arremetiam o fogo vinha não só da frente mas de trás e dos lados, de todas as portas e janelas. (BRAGA, 1964, p. 41)

O fogo só podia vir de todas as portas e janelas porque os adultos de Nápoles haviam criado a unidade popular para autodefesa contra o nazismo: “os scugnizzi com a sua audácia defenderam o patrimônio comum”, escreve Rubem Braga. Isso foi admitido pelo povo de Nápoles. A crônica termina com esse importante (e emocionante) reconhecimento: “Os italianos sabem que devem sua libertação às armas aliadas. Mas perguntem a qualquer homem do povo, em Nápoles, quem expulsou os nazistas da cidade, e ele, apontando para alguns moleques, e sorrindo, dirá com verdadeiro orgulho: – Gli scugnizzi!” (BRAGA, 1964, p. 41).

Pobres, esfarrapados, de moral duvidosa, “os piores” na massa do povo, comparáveis a um bando de ratos e pardais, esses meninos de rua são, no entanto, belos, bravos, audaciosos, heroicos, o orgulho de Nápoles. E não à toa: protegeram a cidade armando ciladas, assassinando, roubando as armas e expulsando os nazistas, sem qualquer comando público ou institucionalidade. Eles defendem a cidade que tomam por sua, ainda que a sociedade napolitana não os trate bem. Os oficiais antifascistas agiram após os scugnizzi e motivados pelo sucesso dos ataques dessas crianças ávidas por cigarros e que mal comiam. Apesar de moralmente questionáveis, os moleques não são apenas corajosos, mas lúcidos: compreendem perfeitamente a situação da ocupação nazista, reconhecem o inimigo, estudam-no com observações empíricas, medem suas forças e tomam a decisão mais acertada: resistir à ocupação atacando os invasores, com uso privilegiado das emboscadas. Os piores foram os que melhor agiram.

Crianças que participam da resistência às sucessivas ocupações da Palestina aparecem nos contos de Ghassan Kanafani. Diferentemente da breve crônica de Rubem Braga, os contos de Kanafani mergulham nas íntimas razões e desejos dos personagens que cria. Entre eles, há meninos que tomam parte na resistência, e para quem não há outra existência possível. Aqui, visitaremos a história do personagem Mansur, um menino de 17 anos, da aldeia Madj al-Kurum, na área rural da atual Cisjordânia. Ele e sua família são objeto de um conjunto de contos de Kanafani. É comum em sua obra que os personagens criados apareçam em mais de um conto, em situações diversas, construindo um desenvolvimento maior das relações, modos de vida e resistência do povo à ocupação.

Kanafani gostava de crianças. Tendo sido ele mesmo expulso de sua casa em Acre, aos 12 anos, pela Nakba de 1948, aos 16, logo que terminou o ensino médio, tornou-se professor em uma escola gerida pela UNRWA em um campo de refugiados em Damasco, para contribuir financeiramente com sua família. O professor Kanafani refletiu então sobre a condição das crianças refugiadas, em um exílio que duraria por toda a vida delas, e sobre o sentido da educação. O caráter infantil, para ele, longe de ser algo pejorativo ou caracterizado por limitações, isto é, por uma condição negativa daqueles que ainda não são completos, ainda não são adultos, ainda não desenvolveram todo seu potencial, é algo positivo e especial, e se refere a capacidades que podem até ser perdidas na vida adulta: criatividade, sensibilidade, questionamento, lucidez. Assim, ele irá mostrar que as crianças que aderem à resistência armada não o fazem por obediência aos pais ou outras autoridades, mas por suas próprias razões. Isso aparece na história de Mansur que, tendo 17 anos, não se considera criança, mas, por ser o caçula, é assim chamado por todos os membros de sua família.

O personagem Mansur e sua família aparecem em quatro contos reunidos em Filhos da Palestina, uma coletânea organizada em torno do tema das crianças palestinas. Alguns títulos de Kanafani trazem a principal ação da narrativa. É o caso dos contos sobre Mansur: “A criança toma emprestada a arma de seu tio e vai para o leste até Safad”; “Doutor Qassin fala com Eva sobre Mansur, que chegou em Safad”; “Abu al-Hassan embosca um carro inglês” e “A criança, seu pai e a arma vão para a cidadela em Jaddin”. As histórias foram escritas em 1965, mas se passam durante o processo de ocupação da Palestina, na guerra que se estendeu de 1947-1949. Nesse processo, que acarreta a fundação do Estado de Israel, mais de 750 mil pessoas foram expulsas, mais de dez mil assassinadas, e ao menos quatro centenas de aldeias rurais foram destruídas14. As milícias judaicas (Haganá, Lehi Stern e Irgun) eram apoiadas pelo exército britânico, que havia colonizado a região no contexto da Primeira Guerra Mundial, estabelecendo o Mandato Britânico na Palestina (região a Oeste do Rio Jordão) a partir de 1922. Este Mandato termina em 1948, justamente com a fundação do Estado sionista, que ocupa mais da metade da Palestina, e a destinação do governo político das demais regiões à Jordânia e ao Egito. Cabe mencionar que esse resultado teve como pressuposto a partição da Palestina pela Organização da Nações Unidas, com o apoio político e militar das potências europeias, e significou para o povo palestino a sua Nakba, que se estende até os dias atuais.

