Drogas: O labirinto da esquerda
A posição majoritária é que o proibicionismo só alarga os lucros das elites do tráfico e o controle da população negra e pobre. Mas para alguns, os psicotrópicos são alienantes e “arma do capitalismo”. O debate deve passar pela Ciência e diálogos interdisciplinares — não moralismo
Publicado 05/09/2025 às 18:38

O debate acerca da descriminalização e da legalização das drogas tem gerado uma constante polêmica na sociedade, sendo possível ver opiniões que se dividem entre aquelas que defendem uma legalização ampla e outras que têm restrições mesmo em relação à descriminalização das drogas. Essas divergências são observadas até mesmo em organizações marxistas.1
Muitas das análises partem da compreensão de que o proibicionismo se mostra uma política que permeia a dominação de classes e a repressão no capitalismo. Essas interpretações partem do entendimento de que houve um “absoluto fracasso do proibicionismo em suas premissas de garantia da saúde pública e a também evidente constatação de seu absoluto sucesso como máquina de guerra, controle, segregação, encarceramento, desinformação e discriminação”.2
Outras organizações marxistas defendem o proibicionismo. Essas posições mostram uma avaliação que enfatize os elementos negativos de uma possível legalização das drogas, cuja disponibilidade comercial poderia levar ao crescimento do consumo. Por considerarem as drogas um mecanismo de alienação das pessoas, entendem que as drogas não deveriam ter sua circulação facilitada por políticas estatais, chegando, em alguns casos, até mesmo a criticar o consumo de substâncias legalizadas.
O combate ao proibicionismo na esquerda
No Brasil, talvez a organização marxista que possui as posições mais elaboradas acerca da política de drogas seja o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que durante muitos anos contou em suas fileiras com o militante antiproibicionista e pesquisador Henrique Carneiro. Com a saída de Carneiro do PSTU, em grande medida suas contribuições foram incorporadas por um grupo produto de uma ruptura do PSTU, atualmente chamado Resistência, que atuacomo tendência interna do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em suas elaborações, o PSTU, em texto assinado por um de seus membros e publicado em sua página na internet, aponta que:
“[…] a política proibicionista da maioria dos governos só alavanca os lucros dos grandes empresários do tráfico. A ilegalidade desse mercado desonera produtores, comerciantes e consumidores do pagamento de quaisquer impostos ou taxas sobre a produção e transação da mercadoria droga. O custo da produção também é muito abaixo do preço final da mercadoria, pois não há nenhum controle de qualidade, nem fiscalização durante o processo produtivo”.3
Nessa passagem, o PSTU chama a atenção para o fato de que o comércio ilegal de drogas é funcional ao próprio capitalismo, na medida em que permite à burguesia envolvida com o setor a completa isenção de regras na produção e comercialização de produtos. O PSTU também destaca que:
“[…] a perseguição aos usuários e a batalha contra o narcotráfico são os alicerces da política proibicionista do Estado brasileiro. Os grandes empresários do tráfico continuam lavando os lucros do comércio ilegal das drogas no sistema financeiro internacional, enquanto o pequeno traficante, o polo varejista, é brutalmente reprimido”.4
O PSTU aponta que, apesar da política de repressão às drogas, a perseguição não acontece aos maiores responsáveis pela distribuição e comercialização, a burguesia que usa o sistema financeiro para lavar o dinheiro obtido com o tráfico, mas contra os usuários e os pequenos vendedores. Não se trata, contudo, apenas da perseguição individual aos usuários ou aos pequenos traficantes. Observa-se que “o recrudescimento do aparato punitivo estatal reflete-se claramente nas políticas de drogas, elemento importante no crescimento do encarceramento dos setores pobres das populações nacionais ao redor do planeta”.5 Em realidade, a guerra às drogas pode ser considerada, segundo o PSTU:
“[…] uma política de controle social da população negra e pobre, porque aprofunda a militarização das periferias das grandes cidades, como podemos ver nos casos das Unidades de Polícia Pacificadora nos morros cariocas. A classe trabalhadora é o alvo mais atingido por esta guerra, pois fica refém da luta entre as facções do tráfico, milícias e Polícia”.6
Conforme aponta a análise do PSTU, utiliza-se a retórica proibicionista como ferramenta de controle e repressão aos mais pobres, estigmatizando essa parcela da população como bandidos e perigosos. Nesse processo, segundo um pesquisador do tema:
“[…] a violência concentra-se no setor de varejo, onde os grupos criminosos disputam território e clientes e onde age a polícia. A repressão não chega nem perto dos grandes oligopólios do narcotráfico, dominadores de todas as etapas do tráfico e os que realmente lucram com a proibição das drogas”.7
