Como superar o Brasil da comida cara e envenenada
Liberação de novos venenos e recursos públicos para o “agro” bate recorde. E corporações transnacionais de insumos agrícolas quase não pagam impostos no país. Enfrentar esta lógica predatória, que se reflete na alta dos preços dos alimentos, passa pela agroecologia
Publicado 20/02/2025 às 18:09
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Responda uma pergunta simples, se você pudesse escolher, compraria comida barata, mas cheia de agrotóxicos, ou comida cara, mas livre de venenos? Infelizmente, talvez nenhuma das duas opções seja viável para boa parte da população do país. Sim – embora a inflação de janeiro de 2025 tenha desacelerado fortemente -, podemos caminhar para uma única possibilidade, caso sigamos no curso agroalimentar insustentável atual: ter nos mercados e feiras somente alimentos com preços “salgados” e que vêm “temperados” com resíduos de substâncias tóxicas variadas. É preciso entender o que está nos levando a esse cenário, para darmos um cavalo de pau e seguirmos em outra direção, enquanto há tempo.
Somos o celeiro do mundo, anunciam as propagandas que o setor agroalimentar espalha aos quatro ventos. Um gigante na produção de comida, que alimenta não apenas a nossa gente brasileira, mas as gentes de muitos lugares do globo terrestre. Se esse delírio ruralista fosse verdade, como se explicaria o fato de que ainda tem tantas pessoas com fome no país? E a carestia dos produtos? Mesmo sabendo que as contradições são uma constante no sistema capitalista, como já dizia nosso bom e velho Marx, fica difícil engolir esse discurso fantasioso frente a uma realidade em que 8,93 milhões de habitantes do país estão em insegurança alimentar severa e 60,3 milhões não têm acesso pleno e regular aos alimentos necessários a uma vida digna.
É a caquética, mas imperativa, receita colonialista: os territórios do Sul global são considerados fontes baratas de matéria-prima básica, como produtos agrícolas e minérios, para o livre abastecimento dos países considerados desenvolvidos. E, se chegarem a tanto, dado o nível de miséria em vários deles, formam um mercado consumidor para os produtos altamente industrializados produzidos por estes últimos. Nem é preciso dizer que a diferença de valor entre o tipo de produto que se vende e o tipo de produto que se compra é absolutamente gritante e ajuda a perpetuar a existência de um profundo abismo econômico entre as chamadas potências mundiais e a ralé planetária.
Nesse processo que se arrasta há séculos, houve uma inegável divisão no setor agroalimentar entre o que é considerado commodity e o que continua sendo a boa e velha comida. A primeira categoria é composta de produtos agrícolas que são internacionalmente padronizados e negociados nas bolsas do mundo afora, podendo ou não ser destinados à cadeia alimentar, como é o caso dos grãos que vão virar ração para a criação de animais e óleo para a indústria alimentícia (mas também da cana-de-açúcar, que pode virar etanol, do eucalipto, que virará papel, do algodão, que abastece a indústria têxtil e até da própria soja, que vem sendo muito usada para biodiesel, o que explica parte do aumento do preço do óleo feito com a leguminosa). Uma vez fora de seu país de origem, é provável que tais commodities, mesmo se destinadas ao setor comestível, jamais façam parte do prato da população que o habita. Resumindo: a carne dos animais alimentados com a ração feita com soja brasileira vai ficar na barriga dos gringos.
Já aquilo que continua sendo chamado de comida e que forma milenarmente a base da alimentação dos povos do mundo – como as hortaliças, as raízes, os frutos, as sementes e grãos tradicionais -, não tem um lugar tão valorizado no cenário do financismo mundial e, portanto, pode ser preterido na hora de decidir o que será produzido pelo setor agrícola de cada região. Ou seja, se é mais vantajoso comercialmente para quem está nesse mercado produzir soja e milho transgênicos para alimentar porcos e frangos a dezenas de milhares de quilômetros de distância, ao invés de produzir feijão para a população local, não há nenhuma dúvida sobre qual será a escolha feita. Só pra ilustrar, a área de cultivo de soja passou, em apenas 10 anos, de 30 milhões de hectares para quase 48 milhões de hectares. E, se depender da sanha do Agribusiness, vai saltar mais outros 30, chegando a 78 milhões – quando temos, segundo a PAM (Produção Agrícola Municipal) de 2023, uma área cultivada total de 96 milhões de hectares para todas as culturas do país!