Neste texto, abordaremos apenas os dois primeiros contos, “A criança toma emprestada a arma de seu tio e vai para o leste até Safad” e “Doutor Qassin fala com Eva sobre Mansur, que chegou em Safad”. Em ambos, Kanafani destaca o contraste entre os irmãos Mansur, a criança, e Qassim, o doutor. Mansur vem de uma família de agricultores e mora na vila de Majd al-Kurum, onde seus pais têm uma propriedade de terra que produz, principalmente, olivas e azeite. Seu irmão mais velho, Qassin, acabou de se formar em medicina na cidade de Haifa, e leva uma vida tipicamente urbana. Nesses contos, tomamos contato também com os pais, Abu e Umm Qassin (não chegamos a saber seus nomes, mas apenas a alcunha árabe comum que nomeia os pais a partir do nome do filho mais velho), e seus tios Abu e Umm al-Hassan15. O primeiro conto apresenta Mansur, já com o fuzil emprestado de seu tio a caminho de Safad, outra vila onde, ele ouvira falar, havia uma cidadela israelense que a resistência palestina pretendia atacar. O conto recupera os passos de Mansur e nos apresenta seu irmão Qassin, focando na diferença entre seus projetos de vida e posições sobre a conjuntura social que ambos enfrentam.

Numa manhã, sem falar nada aos pais, Mansur toma um ônibus até Nahaf, vila onde seu tio morava, para pedir emprestado seu velho fuzil, visando ir à Safad:

“Os homens em Safad estão cercando a cidadela e eu vim pedir emprestada a sua arma para poder ir até lá. Você me daria ela?”

“E onde é que vai buscar os cartuchos?”

“Eu comprei.”

“Quantos comprou?”

“Cerca de vinte.”

“E assim, com vinte cartuchos, vai invadir a cidadela em Safad?”

“Vai me dar a arma? Trago-a de volta em dois dias.”

“E se te matarem?”

O seu tio estava sorrindo quando disse isto, como se não acreditasse na história de todo modo. O seu sobrinho, no entanto, não sorriu de volta, nem hesitou em responder a todas essas perguntas: “Se eu morrer, Hisam irá devolvê-la. Eu sei que ele está lá e vou dizer a ele para fazer isso”. (KANAFANI, 2022, pp. 67-68)

O tio hesita e questiona, mas, no fundo, compreende a motivação e parece até se orgulhar desta tomada de decisão: “O caminho para Safad é tão rochoso que até as cabras têm dificuldades. Uma criança como você vai morrer nos espinhos antes de chegar à metade do caminho” (KANAFANI, 2022, p. 65).

Mansur não podia ir pela estrada, porque se cruzasse com algum soldado do exército britânico, ele certamente tomaria sua arma. Mansur repetiu várias vezes que não era criança, e refletia sobre esse tio curioso, que troca os nomes das coisas, chamando-o de criança e a seu fuzil de “canhão”. A posse de uma arma é extremamente valorizada e, nos contos, ela vai paulatinamente aparecendo quase como um personagem. O tio tem e não tem razão ao chamá-lo de criança. Ele é adolescente quando começa sua jornada rumo à resistência contra a ocupação, mas, ao final do último conto e após poucos dias, quando segura seu pai sangrando à beira da estrada e da morte, ele já é um homem. Seu tio, que é experiente na luta contra o mandato britânico e as milícias sionistas, busca dissipar as ilusões do sobrinho:

“Você tem dezessete anos de idade e a arma que carrega pesa mais da metade do que você pesa. E o caminho é longo e feroz.”

O medo apoderou-se dele por apenas um momento, mas ele segurou a arma ainda mais apertada contra o peito e, ao virar-se, ficou cara a cara com o seu tio novamente: “Se está preocupado com a sua arma, porque não diz logo?”

“É contigo que estou preocupado. Apesar de ser uma criança maluca, não quero desencorajá-lo.” (KANAFANI, 2022, pp. 65-66)

Mansur sofre durante o percurso. Ele não sabia que um trajeto assim tão escarpado, pedregoso, e ainda escorregadio devido às chuvas da noite, sequer existisse. Durante o caminho, ele deseja ter uma arma só sua, mais nova, que não tivesse já um quarto de século e tantas emendas e consertos feitos caprichosamente pelo tio, da mesma forma “como tratava as árvores de seu pequeno campo” (KANAFANI, 2022, p. 71). Ele também pensa nos pais, e imagina sua mãe se preocupando, seu pai o chamando de “criança encrenqueira”. Mas o que não abandona seu pensamento é a possibilidade da vitória contra o colonialismo:

“Então você, com vinte cartuchos, vai atacar a cidadela em Safad?”

Ele repetiu a frase zombeteira do seu tio, que lhe vinha sempre à mente. Ele empurrou para trás um monte de espinhos com a sua mão e começou a subir sobre uma pilha de pedras que estava bloqueando o caminho. Durante todo o tempo estava pensando: “Se cada homem na Galileia levasse vinte cartuchos e fosse para a cidadela em Safad, nós a esmagaríamos num minuto.” (KANAFANI, 2022, p. 72)

Este é um ponto muito importante e característico da resistência palestina: a decisão de aderir à luta pela recuperação do território e pela autonomia política é dispersa, não há uma instituição que arregimente seus combatentes. As organizações políticas e armadas, historicamente posteriores, como a Fatah, Movimento de Libertação Nacional da Palestina (1959), a Organização pela Libertação da Palestina (1964), e a Frente Popular pela Libertação da Palestina (1967), da qual Kanafani foi porta-voz oficial, emergiram a partir da resistência espontânea figurada na história de Mansur.16 Nosso adolescente soube, de algum modo não explicitado no conto, que havia uma resistência tentando recuperar Safad da ocupação judaica e decidiu ir sozinho até lá para compor a luta. No conto seguinte, “Doutor Qassim fala com Eva…”, quando Mansur chega a Safad, verá que não era bem isso o que estava acontecendo. Percebemos que as informações são passadas por boca a boca, nem sempre são precisas, e não há um centro a qual todas as ações de resistência se reportem, ou seja, não há liderança. Mansur reflete sobre este tema:

