Crônica de um espaço do futuro
Por séculos, as feiras foram lugares em que se compartilhavam alimentos, culturas e ideias. Em tempos de crise civilizatória, a Feira da Reforma Agrária volta a despontar como alternativa a um sistema agroalimentar insustentável, e brecha para um planeta solidário e ecológico
Publicado 02/06/2025 às 17:20 - Atualizado 02/06/2025 às 17:21

Elas têm origem milenar. Começaram como pequenos entroncamentos de caminhos entre povoados, locais onde as condições para uma pausa e o compartilhamento de alimentos e utensílios pareciam favoráveis. Se diversificaram e se multiplicaram pelos territórios de várias regiões, conforme as práticas de troca e, posteriormente, de comercialização de produtos foram se enraizando na cultura de diferentes povos, ao redor do mundo.
Estamos falando das feiras. Se hoje temos um sistema internacional de produção, distribuição e consumo de bens, é porque passamos pelo desenvolvimento desses espaços de reunião de pessoas que tinham o que fornecer umas para as outras e se articularam geograficamente para facilitar esse processo.
Sim, primeiro, essas pessoas vieram carregando nas costas (próprias ou de animais não humanos) seu farnel, seja ele composto por hortaliças, frutas, cestos, galinhas, peças de couro, de metal ou de barro. Estenderam suas esteiras de palha no chão e distribuíram essas preciosidades sobre elas, apresentando-as a quem circulava por ali, na espera de fazer bons negócios.
Então, vieram meios de transportes, equipamentos para acondicionamento e sistemas financeiros mais sofisticados, até chegar nos estandes hightech que vemos em boa parte dos grandes festivais de hoje – que movem fortunas e envolvem milhares de seres humanos de diferentes regiões do planeta. E que vão muito além da exposição e comercialização de comidas e utensílios domésticos, apresentando produtos de setores dos mais variados, muitos deles voltados à própria indústria – inacessíveis (e até irreconhecíveis) para o que chamam de consumidor final.
Mas não é que as velhas e boas feiras livres – com bancas de frutas, hortaliças, carnes e cacarecos utilitários simples para usarmos em casa – não só sobreviveram, como ainda são responsáveis pelo abastecimento de boa parte da população brasileira? E seguem sendo espaços multissensoriais, mesclando sabores, cores, aromas (ou fedores), gritos e barulhos, durante as manhãs de cidades nos quatro cantos do país. Caminhar dentro de uma delas é um mergulho em uma experiência sinestésica que nos conecta com uma chama ancestral. Totalmente diferente de fazer uma compra através do mundo plastificado ou virtualizado que domina outras formas de venda e aquisição de produtos.
Quem vende o que produz?
Atravessadores e mais atravessadores: normalmente é pelas mãos de vários deles que uma mercadoria costuma circular nos dias de hoje. Por vezes, essa circulação envolve diversas etapas de produção e países de continentes diferentes, já que o neoliberalismo imposto nas últimas décadas escancarou de vez as fronteiras e reduziu drasticamente a soberania das nações, sobretudo as do sul global. É assim que eu e você deixamos de olhar nos olhos de quem trabalhou para que um determinado produto adquirido no mercado, seja físico ou online, chegasse até nós.
Mesmo nas feiras livres das grandes cidades, como São Paulo, é muito difícil termos a oportunidade de comprar um alimento ou utensílio diretamente de quem o produziu. Em geral, o caminho passa por centrais de abastecimento que recebem itens de um amplo conjunto de territórios, após circularem em caminhões de empresas de transporte por estradas que podem ter centenas ou milhares de quilômetros. Frescor não é bem o caso nesse circuito longo de produção, distribuição e consumo.
Isso significa que, em geral, não sabemos quase nada sobre a origem de um alimento que compramos na maioria das feiras urbanas. Esse distanciamento dificulta que olhemos para essa comida como algo que tem uma dimensão que vai além da materialidade, que tem vínculos ambientais, sociais, culturais e até espirituais com territórios e épocas. Tudo vira simples mercadoria: pague o preço (ou pechinche, no caso da feira livre) e ela é sua. Ponto final.
