Como superar a monotonia agroalimentar?
Safras cada vez maiores não são a saída. Três apostas podem ser eficazes para construir outro sistema alimentar – saudável e sustentável: introduzir a diversidade agrícola, combater a pecuária predatória e estimular dietas variadas e sem ultraprocessados
Publicado 21/05/2025 às 17:28

O espetacular aumento da riqueza derivado da grande aceleração que marca a segunda metade do século 20 teve na drástica redução global da fome uma de suas expressões mais emblemáticas. Em 1960, uma em cada três pessoas passava fome, no mundo. Hoje, apesar da vergonhosa cifra de 800 milhões de pessoas que não ingerem o suficiente para satisfazer suas necessidades calóricas básicas, isso representa menos de um décimo da população mundial.
O Brasil, após ter saído do Mapa Global da Fome em 2014, voltou a ele durante a gestão do fanatismo fundamentalista, situação que começou a ser rapidamente revertida quando ciência e democracia voltaram a nortear as ações governamentais. Apesar do recente aumento no preço dos alimentos e de seus impactos tanto macroeconômicos como na vida das famílias, a democracia brasileira tem instrumentos múltiplos de políticas públicas para combater a fome.
Fome Zero, o segundo dos dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, tem que ser, no entanto, ponto de partida e não de chegada. A Revolução Verde conseguiu aumentar as safras, as produções animais e a duração dos produtos nas prateleiras, graças a um conjunto de técnicas que se mostram cada vez menos compatíveis com o agravamento dos eventos climáticos extremos. O sistema agroalimentar contemporâneo responde por nada menos que um terço das emissões globais de gases de efeito estufa. Ele é também o mais importante vetor de erosão da biodiversidade e está na raiz de algumas das formas mais graves de poluição, tanto pelo uso em larga escala de antibióticos, como por sua dependência de agrotóxicos e fertilizantes minerais em quantidades que vão muito além dos limites planetários.
A ingestão de calorias e de produtos animais no mundo é muito superior às necessidades metabólicas das pessoas. Não é o aumento das safras que permitirá zerar a fome nas regiões onde ela se concentra e sim a estabilidade política, a conquista da democracia e de meios para o acesso a uma alimentação saudável e diversificada.
O Grupo Consultivo da Pesquisa Agronômica Internacional (a organização que esteve na origem da Revolução Verde desde o final dos anos 1960 e que reúne as mais importantes organizações de pesquisa agropecuária do mundo, entre elas a Embrapa) tem trabalhos mostrando que, embora a humanidade conheça mais de sete mil produtos comestíveis (dos quais 400 são cultiváveis), apenas seis deles oferecem 75% das calorias vindas de plantas: trigo, milho, soja, arroz, batata e cana-de-açúcar. E isso num contexto em que a presença de ultraprocessados é, no mundo todo, cada vez maior. Nos Estados Unidos eles respondem por cerca de dois terços das calorias ingeridas e são os principais determinantes da epidemia de obesidade que atinge nada menos que 40% de sua população.
O maior desafio contemporâneo não está, portanto, na obtenção de safras cada vez mais abundantes daquilo que o sistema agroalimentar oferece hoje. Claro que a alimentação de oito e talvez de dez milhões de pessoas não tem como prescindir da oferta massiva de grãos. Soja, milho e trigo continuarão a ter papel importantíssimo tanto no consumo humano como na alimentação animal. Mas as mudanças climáticas e a destruição em que, até aqui, a expansão destas culturas se apoia tem que se transformar. Três são os desafios centrais.
O primeiro consiste em encontrar métodos que permitam introduzir biodiversidade no interior das culturas agrícolas para recuperar a vida dos solos, reverter a destruição em larga escala de fungos, insetos e plantas indispensáveis à própria oferta global de grãos. O Brasil é globalmente pioneiro na pesquisa e na implementação de bioinsumos que abrem promissor caminho para reduzir a dependência de agroquímicos cada vez mais caros, poluentes e que se apoiam em tecnologias fechadas das quais os produtores agropecuários se tornam dependentes. Bioinsumos já são uma realidade em muitas fazendas brasileiras e têm contribuído para reduzir custos de produção e, ao mesmo tempo, recuperar serviços ecossistêmicos ameaçados pelas técnicas hoje predominantes.
O segundo desafio consiste em reduzir drasticamente o vínculo entre produção animal (sobretudo de aves e suínos) e o uso de antibióticos. A monotonia genética das raças animais tem que dar lugar a maior diversidade. É preciso combater o mito da escassez iminente de proteínas e buscar métodos produtivos que respeitem a dignidade animal, que melhorem a higiene nas criações e que permitam reduzir ao mínimo o uso de antibióticos. Nada menos que 70% dos antibióticos que a humanidade produz destina-se a criações animais concentracionárias, e o Brasil é o segundo consumidor mundial deste produto que, ao se espalhar pelo meio ambiente favorece a resistência aos antimicrobianos e se converte em um dos vetores da crescente ineficiência dos antibióticos frente às chamadas superbactérias.
O terceiro desafio, correlativo aos dois outros, é aumentar a diversidade da dieta. Isso passa tanto pela redução no consumo de produtos animais, como pela quase completa eliminação dos ultraprocessados dos padrões alimentares atuais, com aumento da presença de plantas. Valorizar as culturas alimentares e culinárias locais é igualmente decisivo, pela valorização dos produtos naturais e biodiversos e pelos aspectos culturais e conviviais relativos ao hábito de produzir e consumir alimentos.
Essa abordagem marca a produção científica da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela inspirou a proposta de um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) voltado à Erradicação da Fome e à Segurança Alimentar, recentemente aprovado pelo CNPq. INCTs são centros de excelência voltados a pesquisas que resultem em propostas para enfrentar os grandes problemas do desenvolvimento brasileiro. Tendo em vista as ameaças envolvidas nas atuais formas de produção agropecuária, de transformação industrial e de consumo alimentar esse INCT terá por objetivo contribuir para “Superar a tríplice monotonia do sistema agroalimentar”.
O INCT “Superar a tríplice monotonia do sistema agroalimentar”, tem sua coordenação no Instituto de Estudos Avançados da USP e reúne outras sete organizações de pesquisa: a Cátedra Josué de Castro e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, ambos da Faculdade de Saúde Pública da USP, o Instituto de Pesquisas da Amazônia, o Woodwell Institute de Massachussets, do EUA, a Embrapa do Acre, o Instituto Federal Catarinense e o Instituto Fome Zero. Os INCTs, além de formar profissionais altamente qualificados em suas áreas de atuação, estabelecem parcerias e convênios com organizações brasileiras e internacionais, colocando a ciência no coração da resolução dos mais importantes desafios do desenvolvimento sustentável.
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