“É preciso muito esforço. E liderança. Tal como o el-Haje disse.” Durante alguns momentos, tentou imaginar o que esta palavra significava. Liderança. Mas ele não chegou a lugar nenhum. Primeiro de tudo, ele imaginava que a importância do líder deveria ser a de ir a todos os combatentes um por um e guiá-los naquilo que tinham de fazer. Mas ele se livrou dessa imagem: “Tudo isso é apenas conversa fiada. Não é simples.” (KANAFANI, 2022, p. 73)

Assim, movido pelo seu desejo de se juntar à resistência, sem liderança ou organização, conseguindo uma arma emprestada da família, tirando dinheiro de seu próprio bolso para comprar os cartuchos, e caminhando sozinho rumo a uma ação que ele ouvira falar que estava acontecendo, deixamos Mansur em seu difícil percurso e o conto se volta a seu irmão, que está prestes a visitar a família na aldeia natal, em uma data anterior à aventura de Mansur. Ele trabalhava em Haifa, “em um magnífico apartamento no segundo andar, e vivia sozinho nas duas salas interiores”. Sua vida se passava em “um outro mundo”, mais cosmopolita e moderno.

Só para que um dia as pessoas o chamassem “Doutor”, o seu pai tinha vendido um lote de oliveiras, e todos os anos reservava um determinado número de recipientes de azeite que eram depois vendidos para cobrir os custos de livros e microscópios para o Doutor Qassim. (KANAFANI, 2022, p. 74)

A relação do pai com os dois filhos tem algo de agressiva, mas isso não exclui o orgulho que ele sente daquele que conseguiu se tornar médico. O pai vai buscá-lo em Acre, com um Ford antigo que havia comprado nesta mesma manhã, “só para transportar as duas malas, as malas e os livros para Madj al-Kurum, onde Umm Qassin tinha recheado três galinhas” (KANAFANI, 2022, p. 74). No entanto, a felicidade do pai se mistura com um “nó de medo que sentia na garganta”, porque o filho pretendia abrir um consultório em Haifa, enquanto o pai desejava que ele atuasse como médico ali mesmo em Madj al-Kurum, na aldeia junto à família: “Em Majd al-Kurum? Pensa que eu sou o tipo de médico que trata os seus pacientes com sanguessugas? Ninguém em Majd al-Kurum pagará mais do que um centavo. Você quer que eu morra de fome?” (KANAFANI, 2022, p. 75).

A conversa continua sem que esse nó seja desatado, ele apenas se aperta mais e mais:

Mas o carro tinha parado. Nesse preciso momento Abu Qassim viu, com uma clareza que ele nunca esqueceria, o olhar de desprezo que brilhou nos olhos do seu filho. Não durou mais do que uma pequena fração de um segundo, mas ele o viu e o sentiu, como montanhas desmoronando, caindo sobre o seu peito. (KANAFANI, 2022, p. 76)

Esse desprezo do filho mais velho pela aldeia e por sua origem, pelo modo de vida rural de sua família, leva o pai a compará-lo com o filho mais novo. Ainda no carro, Qassim pergunta sobre seu irmão, e vai se explicitando uma disputa de ambos em relação ao futuro de Mansur.

“Como está a mãe?”

“Bem”

“E o menino?”

“Ele está na escola. O pequeno ama os campos.” O seu peito relaxou à medida em que a felicidade lhe voltava subitamente. Os campos de oliveiras surgiram diante dele banhados em uma luz sagrada: “A criança ama os campos. Logo que volta da escola para casa, ele mergulha diretamente no canal até os joelhos. Ele tem as verdadeiras mãos de um agricultor… Ele está sempre esgueirando-se para fora de casa à noite para sair e dormir debaixo das oliveiras…” (KANAFANI, 2022, pp. 75-76)

Quando lembra do filho mais novo, que não faz menção de trocar a vida na aldeia pela vida na cidade, a felicidade, que se esvaíra pelo olhar de desprezo do filho mais velho, volta ao peito de Abu Qassin. Mas o doutor é incisivo: “A voz de Qassin interrompeu-o novamente: ‘Você está matando esse garoto… Está acabando com ele, por amor de Deus! Amanhã vou levá-lo comigo para Haifa. Ele vai aprender a construir o tipo de futuro que ele quer’” (KANAFANI, 2022, p. 76). Esse discurso em nada altera o sentimento do pai que, ao final do conto, se consola com este pensamento: “Ainda tem a criança” (KANAFANI, 2022, p. 77).

Abu Qassin preocupa-se com a manutenção da tradição familiar, no sentido dos valores morais que exaltam o trabalho na terra, a dedicação à pequena propriedade familiar, as relações comunitárias, que envolvem trocas mercantis, mas também favores solidários. Ele gostaria que seu filho mais velho, embora médico, construísse sua vida na aldeia e tivesse nela uma alta posição. Mas os estudos em Haifa ampliam o mundo de Qassin, que passa a ver na vila apenas a limitação das tradições. O pai tem então em Mansur uma esperança de continuidade de seu próprio modo de vida. Mas o que Mansur quer será decidido por ele mesmo.

Como já sabemos, Mansur também irá desobedecer a seu pai e confrontar sua autoridade. Mas de um modo muito diferente. Tanto seu tio como seu pai já haviam participado da revolta contra o Mandato Britânico na Palestina17, de modo que não condenam moralmente a luta política, ao contrário. O tio, por exemplo, tem uma arma que empresta ao sobrinho, sem querer desencorajá-lo para a luta. Além disso, Mansur compartilha da moralidade tradicional no que diz respeito à vida privada e ao casamento, o que não se dá com o doutor Qassin. No conto “Doutor Qassin fala com Eva sobre Mansur, que chegou em Safad”, acompanhamos o dilema do jovem médico que vive como um homem cosmopolita, uma vida ocidentalizada, tendo inclusive uma namorada judia, Eva. O dilema não chega a explicitar-se, mas um sentimento incômodo de medo e perigo não permite que ele escape à sua condição de palestino em uma terra ocupada.