O PSTU procura apresentar alternativas a essa situação, afirmando que, “além de descriminalizar o uso e o comércio das drogas ilícitas, a legalização de todas as drogas, colocando a grande produção e a comercialização sob o controle do Estado”.8 Segundo o PSTU, “essa política desarticularia o crime organizado e colocaria grandes barreiras ao comércio ilegal de drogas. Além disso, os governos deixariam de investir milhões de reais em armamento e aparelhos repressivos”.9 O desmantelamento do mercado ilegal iria também desestruturar o crime organizado e atacaria os setores da burguesia que atualmente enriquecem por meio da lavagem de dinheiro das drogas ilegais. Portanto, refletindo sobre as políticas vigentes, observa-se que “o resultado do proibicionismo foi provocar a hiperlucratividade, danos à saúde pública (devido à falta de fiscalização), a militarização da produção e do comércio de certas drogas e a intromissão do aparato de segurança em esferas da vida cotidiana”.10
Essas posições antiproibicionistas são também compartilhadas por outros segmentos da esquerda. Um exemplo é a Democracia Socialistas (DS), que se constituiu como tendência interna do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a fundação do partido, no começo da década de 1980. Em um de seus documentos, voltados à intervenção da organização na juventude, a DS ressalta também o caráter de opressão da política de repressão às drogas. Para essa organização:
“[…] a orientação repressora dessa política cerceia o direito de experimentação da juventude e autonomia em relação ao próprio corpo. Numa visão hipócrita, em que algumas substâncias são consideradas ilegais e outras não, sem necessariamente representarem riscos maiores aos indivíduos e à coletividade, os setores conservadores da nossa sociedade utilizam-se do proibicionismo para impor valores morais hegemônicos, não permitindo que as pessoas escolham por si mesmas se querem ou não usar tais ou quais substâncias”.11
Em seu documento, a DS defende a descriminalização, relacionado ao processo de atuação do aparato repressivo do Estado. Para a DS:
“[…] descriminalizar as drogas é fundamental para combater o extermínio da juventude negra, transferindo da esfera penal para o sistema de políticas públicas integradas à tarefa de informar, conscientizar, reduzir danos e integrar os usuários de drogas, criando outras possibilidades mais eficazes na solução desse problema”.12
Defende também a necessidade de legalizar a maconha, regulamentando a sua produção e o seu comércio. Para a DS:
“[…] faltam argumentos sólidos para sustentar a proibição da maconha, principalmente, quando comparamos seus efeitos com os do álcool e do tabaco, principais causadores de mortes dentre todas as drogas, lícitas e ilícitas. A manutenção desta proibição atende exclusivamente aos interesses econômicos e políticos do mercado ilegal de drogas, do lobby da indústria farmacêutica e do tabaco, e a uma concepção de política de segurança pública repressiva, que não respeita os direitos e, muito menos, os anseios da juventude brasileira”.13
No PSOL o debate também aparece com frequência, sendo um de seus deputados federais o responsável por apresentar um projeto de lei na Câmara Federal, em 2014.14 Renato Cinco, vereador pelo partido até 2020, foi um dos principais defensores da proposta, no Rio de Janeiro. No período mais recente, em grande medida, o debate entre os marxistas no partido é realizado pela Resistência. Em livro publicado por um de seus membros, pelo seu selo editorial vinculado à organização, defende-se “a premência de considerarmos a legalização das drogas como um de nossos horizontes políticos (e, portanto, não o final), de modo a propiciar novas formas de se conceber e relacionar com as drogas, nas esferas de produção, comercialização e consumo”.15 O autor afirma que seria preciso “pensarmos e debatermos o que chamamos de legalização e, mais especificamente, que tipo de legalização queremos, a partir da realidade brasileira”.16 No texto defende-se “que a legalização das drogas esteja envolta em um horizonte maior, o da transformação radical de nossa sociabilidade — por nós mesmos — e, por conseguinte, da emancipação humana dos grilhões que nos aprisionam”.17
Esses são alguns elementos apresentados pelos segmentos da esquerda que defendem a legalização das drogas. Esses setores elaboram sua compreensão no sentido de defender o “absoluto fracasso do proibicionismo em suas premissas de garantia da saúde pública e a também evidente constatação de seu absoluto sucesso como máquina de guerra, controle, segregação, encarceramento, desinformação e discriminação”.18
A esquerda proibicionista
Embora a posição mais comum na esquerda seja a antiproibicionista, existem organizações marxistas que são contrárias à legalização das drogas. As organizações O Trabalho (OT), tendência do PT, e a Organização Comunista Internacionalista (OCI), anteriormente chamada Esquerda Marxista, uma ruptura da OT, destoam das elaborações comuns na esquerda.
