China: Notas sobre um sistema singular
As empresas privadas prosperam – sob direção do PC. O Estado emite moeda para o bem comum. Não há bancos privados relevantes, nem rentismo. Este país tirou 800 milhões da pobreza, é a fábrica do mundo e lidera a transformação tecnológica
Publicado 08/05/2025 às 20:22 - Atualizado 08/05/2025 às 22:36

Assista a resenha deste texto feita por Antonio Martins no programa Outra Manhã
Por Ladislau Dowbor, em Meer| Tradução: Antonio Martins1
Em resumo, a ‘prosperidade comum’ tem como objetivo essencial
equilibrar eficiência e equidade, crescimento e distribuição,
para que os benefícios do desenvolvimento econômico
possam ser distribuídos de forma mais uniforme
por toda a sociedade.
(O novo caminho da China para a prosperidade)2
Todos temos opiniões sobre a China, mas muito poucos entendem como as coisas funcionam no país. Em parte, isso se deve ao jornalismo extremamente pobre e à desinformação geral. Um fator importante é o fato de que o chamado Ocidente, e especialmente os EUA, estarem muito interessados em desinformação. A maioria dos comentários é altamente ideológica. Mas compreender a China é crucial, e nenhuma simplificação funciona para um país tão gigante e complexo. Não sou especialista na China, mas estive lá várias vezes e acompanho as principais publicações do China Daily, CGTN e outras fontes chinesas. Temos muito a aprender sobre como a China organiza seu processo decisório. As pessoas adoram rótulos – isso permite que classifiquem a China sem estudá-la, reduzindo-a a “capitalismo de Estado”, “socialismo de mercado” e coisas do tipo.
Um fato óbvio e importante é que o sistema funciona. Em Paridade de Poder de Compra (PPC), ou seja, em volume real de produção, o PIB chinês em 2022 atingiu US 30 trilhões, contra US$ 25 trilhões dos EUA, conforme mostram os dados do FMI abaixo.3 Em valor real de produção, a China ultrapassou os EUA em 2017 e continua avançando.4 Esse fato tem enorme importância, pois tem guiado a política internacional dos EUA, como vimos nas reações de Trump e Biden. Um novo equilíbrio mundial está surgindo – um realinhamento que busca isolar a China e seus produtos por parte dos EUA, enquanto Pequim se abre por meio de seu poderio econômico e tecnológico, trazendo novas oportunidades aos países emergentes.

Mas o que nos interessa mais aqui é entender como este país, emergindo do feudalismo e de outros dramas em 1949, conseguiu uma transformação tão impressionante em um período tão curto. Um ponto essencial é que a orientação geral do desenvolvimento econômico que a China seguiu – e continua seguindo – é praticamente oposta à tendência adotada pelo Ocidente: em vez de enriquecer ainda mais os ricos, alegando que isso permitiria que o progresso “gotejasse” (trickle down) para os pobres, todo o esforço chinês, desde o início, foi orientado para resolver os problemas básicos da parcela mais pobre da população, a grande maioria. Os esforços foram direcionados para onde eram mais necessários.
Na última fase destes processo, de 2013 a 2020, a China embarcou num programa iniciado pelo presidente Xi Jinping, para tirar da pobreza extrema as 100 milhões de pessoas restantes. Elas somaram-se às 700 milhões que deixaram esta condição desde o início do programa de reforma e abertura, em 1978. De lá até hoje, a China tornou-se responsável por mais de 70% na redução da pobreza em todo o mundo5 . Estes números foram amplamente confirmados, e nos oferecem uma transformação-chave sobre como pensar a Economia.
No Brasil, durante a ditadura de 1964-1985 apoiada pelos EUA, o lema era: “Deixem o bolo crescer primeiro, depois o dividiremos”. Em outras palavras, justificava-se políticas que aprofundavam a desigualdade. Atualmente, o Brasil permanece entre os 10 países mais desiguais do mundo. O que os números chineses demonstram é que, ao contrário da narrativa de que construir fortunas para os ricos acabará beneficiando também os pobres, não há contradição entre inclusão econômica e crescimento econômico. Na verdade, isso equivale a um desenvolvimento inclusivo. Essa não é uma originalidade chinesa — é o que funciona, e precisamos disso para o mundo. Os dados sobre a estagnação econômica da metade mais pobre da população americana são explícitos. As estatísticas globais sobre desigualdade são ainda mais dramáticas. Não se trata aqui de ideologia, mas de senso comum: investir no que funciona, priorizando as necessidades básicas das populações.