Qassin está sentado em uma cadeira de balanço na casa da família de Eva, e no telhado há uma arma montada, apontando para o campo pedregoso que se estende até o porto de Haifa. Embora seu desejo seja apenas uma vida privada e pessoal bem-sucedida e não queira se envolver no problema mais amplo, a ocupação e a resistência não se deixam abstrair. Em sua cadeira, Qassim “Não se lembrava bem dos detalhes da história que tinha lido naquela manhã sobre dois árabes que tinham sido mortos por uma bala perdida, se o incidente tinha acontecido perto desta mesma região” (KANAFANI, 2022, p. 79). O fato de a notícia trazer a ideia de que duas pessoas foram mortas por uma bala perdida já mostra que ele está lendo fontes oficiais de informação, sejam britânicas ou judaicas, afinal, a probabilidade de uma bala perdida acertar e matar duas pessoas ao mesmo tempo é bastante baixa. Os árabes devem ter sido assassinados. Vale transcrever o modo como ele sente a indesejada situação, que gostaria que não dissesse respeito a ele:

Bebeu o seu chá calmamente, tentando não falar demais só para fazer passar o tempo, de modo que a conversa não se aproximasse de limites que eram incertos demais para ele. Ele não olhou diretamente para os olhos de Eva, nem para o olho da arma que o mirava de cima. Começou a untar com manteiga um pedaço de pão frito, cobrindo-o com uma grande colherada de compota, que depois cobriu com outro pedaço de pão. A coisa toda aconteceu bem quando ele estava prestes a dar a primeira mordida. Quando ele levantou a cabeça, algo apareceu à sua frente. Através da névoa azul-pálida estavam as cúpulas e os telhados de Acre. Ao mesmo tempo, ele lembrou de Majd al-Kurum. Parecia-lhe distante, uma distância ambígua, não muito diferente do esquecimento. Ele não precisava aprofundar o assunto em todos os seus detalhes, sabendo que era impossível para ele fugir das memórias que estavam começando a ecoar dentro do seu cérebro. Ele sentiu como se houvesse algum perigo terrível que o rodeasse, em Haifa, em Acre, em Majd al-Kurum. O seu pai, a sua mãe, o seu irmão mais novo. Como se pudesse sentir o perigo zumbir, ele levantou-se impaciente. Ele sabia muito bem que não havia forma de evitar submeter-se ao algo desconhecido que o havia subjugado subitamente. Ele colocou a fatia de pão de volta na tigela e recostou na cadeira, olhando sempre em frente, sem olhar para nada em particular. (KANAFANI, 2022, pp. 79-80)

Qassim evita conversar com Eva sobre o assunto, mas ela propõe que deveriam algum dia falar francamente sobre a questão em que ele está pensando, e aponta na direção dos telhados de Acre. Ele busca fugir do assunto, e passa a falar sobre seu irmão Mansur: “Ele sempre pensou que colocar geleia por cima da manteiga era uma espécie de falta de gosto. Ou se come manteiga ou se come geleia, mas não se pode comer os dois juntos. Se o fizer, então é uma expressão de desdém ou pela honra da manteiga ou pela honra da geleia” (KANAFANI, 2022, p. 81). Qassim mostrava aqui admiração pela forma como seu irmão se expressou, havia respeito pelas coisas, uma postura contida, responsável, uma dignidade. Eva fica indignada porque Qassim nunca havia dito que tinha um irmão mais novo. E, de fato, o doutor mantinha separados seus dois mundos: “Há muitas que não lhe contei, e muitas que você não me diz. Nós diminuímos nosso mundo com as nossas mãos, para forçar para fora dos seus limites tudo o que não tem nada a ver conosco. Fazemos com que seja menor para poder preenchê-lo com felicidade” (KANAFANI, 2022, pp. 81-82). Ela pergunta o que o menino está fazendo na aldeia, por que Qassim não o trouxera para a cidade, ao que ele repete as palavras do pai: “Ele é um rapaz que ama os campos. Isso é o que o pai sempre diz. Ele é como um cavalo de raça pura que só pode viver nos campos” (KANAFANI, 2022, p. 82).

Enquanto Qassim come sem vontade seu pão com manteiga e geleia para evitar a conversa com Eva, a “criança”, o “cavalo de raça”, “estava em algum lugar no terreno rochoso no entorno de Safad espalhando punhados de tomilho selvagem [za’atar] podre sobre um pedaço de meio pão marrom escuro com grãos” (KANAFANI, 2022, p. 82). Após horas no percurso hostil, com o ombro machucado pela tira de fibra que substituía a faixa de couro com que se pendurava a pesada arma, que além de tudo viera batendo contra sua coxa por todo o caminho, Mansur enfim vê a estrada de Safad, onde havia estado apenas duas ou três vezes, e alcança o mercado da cidade, observando tudo com a maior atenção possível. “Pessoas se moviam sem prestar muita atenção ao som de balas, o que dava à atmosfera uma sensação de tensão intolerável. Acelerando o ritmo, disse a si próprio: ‘São estranhas essas pessoas das cidades, é como se a questão nem sequer lhes dissesse respeito” (KANAFANI, 2022, p. 83). A reflexão se aplica diretamente a seu irmão Qassim. Já Mansur está prestes a viver a primeira experiência rumo ao amadurecimento político.