Em seus documentos, produzidos por seu braço de juventude, a OT chega a afirmar: “Somos intransigentes no combate ao consumo e à legalização das drogas”.19 Em outro texto, a OT afirma que “não há nada de revolucionário em fumar maconha”.20 Para essa organização, “as drogas não são nada mais do que a negação de um futuro com vida saudável e estabilidade material para a juventude. Além disso, é um instrumento do imperialismo para dopar a juventude e impedir a luta organizada pelos nossos direitos”.21 Explicam que sua posição acerca das drogas parte “da premissa que as drogas são instrumento de alienação e destruição da juventude e trabalhadores e servem para financiar o imperialismo, a indústria bélica, corrupção, lavagem de dinheiro, violência policial, e a matança de nossa juventude”.22
Segundo a OT, as drogas se constituem em um mecanismo consciente da burguesia para destruir a juventude e os trabalhadores. Em seu texto, afirmam que “a droga é apenas um meio, e bem eficiente por sinal, da destruição dos jovens na periferia pela burguesia, que quer oprimir, para continuar explorando mão de obra barata e impedindo que os jovens se organizem, resistam e lutem para mudar sua realidade”.23
Em suas elaborações, a OCI, ainda com o nome Esquerda Marxista, destoa em alguns elementos da OT, ainda que compartilhe muitas das análises expostas anteriormente, destacando o papel das drogas na sociedade. Para a OCI, em texto assinado por um de seus membros e publicado em sua página na internet,
“[…] a droga nas suas formas legal e ilegal é parte de uma ação organizada de destruição da juventude operária e da classe trabalhadora. Um instrumento utilizado pelo imperialismo para desmontar as organizações dos trabalhadores e destruir a consciência de classe e qualquer tentativa de luta que possa se desenvolver na juventude trabalhadora”.24
Ressaltando o papel contrarrevolucionário das drogas, a OCI aponta que a:
“[…] disseminação das drogas tem como consequência a destruição dos trabalhadores e suas formas organizativas, os militantes operários devem abordar o problema das drogas como a defesa de direitos e conquistas, defesa de sua existência como classe incluindo aí sua própria saúde. A droga é contrarrevolucionária, uma arma de ataque contra a classe operaria e em especial a juventude operária”.25
Em outros textos, a OCI repete essas mesmas posições. Em 2024, em seu jornal, um de seus membros afirmava que “as drogas são uma arma que os capitalistas utilizam para enfraquecer os corpos e mentes dos trabalhadores e, assim, impedir que eles tenham a capacidade de se organizar”.26 Nesse texto, afirma que “erroneamente, a maioria da esquerda defende a legalização das drogas como forma de combater a repressão, mesmo que a história demonstre como as drogas são armas eficientes para desorganizar os trabalhadores”.27 No texto, afirma que, “quando se trata do comércio de drogas e do seu uso recreativo, é necessário entender que as drogas são ferramentas de destruição de mentes e corpos”.28
A OCI destoa de alguns elementos das análises de sua organização de origem, não combatendo toda e qualquer droga. Em suas elaborações, a OCI aponta que em outros momentos as drogas tiveram outra função, de consumo local e em muitos casos vinculados as práticas rituais e religiosas. Contudo, assumiu novas características nos últimos séculos. Segundo a OCI:
“[…] o uso generalizado das drogas é uma característica da sociedade capitalista e só foi possível se desenvolver dessa forma quando a droga começou a ser produzida em grandes quantidades, ganhando condições de armazenamento, conservação e transporte. Ou seja, quando a droga se converteu em mercadoria”.29
Quando ainda se chamava Esquerda Marxista, lançou um livreto tratando da temática, assinado por um de seus dirigentes. No geral, essa publicação apenas sistematiza as posições anteriormente apresentadas pela organização, atualizando dados com pesquisas mais recentes e trazendo como novidade a temática do uso medicinal. No texto afirma-se que, “embora rechacemos a ideia de buscar compreender melhor a realidade sob o efeito de drogas, reconhecemos sua validade para fins medicinais”.30
Em síntese, essas posições desenvolvidas pela OT e pela OCI mostram uma avaliação que enfatize os elementos negativos de uma possível legalização das drogas. Na compreensão dessas organizações, a disponibilidade comercial das drogas poderia levar à ampliação do consumo. Por considerar as drogas um mecanismo de alienação das pessoas, entendem que as drogas não deveriam ter sua circulação facilitada por políticas estatais, chegando, em alguns casos, a criticar o consumo de substâncias legalizadas.