Quem regula quem
Se o que chamamos de mercado age conforme os interesses financeiros de uma elite e se nega a olhar para as consequências concretas de suas escolhas na vida do povão, a quem caberia o papel de contrabalançar esse (d)efeito do sistema econômico globalizado? Podemos dizer que a existência dos Estados nacionais se daria justamente para limitar minimamente os mecanismos que alimentam as desigualdades dentro de seus territórios, além de tomar medidas para proteger suas economias de serem devoradas pelo processo de dominação financeira de uns (poucos) países sobre os demais.
Aos Estados caberia, portanto, a função de reguladores, apoiando-se em suas leis nacionais e em tratados internacionais, para criar políticas públicas que garantam os direitos fundamentais de suas populações. No caso do DHANA, o Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas, essas políticas têm como base a promoção de um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional capaz de assegurar que todas as pessoas tenham acesso a alimentos em quantidade e qualidade para que possam se desenvolver física, mental, emocional, cultural e socialmente. É algo que vai muito além de estar livre da fome.
No entanto, em uma sociedade em que o controle do que se produz está nas mãos de grandes corporações transnacionais, que não respeitam fronteiras, que financiam bancadas parlamentares, que compram anúncios nos principais veículos de mídia, que mantém robustas redes de advocacia e que, se necessário, usam a força das armas para que seus interesses não sejam contrariados, o poder regulador dos governos nacionais vem sendo sistematicamente violado – e quem deveria ditar as regras na área econômica passa a seguir as regras impostas pela elite internacional.
Voltando ao Brasil, como nosso país pode traduzir na prática o que consta no SISAN, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, se é refém de uma política econômica cerceada por algo como o Arcabouço Fiscal? Se é pautado por uma agenda que é elaborada pelos representantes de setores do mercado especulativo e é posta em prática (muitas vezes à base de chantagens, boicotes e ameaças) por bancadas, como a ruralista, uma das maiores no Congresso Nacional? Se ele destina a imensa maioria do crédito subsidiado para a produção de commodities e não de comida?
Mesmo reconhecendo as inegáveis diferenças entre a atual administração do país e a anterior, sendo o desgoverno Bolsonaro responsável por chegarmos ao número de 700 mil mortes durante a crise da pandemia e por submeter dezenas de milhões de famílias brasileiras à fome – entre outras ações imperdoáveis -, temos que dizer que, apesar das atuais políticas redistributivas e da redução do desemprego, que diminuíram em 14,7 milhões a quantidade de pessoas famintas em 2023, não estamos virando a página da insegurança alimentar e nutricional, como a atual crise de carestia e a contaminação de água e alimentos deixa nítido.
Sim, há muitos fatores envolvidos no imbróglio dos preços altos da comida. As dificuldades produtivas decorrentes da emergência climática; a resistência aos agrotóxicos desenvolvida por insetos, fungos e plantas que são consideradas pragas; o esgotamento dos solos de muitas regiões… são condições reais, é inegável. Mas são consequências diretas da insustentabilidade do modelo produtivo baseado em extensas monoculturas mecanizadas – e não surgiram inesperadamente, já que os sinais de que a situação está se agravando vêm sendo dados pela natureza há décadas.
Neste momento, também estão pipocando denúncias sobre toneladas de alimentos produzidos pela agricultura brasileira sendo jogadas no lixo. Trata-se de uma prática conhecida, que tem o objetivo de influenciar o valor do produto em questão, ao diminuir sua oferta no mercado. Pode ter ocorrido uma ação orquestrada, desde os últimos meses de 2024, como forma de atingir o atual governo e dar força para a narrativa de que, com ele, a vida está pior. Ainda é necessário investigar o que realmente aconteceu porque vídeos em redes sociais, por mais convincentes que pareçam, podem ser manipulados. Mas, dado o nível de golpismo que já testemunhamos nos últimos tempos, é bem possível que essa atitude criminosa de jogar comida fora tenha mesmo ocorrido de modo combinado, com fins nitidamente políticos, e dado uma mãozinha para elevar os preços de alguns hortifrutis.