No mercado, um carro, cujo capô havia sido tirado e com o banco de trás invertido para dar as costas ao banco da frente, passou por ele com três homens armados e caixas de tomates, pães e jarras de água. Eles reparam em Mansur com seu fuzil antigo e dois deles passam a zombar do menino e de seu “graveto”. Mansur, sério, o chama para a briga, correndo atrás do carro. Mas o terceiro homem acaba com as manifestações agressivas:

“Que vergonha… que vergonha…”

Voltou-se para Mansur, que ainda corria atrás do carro: “De onde você é, irmão?”

“Majd al-Kurum.”

“O que está fazendo em Safad com essa arma?”

“Ouvi dizer que vocês estão cercando essa cidadela e eu vim para me juntar a vocês.”

“Você vai cercar a cidadela?”

Ele olhou para os outros dois homens que tinham começado a abanar a cabeça em gargalhadas, depois inclinou-se e levantou uma das caixas para dar mais espaço.

“Venha conosco. Seria uma grande maldade deixarmos você correndo atrás do carro para sempre.” (KANAFANI, 2022, p. 85)

Mansur sobe no carro, mas a “história da cidadela estava corroendo sua mente”:

“Não estão cercando a cidadela?”

“A cidadela está abandonada desde que Adão era uma criança.”

“O que estão fazendo então?”

“Estivemos lutando num bairro judeu.”

“E a cidadela?”

“Os ingleses disparariam se até um rato se movesse nela, mas estamos no controle da situação.”

Ele ficou chocado, se sentiu tão inútil. Ele não sabia de nada e toda esta loucura tinha sido uma ideia imprudente sem nenhuma base. (KANAFANI, 2022, p. 85)

No carro, Mansur descobre que eles estão levando água e comida para os combatentes, mas o homem com um revólver continua a debochar dele. Ele então decide que este é um homem mau, e com muita seriedade pergunta se ele, sendo palestino, o enfrentaria. O homem examina Mansur cuidadosamente e, aqui, temos a primeira descrição de nosso personagem:

Debaixo da sua camisa, os seus ombros pareciam redondos e rígidos, e os seus largos antebraços eram como se fossem blocos de madeira. As suas mãos eram como se fossem feitas de aço marrom. (…) Ele era jovem, com olhos negros ligeiramente afundados sob as sobrancelhas grossas e cintilantes, como os olhos de uma hiena. Uma determinação poderosa irradiava a partir deles. (KANAFANI, 2022, p. 86)

Assim, acaba a zombaria contra esse camponês adolescente que não sabia exatamente o que estava acontecendo. Entregar os víveres para os combatentes não seria fácil, era necessário transpor uma área atravessada por balas de armas invisíveis. Onde a estrada terminava, era preciso pegar as caixas e jarras, galgar um morro e atravessar um pátio visado pelas armas dos judeus ocultos. Mansur conversa com Ustaz Ma’aruf, um dos homens do carro que o acolhe:

“Onde estão eles?”

“Quem?”

“Os judeus.”

“Nos telhados, atrás das janelas de ferro, onde só balas divinas podem penetrar.”

“Onde nós estamos?”

“Verá agora… atrás dos becos, em frente a cada buraco suficientemente grande para uma mosca.”

(…) Ustaz Ma’aruf falou: “Eles estão à espera de uma oportunidade. Estão vendo aquele pequeno pátio? Bem, há um maldito fuzil que o domina a partir do telhado da casa mais alta do quarteirão judeu. Quarteirão judeu. Ontem mataram um homem. Hoje eles quase mataram uma criança… Esta manhã, de manhã cedo, atingiram três gatos.”

“Gatos?”

“Isso mesmo. O homem com o fuzil parecia querer nos fazer compreender que ninguém estava seguro e que a sua mira era suficientemente boa para disparar em algo mesmo a meio quilômetro ou ainda mais longe. Gatos… Provavelmente ele pôs um telescópio na sua arma.” (KANAFANI, 2022, pp. 88-89)

Os árabes estavam em franca desvantagem. As armas dos judeus eram muito mais modernas e eficientes e, ademais, eles tinham apoio dos britânicos, que comandavam a força repressiva oficial, a polícia. Não eram, contudo, quaisquer judeus:

Em Safad, ainda que houvesse quatro mil judeus que nunca tivessem sido, por um dia sequer, agricultores, ninguém se importava. Eles haviam vivido durante muito tempo nas suas pequenas lojas, vendendo os seus produtos para o povo, trocando com eles saudações e longas conversas. Eles eram convidados para almoçar e jantar. Porque eles já estavam lá há muito tempo, eles sabiam falar árabe. Eram chamados por nomes árabes e liam livros e jornais em árabe. Parecia lógico para os habitantes de Safad chamá-los de judeus árabes. (KANAFANI, 2022, p. 90)

Trata-se apenas dos asquenazes, judeus europeus imigrantes que, apoiados pelo colonialismo britânico, começam a estabelecer um novo colonialismo judaico sustentado, especificamente, pelo capital ocidental, europeu. Durante os anos que se seguiram à revolução palestina de 1936-39, as vilas palestinas foram invadidas por grandes capitais comerciais que levaram, inclusive, as pequenas lojas judaicas à falência. O narrador do conto cita as lojas de Iskandar, do ramo de utensílios domésticos, a Roshar Braunfeld, de artigos de alimentação, a Yousuf Banderley, especialista em laticínios, a farmácia do estrangeiro sr. Bar, Edel Mayberg, que ninguém conhece pessoalmente, mas todos sabem que é proprietário do Hotel Central e outros hotéis e restaurantes. Esses grandes capitalistas comerciais são também ligados às finanças e, além disso, ao colonialismo israelense que vem a substituir o britânico:

Edel Mayberg, Edel… Edel… Quem suspeita que ele é um membro do Hagana? E que os seus hotéis e restaurantes e casas estão cheios de armas? Ou o estrangeiro sr. Bar, aquele que encara as pessoas por detrás do balcão de vidro e cuja cara parece a cara de uma galinha, quem apostaria que ele é um comandante militar que adquire armas e prepara planos? Banderley… Braunfeld… eles despacham especialmente para o futuro. Tudo é perfeitamente inventariado. Provavelmente, foi uma surpresa não só para os árabes de Safad, mas para os antigos judeus. Disseram-no e disseram-no e disseram-no, depois ficaram calados. (KANAFANI, 2022, p. 91)

Os palestinos lutam contra os judeus asquenazes, não por serem judeus, mas por serem colonialistas. Apoiados pelo grande capital e armas pesadas, e também pelos britânicos, que estão passando o bastão colonial para a entidade sionista que se forma: “Como é que os ingleses encontravam cartuchos de caça conosco, e não encontravam todas essas armas com eles?” (KANAFANI, 2022, p. 92) Como os scugnizzi, no entanto, os adolescentes palestinos têm uma “determinação poderosa” e se enfiam “atrás dos becos, em frente a cada buraco suficientemente grande para uma mosca”. Por que eles lutam? É a pergunta que Ustaz Ma’aruf faz a Mansur: “(…) O que o trouxe aqui de Madj al-Kurum, afinal? Há tão poucos homens em Safad?” Mas nossa criança “decidiu novamente que uma pergunta desse tipo não exigia uma resposta. Afinal de contas, dificilmente se pode perguntar a um lutador por que é que ele está lutando, não é verdade? Seria como perguntar a um homem por que é que ele é um homem” (KANAFANI, 2022, pp. 93-94). De fato, não ouvimos essa pergunta feita aos moleques de Nápoles: todos sabem a razão de lutar contra a ocupação nazista.

O pátio por onde eles precisavam passar estava silencioso e aparentava estar vazio. Ustaz Ma’aruf foi na frente. Ele correu pelo canto de uma das paredes do pátio e, “No instante seguinte, houve uma enxurrada de balas”. O coração de Mansur “começou a bater de forma selvagem. Os trinados da morte começaram a ressoar na sua cabeça enquanto Ustaz Ma’aruf corria, saltando para a esquerda e para a direita numa linha loucamente tortuosa” (KANAFANI, 2022, p. 95). No meio do pátio, havia um barril cheio de água, que foi furado de balas. O companheiro de Mansur protegia-se com sua caixa de legumes atrás do barril, e Mansur entendera a situação: Ustaz Ma’aruf seria rasgado por balas se corresse ou, se ficasse parado, o mesmo ocorreria quando a água toda escorresse. Mansur olhou para o local de onde vinham as balas e, no alto do prédio, viu que havia um pequeno vão entre os sacos de areia que foram postos ali para funcionarem como uma barricada. Ele achou inclusive que tinha visto o brilho metálico de uma arma naquele espaço. É aí que a criança se tornará um combatente pela emancipação da Palestina:

Ele certificou-se da bala na câmara de tiro, depois levantou lenta e cautelosamente a boca da arma para o canto do muro, mirando cuidadosamente. O seu tio tinha-lhe dito: “Não se preocupe com a mira das armas, apenas se preocupe com os seus próprios nervos.” O quadrado vazio na parede de sacos de areia parecia emoldurado na boca da sua arma quando ainda mais disparos foram desferidos. Os buracos no barril tornaram-se um buraco diabolicamente grande, do qual a água saiu torrencialmente. Isto, no entanto, não fez tremer os nervos de Mansur e, no instante seguinte, o cão bateu e um trovão incrivelmente selvagem explodiu. Depois caiu o silêncio. (KANAFANI, 2022, p. 97)

Isso permitiu a Ustaz Ma’aruf correr para o outro lado e escapar por um beco. Mansur olhou novamente para a parede de sacos de areia, que “Parecia calma e ineficaz”. Ele havia conseguido acertar ou assustar o atirador de cima do telhado e, por alguns instantes, só se ouviu a água escorrendo no meio do pátio e os passos do companheiro que escapava, cumprindo sua missão. Então, ouve-se uma voz alta vindo do outro lado do pátio, e assim o conto termina: “‘Você é um leão, você com o graveto…’ Desta vez, no entanto, Mansur não se zangou, mas começou a rir alto e intensamente. Os trinados da morte dentro da sua cabeça desvaneceram-se como se fossem pedaços de refugo” (KANAFANI, 2022, p. 97).

Deste modo, a criança de casa, o cavalo de raça dos campos, se torna “um leão” da resistência palestina. A luta pela liberdade de sua terra coincide com sua própria vida, uma vez que ele não concebe uma existência sob ocupação colonialista. Mansur passou pela primeira experiência de responsabilidade pela própria vida, pela vida de outros combatentes e de seu povo de modo geral. Mas não se pode dizer ainda que ele seja um adulto. Como no caso dos scugnizzi, os dois outros contos que versam sobre a história de Mansur e sua família mostrarão que a coragem e ousadia da criança irá motivar o pai e o tio a ingressarem novamente na luta armada, após anos da revolta de 1936-39. Abu al-Hassan participará de uma emboscada a um carro inglês para conseguir armas e Abu Qassim alugará uma arma para lutar na cidadela de Jaddin, outra vila ocupada. Ambos farão isso sem revelar a ninguém da família.

No caso de seu pai, Mansur intui que algo está ocorrendo, consegue informações e vai atrás dele na cidadela de Jaddin, desarmado. Ali, a desvantagem dos palestinos é enorme. Abu Qassim leva um tiro, mas um dos combatentes consegue levá-lo à estrada, onde fica com Mansur. A criança assistirá o pai morrer e aí se tornará definitivamente um homem.