Os labirintos do debate
Embora os diferentes setores defendam firmemente suas posições, a questão não deve se limitar à retórica da disputa política e sim ser discutida de forma científica e nos marcos da saúde coletiva. Em primeiro lugar, deve-se delimitar do que se trata, ou seja, o que seriam drogas. Entende-se drogas como qualquer substância capaz de modificar a função dos organismos vivos, resultando em mudanças fisiológicas ou de comportamento, ou seja, “são drogas tanto medicamentos quanto o tabaco, o álcool e drogas ilícitas como cocaína, maconha, heroína”.31
Outro aspecto que precisa ser levantado nessa discussão passa pela construção histórica dessas formas de interdição. O estatuto de ilegalidade de algumas drogas encontra explicação não nos seus efeitos sobre o organismo, mas em aspectos econômicos e políticos, construídos historicamente, não sendo possível ignorar o papel da indústria farmacêutica. O proibicionismo separou as indústrias farmacêutica, do tabaco e do álcool, da indústria clandestina das drogas proibidas, num mecanismo que resultou no crescimento exagerado do lucro no ramo das substâncias interditas.
Nos Estados Unidos, a experiência da Lei Seca (1920 a 1934) está marcada pelo surgimento das poderosas máfias e do imenso aparelho policial unidos na exploração comum dos lucros de um comércio proibido. Essa experiência viria a se repetir no final do século XX, em escala global, com a dimensão de um comércio de altos lucros, gerador de uma crescente violência. Nesse processo, “o consumo de drogas ilícitas cresce não apesar do proibicionismo também crescente, mas exatamente devido ao mecanismo do proibicionismo”.32
No século XX, observa-se a proibição formal de certas substâncias e a aceitação de outras. Essa discriminação de algumas substâncias obedece a elementos culturais e econômicos. O álcool, por exemplo, embora tenha sido proibido no começo do século nos Estados Unidos e na Rússia, é tolerado, em geral, nas sociedades ocidentais, bem como o tabaco, enquanto substâncias reconhecidamente menos nocivas, como os derivados da cannabis, são proibidas. Os critérios para a legitimidade ou não dessa proibição são arbitrariamente estabelecidos, afinal algumas das substâncias mais perigosas são permitidas devido ao seu uso tradicional no Ocidente cristão. São exemplos disso o que “incorporou-se, desde a guerra da Criméia, à ração dos exércitos e aos hábitos do povo. O chá e o ópio, à dieta da Inglaterra vitoriana. E o álcool, na forma do vinho, da cerveja e dos destilados, continua sendo a bebida nacional de muitos povos”.33
As ações de interdição da produção e do consumo de drogas como estratégia global são recentes historicamente, coincidindo com a definição moral do que seriam drogas de uso ilícito e drogas de uso livre. Cerca de um século atrás, “praticamente nenhuma droga, de uso medicamentoso ou não, era sequer objeto de controle, quanto mais de criminalização”.34 O processo de proibição se deu em conjunção com o desenvolvimento da indústria farmacêutica e com o crescimento da importância social das atividades biomédicas, passando as políticas de repressão a ter de usar a retórica médica e jurídica. Nesse processo, “a proibição oferece ao Estado uma importante justificativa para intervir na sociedade, através de uma repressão que, em verdade, incide apenas sobre os usuários e traficantes varejistas”.35