Felizmente ainda há ações de resistência a essa frieza mercadológica e elas permitem que agricultores e agricultoras ofereçam o que cultivam ou produzem (no caso de itens que passaram por algum tipo de beneficiamento) diretamente para quem vai consumir essa produção. Uma das maiores possibilidades dessa “intimidade” ocorrer se dá nas feiras agroecológicas, que costumam ser realizadas para trazer alimentos locais ou regionais a comunidades com diferentes níveis de poder aquisitivo, conforme o bairro, a cidade e as organizações envolvidas. Quem quiser descobrir se há uma nas proximidades de seu local de moradia ou até ter uma noção de como elas se distribuem pelo país, pode dar uma olhada no mapa online feito pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC.
Se nossas feirinhas solidárias de comida de verdade costumam ter dimensões modestas, isso não significa que não é possível ampliar sua escala e criar versões turbinadas, capazes de reunir milhares de pessoas, e não destoar tanto em números das grandes feiras promovidas pelo setor agroalimentar. E a maior prova disso pôde ser apreciada durante a primeira quinzena deste mês.
Quando a megacidade vira roça
Se junho é conhecido por ser o mês do Meio Ambiente, maio também foi um período cheio de datas significativas do ponto de vista ambiental. Celebramos o Dia Internacional das Abelhas (20/05) e o Dia Internacional da Biodiversidade (22/05), além do dia das mães, quando não podemos deixar de lembrar da nossa madre das madres, a nossa Pachamama. E podemos dizer que, neste ano, pudemos celebrar com muito vigor essas datas comemorativas, apesar de todos os perrengues enfrentados dentro de uma sociedade dominada por relações político-econômicas devastadoras. Podemos atribuir tamanho “milagre” a um encontro que ocorreu na maior cidade do país, São Paulo, entre os dias 8 e 11: a Feira Nacional da Reforma Agrária.
Em sua quinta edição, regida pelo lema “Agroecologia: produzir alimentos e enfrentar a crise climática”, e completando 10 anos de (re)existência, o evento chacoalhou as estruturas paulistanas, ao transformar novamente um de seus parques urbanos mais conhecidos, o Parque da Água Branca, em um território repleto de biodiversidade comestível, cultura popular autêntica, sotaques de todos os cantos do país e relações fraternas e justas entre quem circulou por lá. A vibração sentida in loco é algo impossível de ser transmitido, mas os números ajudam a dar uma dimensão do que se deu.
Mesmice de sabores? Nem pensar! Foram cerca de 2 mil tipos de alimentos, vindo de todos os biomas brasileiros. Frutos, castanhas, grãos, raízes, farinhas, conservas, bebidas, doces… tudo feito no capricho por agricultores e agricultoras do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Terra, o MST, única força social capaz de enfrentar, mesmo que com suor e sangue, a fúria massificadora do sistema do Agronegócio globalizado. Se deu pra perceber que, ao contrário do que este último costuma oferecer, com sua falsa multiplicidade de produtos comestíveis, na nossa feira variedade não faltou, também fica evidente que a quantidade foi bem expressiva, somando 580 toneladas de alimentos comercializados e 40 toneladas de alimentos doados, já que a solidariedade nunca abandona as ações do MST.
Sabe aquelas praças de alimentação dos shoppings? Então imagine o oposto delas! Ao invés das mesmas redes transnacionais de fast food que imperam nos grandes centros de compras ao redor do mundo, o Parque da Água Branca se encheu de sabores caseiros, trazendo pratos tradicionais dos nossos territórios, preparados com o que a natureza tem de mais sagrado. É a Culinária da Terra, que ofereceu 143 pratos típicos de 23 estados, sendo um ponto forte do encontro e a fonte da energia que possibilitou que as pessoas presentes acompanhassem uma programação política e cultural de tirar o fôlego: 35 seminários e oficinas, 357 artistas e mais de 40 grupos culturais.