“A bala parece estar nos intestinos. Se ele não sangrar até a morte na estrada, um médico pode salvá-lo. Conhece um médico? De qualquer modo, vou agora buscar um burro. É melhor você chegar a Majd al-Kurum rapidamente… Eu perguntei, você conhece um médico?” Mansur olhou para o seu pai esfarrapado ao pé daquele tronco de árvore, o sangue jorrando entre os dedos da sua mão lamacenta, que estava pressionada sobre o seu estômago. Os seus olhos estavam fechados e a sua outra mão, apertada à volta do fuzil, parecia de madeira e morta.

“Conhece um médico?”

“Um médico? O meu irmão Qassim é um médico. Qassim. É claro… Mas ele…”

“O que é que está esperando então? Vou buscar um burro para o velho.” (KANAFANI, 2022, p. 129)

Na beira da estrada, sob chuva, seu pai não resistirá e será mais um fidayeen martirizado, mais um agricultor que tombou em combate em defesa da terra. Para todos eles, a resistência não poderia se distinguir de uma existência minimamente digna e humana. A medicina do doutor Qassim, que queria atuar na cidade, de nada serviu para seu pai.

Além da ciência que poderia tê-lo salvado, mas estava muito distante, também os Estado nacionais que se manifestam em favor da autodeterminação dos povos se manterão distantes. Nos mais de 75 anos que se seguirão a este episódio, nenhum Estado, nenhuma nação, nenhum exército virá em socorro do povo sitiado, e os scugnizzi palestinos, diferente dos italianos, não serão vistos como heroicos pelos Estados estrangeiros, mas, ao contrário, como terroristas. No entanto, os povos do mundo os reconhecem, como mostram as atuais manifestações populares em todo o globo.

Referências

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BRAGA, Rubem. Crônicas da guerra (Com a FEB na Itália). Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.

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https://www.elgaronline.com/edcollchap/edcoll/9781788972215/9781788972215.00002.xml Acesso em: 05 de setembro de 2024.

KANAFANI, Ghassam. Filhos da Palestina – Retorno a Haifa e outros contos. Tradução do árabe para o inglês de Karen E. Riley e Barbara Harlow. Tradução para o português de Gercyane Oliveira e Gabriel Landi Fazzio. São Paulo: Lavrapalavra, 2022.

QUIGLEY, John. “The Oslo Accords: More than Israel Deserves”. American University International Law Review 12, no. 2 (1997): 285-298.

UNICEF. Children in Israeli Military Detention – Observations and Recommendations. Fevereiro de 2013. Disponível em: https://www.unicef.org/sop/documents/children-israeli-military-detention. Acesso em 08 de setembro de 2024.

1 Ver “A to Z of the children Israel killed in Gaza”. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/longform/2024/11/20/an-a-z-of-the-children-israel-killed-in-gaza Acesso em 30 de novembro de 2024.

2 Ver “Mais de 20 mil crianças desaparecidas em Gaza foram perdidas, detidas ou enterradas, diz relatório”. Disponível em:

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/mais-de-20-mil-criancas-desaparecidas-em-gaza-foram-perdidas-detidas-ou-enterradas-diz-relatorio/#:~:text=A%20guerra%20em%20curso%20na,segunda%2Dfeira%20(24). Acesso em 09 de setembro de 2024.

3 Ver “Mais crianças morreram em Gaza do que em 4 anos de guerras no mundo – ONU estima que uma criança é morta a cada 10 minutos na região”. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-03/mais-criancas-morreram-em-gaza-do-que-em-4-anos-de-guerras-no-mundo. Acesso em 10 de setembro de 2024.

4 Ele afirma que, “De acordo com o artigo 2(a) da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, um tratado é sempre um acordo internacional ‘concluído entre Estados’” (BERES, 1997, p. 268, nota 2, tradução nossa).

5 Quigley argumenta que esse fato não autoriza o descumprimento dos Acordos de Oslo por parte do Estado de Israel porque a Convenção de Viena reconhece outros sujeitos do direito internacional para além dos Estados e recorre ao reconhecido jurista Antonio Cassese, que presidiu diferentes tribunais internacionais de guerra e é especialista em direito internacional, direitos humanos e crimes de guerra, para mostrar que a Organização pela Libertação da Palestina é um sujeito da lei internacional por ser uma organização que representa um povo com direito à autodeterminação: “O professor Beres ignora o Artigo 3 da Convenção de Viena, que diz: ‘O fato de a presente Convenção não se aplicar a acordos internacionais celebrados entre Estados e outros sujeitos de direito internacional (…) não afetará a força legal de tais acordos’. Assim, de acordo com a Convenção de Viena, é possível haver um acordo internacional vinculante entre um Estado-parte e um não-Estado-parte, desde que este último se qualifique como sujeito de direito internacional. Uma organização que representa um povo com direito à autodeterminação é um sujeito de direito internacional. Nas palavras de um renomado escritor sobre o assunto, ‘os movimentos de libertação nacional recebem status internacional por causa de seus objetivos políticos: sua luta para se libertar da dominação colonial, de um regime racista ou de uma ocupação estrangeira’. A OLP se opõe à ‘ocupação estrangeira’ da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. A Assembleia Geral da ONU reconheceu o povo palestino como tendo direito à autodeterminação, e a OLP como sua representante nesse sentido” (QUIGLEY, 1997, pp. 288-89, tradução nossa).