Junte-se aí o que se passa na economia e na geopolítica internacional, como as guerras, as ameaças trumpistas e a subida do dólar frente ao real no ano passado – lembrando que as empresas produtoras de maquinário, fertilizantes e venenos agrícolas são estrangeiras, ditam preços de modo dolarizado e canalizam parte substancial da renda no campo -, e temos mais elementos para decifrar essa charada. Para arrematar esse pequeno levantamento, não podemos esquecer de mencionar que a CONAB, empresa pública que controla os estoques reguladores no Brasil, foi duramente atacada no governo anterior, que não apenas zerou as reservas estocadas, como desmontou boa parte da estrutura do órgão.
Mesmo assim, a disparada de preços e a dificuldade da população em adquirir comida em um país fértil como o nosso é algo que não deveria fazer muito sentido, não é? Vejamos…
Pagando para nos envenenar
Quando um setor da economia recebe crédito farto, isenção de impostos, afrouxamento de regras para pagar seus trabalhadores e trabalhadoras e outras benesses, você espera que o que ele forneça fique mais caro ou mais barato? Pois é… o chamado AGRO brasileiro teve acesso ao maior Plano Safra da história do país, mais de 400 bilhões de reais; não precisa pagar muitos dos impostos relacionados a insumos, como fertilizantes industriais e agrotóxicos, ou à exportação, graças à famigerada Lei Kandir; não arca com uma quantidade de encargos de empregos minimamente condizente com sua estrutura econômica, e, por mais incrível que isso possa parecer para pessoas comuns, como eu e você, retribui ao povo (que o carrega nas costas) com produtos caros e nada saudáveis. Eu disse “nada” saudáveis, sim.
Infelizmente, na esteira do recorde do crédito público para as grandes empresas do agronegócio, nossa nação bateu um outro recorde em 2024. Superando a marca do desgoverno Bolsonaro – que liberou 652 novos agrotóxicos no ano de 2022 -, o atual governo autorizou, nos 12 meses do ano passado, 663 dessas substâncias venenosas. Para nós, movimentos sociais agroecológicos, que lutamos arduamente para botar um fim na gestão agrofascista do clã miliciano, é um duro golpe. A conclusão é óbvia: as forças ruralistas seguem subjugando o executivo do país e estamos pagando para ser vítimas de um processo de envenenamento massivo.
Essa constatação é alicerçada pelo fato de que os agrotóxicos liberados no último ano não são menos danosos do que os que já estavam autorizados a circular em nosso território até então. A imensa maioria deles é composta pelos velhos ingredientes que já se provaram prejudiciais à saúde humana e à natureza. E, entre os ínfimos 2,3% das novidades, dois produtos, o Orandis e o Miravis, foram considerados altamente tóxicos pela Anvisa e podem até levar a óbito, se inalados, segundo quem os produz.
Vale lembrar que o PARA, Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, revelou a presença de venenos em 26% dos alimentos analisados em 2023, sendo 31 tipos diferentes no abacaxi e 25 tipos diferentes no arroz, muitos deles proibidos em países do norte global. É um coquetel tóxico que tem ligação direta não apenas com a explosão de diversas doenças no país (principalmente entre os povos campesinos, que estão mais expostos aos aviões pulverizadores), mas também com o aumento do preço da comida, já que, como eu havia mencionado, esses produtos são fabricados por empresas de fora do Brasil e precificados em dólar, moeda que subiu bastante em relação ao real nos últimos meses de 2024.
No plano internacional, a FAO, órgão das Nações Unidas relacionado à alimentação, já reconheceu, através de um levantamento feito em 2021, que nosso país é o campeão do veneno e usa uma quantidade de agrotóxicos que é maior do que a usada por Estados Unidos e China juntos – inclusive se considerarmos o valor por hectare ou o valor per capita. E estamos falando de dois países continentais que são grandes parceiros comerciais do Brasil, dos quais o nosso modelo produtivo atual é dependente.