Afinal, comida é sempre uma forma de manifestar a cultura dos povos e comer é sempre um ato político, como entoamos em nossas ações artivistas. Por falar em política, a quinta Feira da RA ocorreu em um momento nevrálgico da história do parque que sempre a abrigou – e que é protegido por dois tombamentos, do Condephaat e Conpresp, e pela legislação ambiental pertinente aos parques urbanos, considerados pertencentes às Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepams) e às Áreas de Preservação Permanente (APPs).
Na esteira da privataria do patrimônio da população paulista, o governo Tarcísio tem permitido a violação do local, o que se percebe pela escandalosa obra da Fazenda Churrascada e pela substituição de vários jardins (tombados e em harmonia com a fauna do parque) por versões massificadoras criadas por expoentes da Casa Cor. Assim, louvar a cultura camponesa com a exuberância da Feira Nacional significou um contraponto ao processo de descaracterização que o parque (e toda a cidade) vem sofrendo. Voltemos a ela…
Do micro ao macro e vice versa
Talvez você esteja se perguntando como foi possível ter tamanha fartura para nutrir nossos corpos, nossas coletividades e nossas almas, atingindo um público que chegou a 300 mil pessoas, envolvendo 2 mil militantes e 180 cooperativas. A resposta está nas relações estabelecidas entre as esferas locais, as regionais e a nacional. O MST se distribui pelos territórios, organizando integrantes desde pequenos povoados, para que atuem localmente. Mas faz um trabalho em rede, de modo que cada homem e cada mulher que participam do movimento tenham consciência do que acontece no país e no mundo, agindo para somar seus esforços em uma ampla teia de mobilização. É assim que consegue avançar na produção de comida saudável, apresentando um caminho radicalmente diferente do apresentado pelo Ogro.
Essa forma de organização inspira os demais movimentos agroecológicos e ajuda a fortalecer iniciativas em escalas bem mais modestas, mas nem por isso menos fundamentais. Voltando às pequenas feiras solidárias sobre as quais falamos anteriormente, quem faz parte da sustentação de uma delas sabe muito bem das dificuldades para que elas não sucumbam frente às pressões diárias da vida dentro do capitalismo neoliberal. Desde a resistência de quem planta e sofre vários tipos de assédio cometidos por quem quer tomar suas terras, até a dificuldade de encontrar espaços dispostos a acolher uma feira, passando pela logística de transporte e armazenamento, é necessário dedicar tempo e energia para que a iniciativa siga viva.
No entanto, há braços nas roças, nas florestas e nas cidades que não poupam esforços para manter um conjunto variado de feiras agroecológicas em pleno funcionamento. Mesmo nas quebradas, onde a grana é curta e a infraestrutura é rala, existem iniciativas que nos mostram que é possível nadar contra a corrente. Uma delas ocorre, mensalmente, no Jardim Monte Kemel, comunidade da região da Vila Sônia, na capital paulista. Trata-se da Feira de produtos da RAMA, a Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras do Vale do Ribeira, que reúne mulheres de fibra, uma parte delas de origem indígena e quilombola, numa trama de afeto e partilha.
Para que as delícias da rede cheguem a preços acessíveis à população – sem deixar de gerar rendimentos justos a quem as produziu -, há um conjunto de organizações de apoio, articuladas num coletivo chamado EsparRama, que, assim como ocorre com o cultivo na roça, retratado encantadoramente no filme Vida em Mutirão, também conta com um intenso protagonismo feminino. Pois RAMA e EsparRama encontraram acolhida no Espaço Cultural Monte Kemel, um lugar que abriga outras ações de convívio e formação na comunidade, ativo há mais de duas décadas.