O tema da saúde pública em relação às drogas deve ser apresentado o melhor embasado possível. O uso equivocado ou moralista de determinados argumentos pode atrapalhar, inclusive, a possibilidade de avanços na pesquisa ou mesmo no uso medicinal de algumas substâncias. Por outro lado, ao debater a proibição ou não, é bastante comum que se levante temas como o uso político das drogas em outros momentos históricos ou os interesses em abstrato do imperialismo, embora a prioridade devesse ser o impacto na saúde das pessoas. Deve-se considerar, independente da defesa do proibicionismo ou não, que, “sob as condições impostas pelo capitalismo aos trabalhadores, estes não estão em posição de moderar conscientemente o uso de droga alguma. A droga se torna um canal de fuga da persistente realidade cotidiana de opressão e exploração. Cair no abuso é quase inevitável”.36
Um argumento presente em textos da esquerda para defender a proibição das drogas atualmente ilegais seria o de que haveria um aumento do consumo, diante da possibilidade de distribuição massiva. Cabe destacar, em primeiro lugar, que atualmente já existe uma distribuição massiva de drogas, tanto legais como ilegais. Em um cenário de legalização, a única diferença seria que uma parcela das drogas que atualmente são vendidas clandestinamente deveria seguir critérios de produção definidos pelo Estado e seriam passíveis de cobrança de impostos.
Por outro lado, não há comprovação científica de que a legalização das drogas necessariamente leva ao aumento do consumo. Pelo contrário, nos Estados Unidos se observou redução no consumo de maconha entre adolescentes em algumas localidades onde houve a legalização.37 Conclusões semelhantes foram apontadas em estudos realizados acerca da legalização das drogas em Portugal.38 Contudo, uma tendência contrária foi observada em outros países, mostrando que o debate é muito mais complexo do que a mera apresentação de dados parciais.39 Nesse sentido, afirmar que a legalização necessariamente levará ao aumento ou à diminuição do consumo não passa de especulação, devendo se considerar outros fatores, como as condições econômicas, sociais e culturais específicas.
Entende-se legalização como a regulamentação da produção e descriminalização da venda. No atual contexto, as drogas consideradas ilegais são produzidas e comercializadas sem qualquer critério, com preços arbitrados pela própria lógica do comércio clandestino. Nesse sentido, a criminalização de algumas drogas, “ao produzir a clandestinidade, diminui a possibilidade de regulamentação pública das transações, reforça a possibilidade de oligopólios e cartéis, diminui a concorrência e a proteção ao consumidor”.40 Esse mercado está normalmente relacionado a empresas que lavam o dinheiro, criando “um mercado clandestino de grandes proporções e, juntamente com ele, o surgimento de traficantes e outros tipos de criminosos”.41
Outra afirmação para ser contra a proposta de legalização das drogas passa pelo fato de setores empresariais defenderem essa medida. Pelas propostas defendidas por diferentes segmentos da sociedade, com a regulamentação da produção, além da descriminalização do consumo, a comercialização passa a ser descriminalizada. Nesse cenário, seria preciso que a produção e a comercialização seguissem regras estabelecidas pelo Estado, garantindo critérios de produção. Contudo, diferente do que alegam setores da esquerda, isso não tiraria as drogas do tráfico comandado pelo crime organizado, enquanto o comércio sem controle do Estado poderia seguir vigente, alimentado inclusive por setores empresariais do ramo. Essa contradição não seria resolvida nem pela legalização, nem pela permanência da proibição, na medida em que o Estado poderia ser um parceiro tanto das empresas que fabricariam essas drogas como do crime organizado na distribuição ilegal dessas substâncias.