Por falar na China, a notícia de que ela suspendeu a importação de soja produzida por grandes empresas no nosso território repercutiu com força há alguns dias e parece sugerir que o mercado internacional não está disposto a comprar produtos com doses tão gigantescas de venenos. O irônico dessa suspensão é que, no ano passado, a empresa do setor veneneiro que recebeu maior isenção fiscal por parte do governo brasileiro – R$1,77 bilhão – foi a Syngenta, controlada desde 2017 pela ChemChina, uma estatal chinesa. E é justamente a empresa que fabrica os dois novos produtos altamente tóxicos liberados pelo governo entre os 663 da leva de 2024, o Orandis e o Miravis. Dá-lhe contradição por parte do Comunismo de Mercado (ou Capitalismo de Estado) adotado pela superpotência asiática.
Basf, Bayer e outras gigantes do setor também estão na lista das corporações que mamaram (e mamam) muito nessas tetas brasileiras, com descontos de centenas de milhões de reais no que deveriam nos pagar em impostos em 2024. E vendem aqui os produtos que não são permitidos em seus próprios países, deixando explícito que, para elas, somos um povo de categoria inferior à dos povos europeus, e podemos engolir as substâncias comprovadamente tóxicas que eles tão sabiamente se recusam.
Terra para quem produz comida
Será que estamos caminhando para virar “picadinho” no prato dos grandes representantes do mercado venenoso? O fato da CONAB ter retomado a formação de estoques de alimentos da Agricultura Familiar em seus galpões é algo a ser celebrado e incentivado, para que eles se ampliem com mais celeridade. Afinal, frente às crescentes tragédias socioambientais ou aos ataques especulativos do mercado, é preciso ter reservas para que a comida chegue a quem passe por dificuldades de acessá-la. E a notícia de que o governo federal diminuiu a porcentagem máxima de ultraprocessados permitida na merenda das escolas (que passou de 20% para 15% e vai chegar a 10% no ano que vem) também traz um pouco de luz ao cenário, já que significa que agricultores e agricultoras familiares vão fornecer mais comida nutritiva para o PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que atende 40 milhões de estudantes e serve, anualmente, cerca de 10 bilhões de refeições. Menos ultraprocessados nessas refeições significa menos uso de soja, milho e cana-de-açúcar na indústria alimentícia para produzir esses produtos e menos plantio dessas commodities no campo.
Mas, apesar de importantes, ações como essas não são suficientes para reverter a situação crítica na Segurança Alimentar e Nutricional brasileira. E o motivo é simples: a nutrição começa na terra, como nos ensinou nossa mestra Ana Primavesi, que nos deixou há 5 anos, no começo de 2020. Somente um solo sadio permite a existência de plantas sadias e de alimentos saudáveis para as pessoas. E, no modelo Agro-Ogro atual, é impossível ter solos com saúde. Eles dependem da existência da biodiversidade, o que está intimamente relacionado com a presença dos povos dos campos, das águas e das florestas nos territórios produtivos. Nada a ver com os desertos verdes despovoados sobrevoados por drones e aviões que se espalham pelos nossos biomas.
Em uma de suas declarações relacionadas ao combate à alta dos alimentos, o presidente Lula disse que “muito dinheiro na mão de poucos significa empobrecimento e que pouco dinheiro na mão de muitos significa mais qualidade de vida para todas as pessoas”. O raciocínio parece coerente (e é o que se espera de um líder que se coloca como defensor do povo trabalhador), mas tropeça em um fato inegável: ninguém come dinheiro. Como mencionado aqui, a comida saudável só é viável quando a terra está saudável. Por sua vez, é impossível a terra ter saúde nas propriedades do latifúndio monocultor. É necessário acabar com tamanha concentração fundiária.
Refazendo a fala do presidente, o que precisa ser dito é que muita terra na mão de poucos significa fome e destruição ambiental, significa alimento caro e envenenado. E que pouca terra na mão de muitos (e de muitas) significa a possibilidade de ter solos férteis, cultivos biodiversos, circuitos locais e solidários de comercialização; significa comida de verdade com valores acessíveis na mesa do povo. Somente com a realização de uma ampla Reforma Agrária Popular de base agroecológica é que poderemos escapar dos cartéis de fazendeiros, das corporações de venenos, de transporte rodoviário movido a petróleo ou biodiesel, das redes varejistas e indústrias de ultraprocessados – responsáveis pelos preços nas alturas e pelos desequilíbrios sociais e ambientais que nos assolam.