Um instrumento fundamental para a China promover, simultaneamente, uma política econômica generosa voltada para o povo e investir em infraestrutura e indústria básica é seu controle sobre o sistema financeiro. Nas últimas décadas, o Ocidente promoveu fortunas financeiras às custas do crescimento produtivo. “O aumento das taxas de juros geralmente tem impactos positivos para as instituições financeiras, pois amplia as margens de lucro dos bancos e melhora os retornos dos investimentos para seguradoras e gestores de fundos. No entanto, também desacelera a economia como um todo, reduz o dinheiro disponível para famílias e empresas e diminui a demanda por crédito, que se torna mais caro.” O mesmo relatório destaca que “a China deve expandir o uso piloto de sua moeda digital do banco central (CBDC), chamada e-yuan, e pode implementá-la em todo o país.” 6
O ponto crucial é que a China tem a capacidade de direcionar recursos financeiros para investimentos produtivos e consumo de massa com juros baixos — mais uma vez, o oposto do que a financeirização no Ocidente está alcançando. Direcionar dinheiro para investimentos produtivos eleva o nível de produção, e juros baixos permitem a expansão da demanda sem pressão inflacionária. Segundo The Economist, “a China já gerencia tanto a oferta de moeda quanto as taxas de juros com setores específicos em mente. Desde 2015, por exemplo, criou centenas de bilhões de yuans para a construção de moradias populares. Recentemente, instruiu os bancos a reduzirem as taxas de juros para pequenas empresas7. Tipicamente, um chinês paga 4,6% de juros em um empréstimo. Descontando a inflação de 2%, isso significa uma taxa real de 2,6%. No Brasil, enfrentamos juros de 51% para famílias e 21% para empresas, com uma inflação de 4% — um dreno financeiro improdutivo escandaloso, uma usura descarada com narrativas fantasiosas.
Como parte da política financeira de bom senso da China, o comércio externo está tendendo a evitar os custos da intermediação em dólar. Conforme relatado pela rede de mídia chinesa CGTN, os dois países “realizarão suas volumosas transações comerciais e financeiras diretamente, trocando yuan por reais e vice-versa, em vez de usar o dólar como intermediário”. O veículo destacou que a China é o maior parceiro comercial do Brasil, e em 2022 os dois países realizaram mais de US$ 150,5 bilhões em comércio bilateral8. Essa tendência atualmente envolve diversos países. O dólar ainda é dominante, mas como tem sido usado para gerar dependência de dívida em vez de investimento produtivo, cada vez mais países estão recorrendo a trocas bilaterais em suas próprias moedas. Na China, o dinheiro está vinculado à economia real, como os bancos costumavam fazer no Ocidente.
Outra característica fundamental do processo decisório chinês é a forma como evitou tanto o fundamentalismo de mercado quanto as simplificações estatizantes. Deng Hsiaoping, o pai das reformas, explicou de modo simples o pragmatismo chinês: quando você atravessa um rio, é preciso sentir as pedras com os pés. É importante sublinhar que o país não responde a uma “situação”, mas a um cenário que se transforma rapidamente – dos pontos de vista tecnológico, político, econômico e cultura. Um exemplo: a China precisa reduzir sua dependência do carvão e está fazendo a lição de casa. Esta transitando para o solar, mas ao invés de construir uma grande empresa estatal para produzir painéis fotovoltaicos, organiza uma grande empesa estatal para produzir maquinário básico e equipamentos para fabricar os painéis.
Dessa forma, qualquer empresa privada em qualquer região do país pode obter um empréstimo barato no banco, comprar os equipamentos e produzir painéis conforme a demanda local. De certa forma, o Estado fornece o impulso inicial para o setor privado se engajar em tendências ambientalmente importantes. É uma mistura público-privada inteligente e pragmática, com o Estado realizando os investimentos estratégicos mais pesados.
Isso também implica uma atitude diferente nas relações com as corporações transnacionais. A China de fato abriu sua economia, mas não de forma subserviente. Empresas interessadas precisam negociar quantos chineses participarão dos conselhos administrativos e quanto de transferência tecnológica será garantida, definindo interesses equilibrados dentro das orientações gerais da economia chinesa. A política dominante em muitos países, de “atrair” investimentos reduzindo ou eliminando impostos e restrições ambientais, é evitada. E funciona.
Outra característica essencial do “Novo Manual da China” (New China Playbook)9, como Keyu Jin o denomina, é a descentralização. A China abandonou rapidamente o modelo de gestão da União Soviética, baseado em centralização e ministérios gigantescos, optando por um modelo radicalmente descentralizado. Isso significa que o governo central em Pequim mantém força política para traçar as diretrizes estruturais – como políticas ambientais, a opção pelo sistema de trens de alta velocidade, a priorização da erradicação da pobreza, as diretrizes para gerenciamento do maciço êxodo rural e, atualmente, as escolhas em ciência e tecnologia. No entanto, trata-se de um governo central enxuto, pois a implementação dessas diretrizes é rigorosamente descentralizada.