Não é possível afirmar que o proibicionismo seja prejudicial à saúde pública ou mesmo que a legalização trará alguma melhoria. Contudo, ainda que o tema seja controverso, podem-se inferir alguns aspectos que apontam caminhos para uma política em relação às drogas. Em primeiro lugar, a repressão do Estado ao consumo é um elemento que deve ser combatido, enquanto serve apenas para não encarar o problema das drogas como um tema de saúde pública. Segundo, que o uso livre e indiscriminado de drogas é nocivo, em muitos casos expressando problemas relacionados ao cotidiano das pessoas, sendo prejudicial a ampla disponibilidade tanto de drogas legais como ilegais. E, terceiro, que se trata de um problema a ser discutido e encaminhado a partir de uma ampla discussão na sociedade, embasado em evidências científicas e envolvendo diferentes áreas do conhecimento, sem recorrer a moralismos ou a especulações embasadas no senso comum.
Notas:
1 Mostramos o que alguns teóricos marxistas discutiram sobre drogas em texto anteriormente publicado no Outras Palavras, que pode ser lido em https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-que-alguns-marxistas-nos-dizem-sobre-as-drogas/
2 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 22.
3 CRUZ, Diego. Legalizar as drogas: um passo contra a criminalização da pobreza e o genocídio da juventude negra! PSTU. Disponível em https://www.pstu.org.br/legalizar-as-drogas-um-passo-contra-a-criminalizacao-da-pobreza-e-o-genocidio-da-juventude-negra/
4 CRUZ, Diego. Legalizar as drogas: um passo contra a criminalização da pobreza e o genocídio da juventude negra! PSTU. Disponível em https://www.pstu.org.br/legalizar-as-drogas-um-passo-contra-a-criminalizacao-da-pobreza-e-o-genocidio-da-juventude-negra/
5 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 87.
6 CRUZ, Diego. Legalizar as drogas: um passo contra a criminalização da pobreza e o genocídio da juventude negra! PSTU. Disponível em https://www.pstu.org.br/legalizar-as-drogas-um-passo-contra-a-criminalizacao-da-pobreza-e-o-genocidio-da-juventude-negra/
7 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 30.
8 CRUZ, Diego. Legalizar as drogas: um passo contra a criminalização da pobreza e o genocídio da juventude negra! PSTU. Disponível em https://www.pstu.org.br/legalizar-as-drogas-um-passo-contra-a-criminalizacao-da-pobreza-e-o-genocidio-da-juventude-negra/
9 CRUZ, Diego. Legalizar as drogas: um passo contra a criminalização da pobreza e o genocídio da juventude negra! PSTU. Disponível em https://www.pstu.org.br/legalizar-as-drogas-um-passo-contra-a-criminalizacao-da-pobreza-e-o-genocidio-da-juventude-negra/
10 CARNEIRO, Henrique. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Outubro, n. 6, p. 115-28, 2002, p. 128.
11 DEMOCRACIA SOCIALISTA. Resolução específica do ativo de juventude da DS. Democracia Socialista. Disponível em https://democraciasocialista.org.br/resolucoes-especificas-do-ativo-de-juventude-da-ds/
12 DEMOCRACIA SOCIALISTA. Resolução específica do ativo de juventude da DS. Democracia Socialista. Disponível em https://democraciasocialista.org.br/resolucoes-especificas-do-ativo-de-juventude-da-ds/
13 DEMOCRACIA SOCIALISTA. Resolução específica do ativo de juventude da DS. Democracia Socialista. Disponível em https://democraciasocialista.org.br/resolucoes-especificas-do-ativo-de-juventude-da-ds/
14 Trata-se do Projeto de Lei 7270/2014, apresentado por Jean Wyllys, então deputado federal do PSOL do Rio de Janeiro.
15 COSTA, Pedro Henrique Antunes da Costa. Por um (outro) mundo com drogas: drogas, questão social e capitalismo. São Paulo: Usina Editorial, 2020, p. 219.
16 COSTA, Pedro Henrique Antunes da Costa. Por um (outro) mundo com drogas: drogas, questão social e capitalismo. São Paulo: Usina Editorial, 2020, p. 219.
17 COSTA, Pedro Henrique Antunes da Costa. Por um (outro) mundo com drogas: drogas, questão social e capitalismo. São Paulo: Usina Editorial, 2020, p. 222.
18 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 22.