6 Desconsiderando a resistência popular em Gaza e na Cisjordânia ocupadas, que se manifestou na revolta conhecida como Primeira Intifada (1987-1993) e que recusava a ocupação israelense, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) assina, a partir de 1993, acordos com o Estado de Israel, que estabelece áreas para o governo da Autoridade Nacional Palestina, mas mantém a condição colonial e a subordinação econômica da região a Israel. O discurso era o de que, com tempo e adaptações, poderia ser estabelecido o Estado da Palestina. Tais acordos precipitaram o fim da Intifada, e foram muito favoráveis a Israel, de modo que defender que este Estado tenha o direito de não os cumprir é uma posição extremista em favor da aniquilação da Palestina, hoje assumida francamente pelo governo israelense.

7 Esta denúncia pode ser encontrada na página do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na internet, sob o título de “Israel: UN experts condemn decades of unfair trials for Palestinians in the occupied West Bank”, publicada em 03 de julho de 2024, de sorte que ganhou reconhecimento público, institucional e internacional. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/press-releases/2024/07/israel-un-experts-condemn-decades-unfair-trials-palestinians-occupied-west. Acesso em 08 de setembro de 2024.

8 Esta notícia, “Ben-Gvir says Israeli rights trump Palestinian freedom of movement”, foi publicada pela Al Jazeera, em 24 de agosto de 2023. Esta emissora de notícias teve seu escritório na Cisjordânia fechado pelo Estado de Israel e quatro de seus jornalistas assassinados por ele. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2023/8/24/ben-gvir-says-israeli-rights-trump-palestinian-freedom-of-movement. Acesso em 08 de setembro de 2024.

9 Ver “Israeli minister Ben-Gvir says army can shoot women, children in Gaza”, publicada em 13 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.newarab.com/news/ben-gvir-says-israeli-army-can-shoot-women-children-gaza. Acesso em 08 de setembro de 2024.

10 Ver BUXBAUM, Jessica. “’Erase Gaza’: How genocidal rhetoric became normalised in Israel”. Publicado em 30 de novembro de 2023. Disponível em: https://www.newarab.com/analysis/erase-gaza-how-genocidal-rhetoric-normalised-israel. Acesso em 08 de setembro de 2024.

11 Apenas para citar alguns exemplos, os Panteras Negras foram tomados por terroristas nos EUA e a Angela Davis foi procurada pelo FBI como terrorista. Até hoje, o Partido Comunista das Filipinas, o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), o Exército de Liberação Nacional colombiano, diferentes frentes de libertação da Palestina, grupos minoritários que reivindicam o marxismo, o partido Luta Revolucionária grego, o Partido Comunista do Peru, todos eles integram a lista dos grupos terroristas de acordo com CIA. Ver https://www.cia.gov/the-world-factbook/references/terrorist-organizations/. Acesso em 10 de setembro de 2024.

12 Como resume Marcello de Filippo (2020, p. 02, tradução nossa), “(…) a história de grandes mudanças sociais e políticas em muitos países e regiões mostra como o “terrorista” de ontem pode se transformar no herói nacional de hoje”.

13 Ver UNICEF. “Children in Israeli Military Detention – Observations and Recommendations”. Fevereiro de 2013. Disponível em: https://www.unicef.org/sop/documents/children-israeli-military-detention. Acesso em 08 de setembro de 2024.

14 Ver KHALIDI, Walid. Before their Diaspora – A photographic history of the Palestinians, 1876-1948. Institute for Palestine Studies: Washington DC, 2010. Este livro documenta as mais de quatrocentas vilas rurais que foram completamente destruídas para dar lugar ao Estado de Israel.

15 Umm al-Hassan aparece no conto “Seis águias e uma criança”, como a senhora que conta uma das histórias sobre a águia. É comum na obra de Kanafani que seus personagens apareçam em mais de um conto, de modo que o conjunto dos textos crie um mundo orgânico, em que um conto completa o sentido do outro.

16 Mesmo após a integração da Fatah no governo da Autoridade Nacional Palestina formado a partir da OLP, e a mais recente criação do Hamas, Movimento de Resistência Islâmica, a resistência se mantém de modo relativamente independente de tais organizações partidárias, a partir, especialmente, dos campos de refugiados que se formaram depois de 1948 e permanecem até hoje. Isso se confirma, por exemplo, no caso do campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia, cidade onde está situado o Teatro da Liberdade. Ali, a resistência é constante, o que motiva os ataques israelenses por meio do exército e por meio de seus colonos civis armados. Em julho de 2023, após ataques israelenses que visaram inclusive o Teatro e destruíram a infraestrutura urbana, além de deixar vários mortos, a visita do presidente Mahmoud Abbas e de membros da Autoridade Nacional gerou revolta na população, devido à ausência de ajuda governamental durante os ataques. Ver: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/jenin-sob-ataque-israel-opera-ofensiva-mais-violenta-contra-cisjordania-em-20-anos/ e https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-07/presidente-palestino-visita-jenin-para-tentar-acalmar-tensao

Essa ausência de apoio à resistência por parte da Fatah é um fator relevante para a ascensão do Hamas, que surgiu em 1987 no contexto da Primeira Intifada, mas ganhou projeção nacional a partir das eleições de 2006, em que conseguiu maioria no Parlamento, e da guerra civil de 2007, em que a organização islâmica ganhou o governo da Faixa de Gaza.

17 A luta pela independência palestina passou por várias revoltas, sendo a última e mais importante a que se deu entre 1936 e 1939, e foi derrotada. No conto “Qassim fala com Eva…”, lemos sobre Abu al-Hassan: “Na época de sua primeira missão para a arma, durante a revolta, quando ele a havia levado para as montanhas, a cinta de couro original ainda se encontrava em bom estado, provavelmente” (KANAFANI, 2022, pp. 82-83).

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