Recentemente, em reunião de sua Coordenação Nacional em Belém (PA), o MST, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, divulgou uma carta em que afirma: “nos reunimos em território amazônico para traçar os rumos de nossa organização para o próximo período na luta pela Reforma Agrária Popular, com acesso à terra, justiça social e ambiental. Aqui, viemos beber da história e da memória da resistência indígena, negra, camponesa e popular.” A referência aos povos tradicionais demonstra que, sem o respeito aos seus modos de vida e seus saberes ligados umbilicalmente aos territórios que habitam, é impossível termos um futuro que não seja o abismo.
Ao invés de torrar 400 bilhões (ou 500 bilhões, como se espera para o período de 2024/2025) para financiar o OGRO e suas redes tóxicas, no que eu chamo de “Plano Sofra”, pois só leva ao sofrimento da população, e de dar isenções fiscais bilionárias para as empresas transnacionais de agrovenenos, envolvidas até o último fio de cabelo nas tramas contra a democracia no mundo todo, como mostram as investigações sobre os atos golpistas de 2023 (e até de 2016, ano em que as curvas de liberação de agrotóxicos passaram a subir intensamente), o governo federal deveria usar os recursos financeiros do país para estruturar e ampliar a rede de assentamentos campesinos, a demarcação de terras indígenas e o reconhecimento de comunidades de povos tradicionais.
Sem essas medidas essenciais, não será possível conquistar nossa Soberania Alimentar, base para a garantia da Segurança Alimentar e Nutricional e condição irrefutável para que a comida boa, livre de substâncias tóxicas, mas cheia de sabores e de significados culturais, possa voltar a nutrir corpos, almas e territórios, independentemente do preço do dólar ou do petróleo, elementos que não podem e nunca poderão ser digeridos pelas barrigas humanas.
Confluência de lutas
Voltando à questão inicial do texto, hoje ainda é possível ter acesso à comida sem veneno de duas formas: há uma elite que paga altos preços por alimentos orgânicos vendidos nos supermercados granfinos, e existem alguns circuitos de comercialização solidária a partir do que é cultivado de forma agroecológica por famílias agricultoras. Enquanto a gritaria contra a carestia na mídia comercial ecoava, o Armazém do Campo, rede de lojas do MST, vendia milho orgânico a um real, em sua loja no centro de São Paulo, no último final de semana. E ainda era possível comer a espiga cozida na hora, pagando apenas dois reais!
O contraste com o OGRO é gritante: enquanto a agricultura campesina oferece um alimento nutritivo, orgânico e não transgênico a um valor que pode caber nos bolsos mais apertados, os tais que se dizem pop esvaziam caminhões de seus produtos – subsidiados com o dinheiro da população – em estradas desertas em que ninguém poderá acessá-los.
É nítido que, se não lutarmos por uma inflexão no modelo produtivo nos próximos tempos, as chances de termos que comprar comida cara e envenenada, como eu alertei, vão aumentar muito. Como sabemos, nada na natureza pode ser isolado e os aviões que despejam agrotóxicos seguem sobrevoando uma área cada vez maior do nosso território. Solo, água, plantas, animais e nossos corpos vêm sendo contaminados crescentemente. Como cultivar uma roça orgânica ou agroecológica, se não houver água livre de venenos para regá-la? Se os ventos que passam sobre os latifúndios de soja trazem chuvas tóxicas? Se as abelhas e outros polinizadores estão sendo dizimados por substâncias já banidas nos países das empresas que as fabricam?
É por isso que só há um caminho: transição agroecológica já. Para que ela se concretize, é necessário que o PRONARA, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, saia velozmente do papel. Ele foi incluído no lançamento do PLANAPO, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, após muita mobilização social, no final do ano passado. Mas, como o recorde de venenos liberados e o ataque à Lei Zé Maria do Tomé – que proíbe a pulverização aérea no Ceará – revelam, o lobby das empresas do setor vem se sobrepondo aos direitos da população. Então, é necessário enfrentá-los. Urge chacoalhar as ruas e as redes!
Só que, diferentemente dos hipócritas de plantão, que agora usam bonés pedindo a volta do fascista inelegível (em cujo governo houve a formação da famosa fila do osso, tamanho o nível de desespero das pessoas famintas), nossos movimentos agroecológicos estão comprometidos com a luta pela vida. Temos plena consciência de que é uma batalha hercúlea e constante (como o próprio nome Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida já diz), pois o poder do 0,01% do globo é da casa dos trilhões e essa elite da elite parece mais disposta a implodir de vez a existência humana do que abrir mão de sua sangrenta concentração de riquezas.