19 HENRIQUE, Carlos. O STF e a descriminalização das drogas: a intenção é proteger o usuário? Juventude Revolução. Disponível em https://juventuderevolucao.com.br/o-stf-e-a-descriminalizacao-das-drogas-a-intencao-e-proteger-o-usuario
20 ZAZO. Juventude e trabalhadores não precisam da legalização das drogas. Juventude Revolução. Disponível em https://juventuderevolucao.com.br/juventude-e-trabalhadores-nao-precisam-da-legalizacao-das-drogas-eles-querem-empregoeducacaosaude-diversao-e-arte/
21 HENRIQUE, Carlos. O STF e a descriminalização das drogas: a intenção é proteger o usuário? Juventude Revolução. Disponível em https://juventuderevolucao.com.br/o-stf-e-a-descriminalizacao-das-drogas-a-intencao-e-proteger-o-usuario
22 ZAZO. Juventude e trabalhadores não precisam da legalização das drogas. Juventude Revolução. Disponível em https://juventuderevolucao.com.br/juventude-e-trabalhadores-nao-precisam-da-legalizacao-das-drogas-eles-querem-empregoeducacaosaude-diversao-e-arte/
23 ZAZO. Juventude e trabalhadores não precisam da legalização das drogas. Juventude Revolução. Disponível em https://juventuderevolucao.com.br/juventude-e-trabalhadores-nao-precisam-da-legalizacao-das-drogas-eles-querem-empregoeducacaosaude-diversao-e-arte/
24 RAMIREZ, Fábio. Drogas: instrumento de destruição da juventude e pilar de sustentação do capitalismo. Marxismo. Disponível em http://www.marxismo.org.br/content/drogas-instrumento-de-destruicao-da-juventude-e-pilar-de-sustentacao-do-capitalismo
25 RAMIREZ, Fábio. Drogas: instrumento de destruição da juventude e pilar de sustentação do capitalismo. Marxismo. Disponível em http://www.marxismo.org.br/content/drogas-instrumento-de-destruicao-da-juventude-e-pilar-de-sustentacao-do-capitalismo
26 PAQUI, Iago Sartori. Drogas: uma das principais armas do capitalismo contra a juventude. O Comunismo, nº 4, ago. 2024, p. 8.
27 PAQUI, Iago Sartori. Drogas: uma das principais armas do capitalismo contra a juventude. O Comunismo, nº 4, ago. 2024, p. 8.
28 PAQUI, Iago Sartori. Drogas: uma das principais armas do capitalismo contra a juventude. O Comunismo, nº 4, ago. 2024, p. 9.
29 RAMIREZ, Fábio. Drogas: instrumento de destruição da juventude e pilar de sustentação do capitalismo. Marxismo. Disponível em http://www.marxismo.org.br/content/drogas-instrumento-de-destruicao-da-juventude-e-pilar-de-sustentacao-do-capitalismo
30 DEZORZI, Caio. Drogas e luta de classes. São Paulo: Editora Marxista, 2019, p. 15.
31 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 27.
32 CARNEIRO, Henrique. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Outubro, n. 6, p. 115-28, 2002, p. 116.
33 CARNEIRO, Henrique. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Outubro, n. 6, p. 115-28, 2002, p. 117.
34 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 82.
35 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 29.
36 DEZORZI, Caio. Drogas e luta de classes. São Paulo: Editora Marxista, 2019, p. 31.
37 GREENME. Nos Estados Unidos cai o consumo da maconha após sua legalização. greenMe! Disponível em https://www.greenme.com.br/viver/costume-e-sociedade/4874-estados-unidos-cai-o-consumo-da-maconha. Acesso em 10/07/2018.
38 PLATONOW, Vladimir. Especialista diz que descriminalização reduziu consumo de drogas em Portugal. Agência Brasil. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/amphtml/geral/noticia/2015-11/especialista-diz-que-descriminalizacao-reduziu-consumo-de-drogas-em-portugal. Acesso em 10/07/2018.
39 ONU. Legalização de cannabis aumentou o consumo diário, afirma estudo da ONU. ONU News. Disponível em https://news.un.org/pt/story/2022/06/1793942. Acesso em 14/05/2024.
40 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 97.
41 TEIXEIRA, Luciana da Silva. Impacto econômico da legalização das drogas. Brasília: Câmara dos Deputados, 2016, p. 45.
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