Como a China mantém-se distante da crise

Produção deve crescer 5% este ano — iguais a toda a economia da Holanda ou Argentina. Investimentos públicos, emergência de nova indústria e transição ecológica estão por trás do resultado — e permitiram, de quebra, aumento real de 170% nos salários, em uma década

Estação ferroviária chinesa. Por rejeitar os “ajustes fiscais” e apostar no investimento público, país construiu rede de trens de alta velocidade com 45 mil km — maior que todas as outras do mundo, somadas
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Por Carlos Vladimir

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O texto a seguir integra a edição nº 6 (julho de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser lida ou baixada aqui.

Primeiro o “conjuntural”. A China teve um crescimento no primeiro trimestre acima das expectativas mais otimistas. O país cresceu 5,3% em comparação com as previsões médias de 4,8%. Bom frisar que existe a consolidação de um processo de mudança na força motriz da economia, que começou exatamente no segundo semestre de 2018, quando o crédito direcionado para a construção era cerca de 25% do PIB, enquanto o crédito direcionado para a indústria era de 5%. Desde então, os papéis se inverteram completamente, com o crédito direcionado para a indústria alcançando 33,2% no primeiro trimestre de 2023, enquanto a construção ficou apenas em 4,8%, tendo quase chegado a zero até o final do primeiro trimestre de 2021. Em outras palavras, a tendência é a consolidação de um processo, uma decisão política tomada há seis anos, e não apenas uma tendência em si. Um processo é diferente de uma tendência.

Por outro lado, ao analisarmos o crescimento econômico da China por setores em 2023 e no primeiro trimestre de 2024, percebemos que as cadeias produtivas relacionadas à transição energética estão liderando esse processo. Na verdade, três novas indústrias evocam otimismo: veículos elétricos, baterias e painéis solares. Os dados falam por si: o investimento na geração de energia solar, novas unidades de produção e geração de energia solar aumentaram em 61%, 180% e 45%, respectivamente em 2023, em comparação com 2022. Os veículos elétricos viram investimentos em novas unidades de produção, infraestrutura de carregamento e produção de veículos aumentarem em 35%, 33% e 30%, respectivamente, em comparação com 2022. Os investimentos em baterias aumentaram em 116%, e as baterias conectadas à rede aumentaram em 364%. Um necessário parêntese. A grande novidade é que oficialmente a China está liderando a atual revolução técnico-científica no mundo, colocando o socialismo em uma posição inimaginável no início da década de 1990 e suas previsões de “fim da história”.

Mas também não podemos esquecer que existem muitas fontes de crescimento para a economia chinesa. Por exemplo, em 2024, há previsão de gerar 12 milhões de empregos urbanos no país, e a taxa de urbanização atingiu 66,16%, o que significa que o contínuo processo de urbanização é outra fronteira de crescimento. O mesmo vale para a infraestrutura. A China alcançou 45 mil quilômetros de linhas ferroviárias de alta velocidade em 2023, com previsão de alcançar 75 mil até 2035. No geral, liderada pelas cadeias produtivas relacionadas à transição energética, a China possui uma variedade significativa de fontes de crescimento econômico, longe de serem negligenciáveis.

A China sozinha é responsável por 35% da produção industrial global. Em 2023, o país também foi responsável por 30% do crescimento econômico global. Desde 2012, o país tem mantido essa participação média. Prevê-se que nos próximos cinco anos, sua parcela será maior do que a de todos os países do G-7 em termos de crescimento do PIB global. Mais um necessário parêntese: é superficial analisar a China como mais um típico Estado desenvolvimentista de tipo asiático. Trata-se de um “desenvolvimento liderado por Partido Comunista” [Communist Party-led development], nucleado por 96 conglomerados empresariais estatais, 144 instituições públicas voltadas ao financiamento de logo prazo, crescente controle do Partido Comunista sobre as decisões de investimento sejam públicas ou privadas e cada vez mais elevada participação dos trabalhadores nos boards das empresas conforme definido na última versão da “company law” lançada em dezembro de 2023. Ou simplesmente uma versão high tech da chamada “economia de projetamento” que Ignacio Rangel via aparecer na então União Soviética.

Sobre a qualidade do crescimento chinês. Essa qualidade pode ser percebida no aumento da produtividade do trabalho no país. Dados apresentados pela Conference Board dizem que em 2023 o aumento foi de 4,6% na China, enquanto nos Estados Unidos foi negativa em -0,7%, e na eurozona também negativa em -0,2%. Por outro lado, não acreditamos que haja um jogo de soma zero entre investimento e consumo, como é percebido em grande parte das análises sobre o “baixo nível de consumo” na economia chinesa. Dados fornecidos pela Organização Internacional do Trabalho apontam um aumento de cerca de 170% nos salários médios no país nos últimos dez anos. Não é surpreendente que entre 2008 e 2021, a taxa de crescimento do consumo na China tenha sido de 8,0%, enquanto nos Estados Unidos foi de 1,7% e na eurozona 0,6%. Ou seja, a queda na taxa de investimento da China em favor de um crescimento dito “impulsionado pelo consumo” causaria danos sem precedentes à economia do país e, consequentemente, ao mundo. Reiteramos, não há um jogo de soma zero entre investimento e consumo. Pelo contrário, o comportamento da taxa de investimento determina o nível de consumo de um país.

Quanto ao papel da China na economia mundial, como exposto, o país é atualmente responsável por 30% do crescimento global. E há um estudo muito interessante do FMI que mostra que o desenvolvimento da China tem um efeito de derramamento sobre o resto do mundo. Cada 1% de crescimento econômico da China aumenta a produção das outras economias em uma média de 0,3 pontos percentuais. Isso significa que a China desempenha um papel estabilizador no mundo. E esse papel tende a aumentar. A erradicação da extrema pobreza é altamente funcional para aumentar a demanda tanto para a China quanto para o mundo. O Boston Consulting Group (BCG) prevê que, de 2022 a 2030, as classes média e alta da China aumentarão em mais de 80 milhões, representando 40% da população total do país.

Com os dados apresentados, surge outra questão a partir dos recentes desenvolvimentos em políticas protecionistas: é possível o desacoplamento da economia chinesa? A resposta é negativa. Por um lado, há uma relação direta entre o crescimento econômico chinês e a abertura de oportunidades para o Sul Global como um todo. A China alcançou uma fase de seu desenvolvimento onde sua continuidade depende da “exportação de sua prosperidade”. O crescimento chinês depende do desenvolvimento de outros mercados e vice-versa. Essa “exportação de prosperidade” é evidente, por exemplo, nas centenas de investimentos produtivos chineses espalhados pelo mundo, principalmente em infraestrutura através da Iniciativa Cinturão e Rota. Por outro lado, há o evidente movimento de comércio e investimento dos países do Norte Global para a China.

Em resumo, políticas de desacoplamento e/ou derisking são impraticáveis dada a dependência mútua entre a China e o resto do mundo. Também não é razoável impor tarifas de importação sobre produtos chineses por várias razões. A principal delas, que diz respeito à economia global como um todo, é que o custo de reverter o processo de globalização produtiva e comercial é muito alto. Afinal, não haverá vencedores ou perdedores nesta guerra comercial e tecnológica.

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