Foi justamente esse local de cidadania e solidariedade que acolheu o Projeto Agroecologia no Prato, uma iniciativa de movimentos sociais que atuam no município de São Paulo, apoiada por uma emenda parlamentar ao orçamento da Bancada Feminista do PSOL. Através do SEFRAS, Ação Social Franciscana, proponente oficial junto à Secretaria Municipal do Desenvolvimento Econômico e Trabalho, e de organizações como o MUDA, Movimento Urbano de Agroecologia, o Coletivo Banquetaço e a Campanha Gente é Pra Brilhar, Não para Morrer de Fome, o projeto teve início em janeiro deste ano e acaba de concluir o atual ciclo de atividades.
Celebrar o ciclo que se completa e cultivar novos ciclos
Durante estes 5 meses, dois cursos formativos foram ministrados: Formação em Agroecologia e Formação em Cozinha, Cultura Alimentar e Ecogastronomia. As turmas foram formadas através de um chamamento e de uma seleção cuidadosa, dando preferência para pessoas negras, LGBTQIA+, integrantes de movimentos sociais e moradoras da região. Com cerca de 20 participantes em cada curso, as aulas uniram teoria e prática em um processo de construção conjunta do caminho percorrido. Dentro dele, a cozinha do local foi melhor equipada e a horta do quintal ganhou novos canteiros, árvores nativas e espécies medicinais, além de uma nova composteira, apta para receber o que sobra da cozinhança e gerar nutrientes para enriquecer o solo.
Se, como acabamos de mencionar, o ciclo alimentar contou com um cuidado atencioso para se completar, rompendo com a linearidade imposta pelo modelo econômico do capital (baseado na fragmentação, no desperdício e na geração de resíduos sólidos poluentes), outro ciclo também foi alvo desse cuidar. Estamos falando do próprio ciclo de vivências que, além das aulas, também contou com atividades abertas à comunidade, como quatro mutirões de cultivo e um cinedebate, composto por curtas inspiradores e pela presença de mulheres guerreiras que constroem o dia a dia de movimentos do campo e da cidade.
Para finalizar esse ciclo em clima de celebração, como ele merece, o Agroecologia no Prato realizou, junto com a Esparrama, uma edição especial da feirinha agroecológica que ocorre todo mês no Monte Kemel. Foi a primeira FESTEIRA, uma mistura de festa com feira, repleta de alimentos biodiversos da agricultura familiar, comidinhas preparadas pelas duas turmas dos cursos, atividades na horta e uma programação cultural para espantar a monotonia, com teatro de mamulengos, maracatu, sarau de poesia, inauguração de biblioteca e arteiragens para todos os gostos e idades.
Como não poderia deixar de ocorrer, uma roda de conversa com representantes de movimentos sociais, como a própria RAMA e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), trouxe a esfera política do projeto para brilhar no palco. A partir da pergunta “como podemos ter Agroecologia no Prato do povo?”, foi possível refletir, compartilhar experiências e nutrir o ativismo de quem luta por comida de verdade, justiça social e equilíbrio ambiental, para que novos ciclos possam ser tecidos e tenhamos mais forças para dar os passos necessários rumo ao que acreditamos.
Um entrelaçamento bonito dessa iniciativa em escala local com a Feira Nacional da Reforma Agrária, marco político no cenário do país, se deu com a participação das alunas e alunos dos cursos nas atividades que esta última promoveu, inclusive nos bastidores. É que algumas pessoas do curso de cozinha foram voluntárias na cozinhança dos quitutes oferecidos pela Culinária da Terra, convivendo com militantes do MST na jornada. Quer estágio político-culinário mais expressivo do que esse?
Que venham muitas outras feiras agroecológicas por esse mundão afora. Sejam pequeninas, com uma mesinha de hortaliças e poucas sacolas cheias, sejam feironas de impacto nacional, com centenas de bancas pulsantes de alimentos e uma multidão de gente partilhando tesouros comestíveis de tradições camponesas do norte ao sul do país, esses espaços de resistência são fundamentais na jornada pelo fim da fome, pela democratização do acesso à terra, pela regeneração da natureza e pela plenitude da vida.
E aí, freguesia, bora provar o sabor incomparável da soberania alimentar?
Susana Prizendt é arquiteta urbanista, integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Movimento Urbano de Agroecologia (MUDA)
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