Keyu Jin a chama de “economia dos prefeitos”, enquanto Arthur Kroeber, autor de A Economia da China10, considera que o país é ainda mais descentralizado que a Suécia – onde 70% dos recursos públicos são transferidos diretamente para as autoridades locais. No Brasil, esse percentual gira em torno de 15%, obrigando prefeitos a peregrinar até Brasília em busca de recursos. Resultado: nem a gestão municipal funciona (por falta de recursos), nem o governo central (atolado em micronegociações eleitoreiras). É uma ineficiência sistêmica. Os EUA, por sua vez, já usufruíram de ágil capacidade decisória local (incluindo bancos comunitários), antes que megacorporações assumissem o controle. A China, essencialmente, é gerida no nível local, onde população, empresas e gestores – familiarizados com desafios e potenciais específicos – realizam os ajustes necessários.
O bem-estar econômico das famílias não depende apenas do acesso a dinheiro – para pagar aluguel e despesas diárias –, mas também do acesso a bens e serviços públicos de consumo. Precisamos de segurança, mas não “compramos” policiais, assim como não adquirimos hospitais, escolas, parques em nossos bairros, rios limpos e tantos outros serviços que representam cerca de um terço de nossa renda – um “salário indireto” por meio do acesso universal a serviços públicos gratuitos. Educação, saúde, espaços de lazer e similares são fornecidos pela administração pública, o que os torna muito mais baratos e eficientes do que políticas sociais privatizadas, centradas na maximização de retornos financeiros. Isso aumenta radicalmente a eficiência geral da administração chinesa11.
Novamente, não se trata de uma questão de ideologia, mas de senso comum básico de gestão. Algumas coisas – como produzir carros, pão ou tomates – podem funcionar perfeitamente como empresas privadas, mas educação, saúde, segurança ou grandes infraestruturas são mais eficientes nas mãos do setor público. Nossas economias são complexas demais para depender de simplificações ideológicas. As questões ambientais, em particular, dependem fortemente do controle público. A abordagem pragmática chinesa, baseada no que funciona melhor em cada forma de organização, não apenas tornou a China muito mais eficiente, mas também nos traz muitas lições sobre como nos organizarmos.
A ciência e a tecnologia tornaram-se centrais no contexto da revolução digital mundial, e a China não apenas definiu o progresso nessa área como uma prioridade nacional, mas também criou um ambiente colaborativo baseado em pesados investimentos públicos e parcerias com o setor privado. Iniciativas como os Recursos Abertos para Educação (ORE) garantem que inovações em qualquer universidade ou centro de pesquisa sejam compartilhadas em toda a rede, evitando duplicação de esforços e permitindo que todas as instituições trabalhem na vanguarda da inovação, em um ambiente sinérgico de colaboração e acesso livre. A China copiou – como todos os outros –, mas hoje é ela quem está sendo copiada. A abordagem colaborativa de acesso aberto em ciência e tecnologia é certamente muito mais eficaz do que nossa selva de patentes e direitos autorais.
Deixe-me acrescentar que essas diretrizes eficientes estão fundamentadas em um processo decisório político baseado em formação técnica e acumulação de experiência em todos os níveis. Os chineses comentam com ironia sobre como, nos EUA, Trump foi eleito sem a mínima ideia sobre como a administração pública funciona e, essencialmente, reduziu os impostos pagos pelo mundo corporativo que apoiou sua campanha, passando a fazer declarações agressivas sobre política externa. A ampla experiência de Xi Jinping no nível municipal tornou-o familiar aos desafios diários enfrentados por famílias simples, e aos poucos o conduziu a sua posição atual, à medida em que ele compreendia de modo mais profundo o conjunto das responsabilidades e trabalhadores da administração pública.
Igualmente importante — ou até mais — os administradores chineses compreendem claramente que não estão respondendo a uma situação estática, mas a um movimento acelerado de transformação. Trata-se de uma abordagem pragmática, porém não simplista. Quando Keyu Jin menciona “além do socialismo e do capitalismo”, ela se refere menos a um novo sistema e mais à flexibilidade de adaptação diante de desafios em constante evolução.
Notas:
1Publicado originalmente em inglês
2 Jiannan Guo, Lei Zhang, Jincai He, China’s new road to prosperity, 13 January 2022.
3 IMF, World Economic Outlook Database, 2022.
4Dean Baker, Real-World Economics Review Blog, China is bigger, get over it, 2023.
5Wenhua Zongheng, Socialism is a Historical Process Vol.1 N.2, 2023.
6Economic Intelligence Unit, EIU, Finance Outlook, 2023.
7The Economist, 6 May 2021.
8Ben Norton, Countries world-wide are dropping the U.S. dollar, 6 April 2023.
9Keyu Jin, The New China Playbook: beyond socialism and capitalism, Viking, 2023.
10Arthur Kroeber, China’s Economy, Oxford University Press, 2016.
11Truman Du, Charted: Healthcare Spending and Life Expectancy, by Country, Visual Capitalist, 13 November 2023.
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