O terror tocado pelos representantes do mercado para desestabilizar o governo Lula, como se eles estivessem sofrendo altos prejuízos com a conduta feita pelo ministro Fernando Haddad – enquanto na realidade muitos deles batiam recordes históricos bilionários de lucro, como é o caso dos bancos Itaú e Pactual -, revela bem que são capazes não apenas de nos fazer voltar para a fila do osso, mas de tirar até os ossos (e o tutano que há neles e ainda pode nos dar alguns nutrientes) de nossos pratos. A choradeira da citricultura paulista para manter benesses, em um momento em que já está nadando de braçada com o preço da laranja nas alturas, traduz perfeitamente a falta de limite de quem vê a agricultura apenas como negócio.
E a mídia corporativa também não nega fogo para atacar qualquer ação que se oponha a lógica excludente que o capetalismo impõe. Não apenas anuncia as falácias do OGRO, como se fossem verdades, em seus canais, como distorce acontecimentos, dados, falas… para acentuar o desgaste do governo Lula em relação ao preço da comida e desestabilizar até os programas sociais em curso. Recentemente, tem atacado as cozinhas solidárias com acusações enviesadas, que desconsideram o esforço que uma dedicada rede de pessoas faz para seguir alimentando a população vulnerabilizada, apesar da carestia. São 2.370 cozinhas mapeadas, atuando no país inteiro, algumas com anos e anos de existência.
O ataque desleal motivou o CONSEA, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a se manifestar, conclamando a sociedade a exercer o controle social no monitoramento do Programa Federal – criado no atual governo para apoiar uma tecnologia social que nasceu nas comunidades -, para fortalecê-lo, dada a sua importância para o exercício da cidadania e o combate à fome. Vale, também, ler o artigo e assistir o vídeo, que o portal GGN produziu, para entender o tamanho da sacanagem midiática. Se você quiser contribuir para que a injustiça não destrua uma política pública tão arduamente conquistada, pode assinar a petição que o MTST, Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto, está circulando.
E, em relação às expectativas de pôr um freio na alta dos preços, com a possível safra recorde neste ano, cuja previsão é de 322,6 milhões de toneladas (um aumento de 10% em relação a 2024), vale lembrar dos anos de pandemônio, quando tivemos um duplo recorde no país: da colheita agrícola e da fome, já que exportar é o caminho mais fácil para encher os bolsos de grana. Além disso, colher cada vez mais soja transgênica envenenada pode ser lucrativo para essa máfia agrofascista, mas é péssimo sob todos os pontos de vista para a sociedade e o planeta.
Temos que ter em mente que, mesmo se os preços dos alimentos convencionais realmente baixarem nas gôndolas dos mercados e se tornarem financeiramente acessíveis para o povão, eles ainda serão muito, muito caros para o país, já que seu modo de produção, abarrotado de agrotóxicos, traz custos incalculáveis para a saúde pública e o meio ambiente… custos que são pagos com o dinheiro da população, através do poder público. E pior: faz com que paguemos com nossas próprias vidas, já que as doenças geradas por esse modelo agrícola podem ser fatais e as tragédias climáticas que ele desencadeia vêm adquirindo um nível de intensidade gravíssimo. Resumindo, os prejuízos são públicos, mas os lucros são sempre privados e, para quem os obtém, eles precisam ser cada vez maiores, não importando as consequências sociais e ambientais.
Frente à tamanha voracidade por dinheiro e poder, o que nos cabe é pressionar os poderes executivo, legislativo e judiciário para que pautem nossas propostas; é fazer, em todos os espaços que pudermos abrir, a denúncia do sistema que nos vampiriza; é espalhar e regar as sementes de um outro modo de viver. Por isso, seguiremos mobilizando as gentes das cidades (que é a maioria de nossa população) para que dêem as mãos às gentes dos campos, das águas e das florestas nessa jornada contra a fome, o veneno e a destruição de nossa Mãe Terra, a fonte real e única de tudo o que nos alimenta.