Abolição: Os quilombolas têm motivos para comemorar?

Só em 1998 que a população quilombola foi reconhecida como sujeitos de direitos. Mas acessá-los está condicionado à titulação de seus territórios – uma utopia distante para muitos, embargada por violência e ameaças às lideranças que lutam por liberdade e reparação

Foto: Weverson Paulino/Agência Brasil
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A Lei Áurea, promulgada no dia 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel, representante da já decadente Monarquia portuguesa, foi, segundo nos conta a História oficial, a lei responsável pela abolição da escravidão no Brasil, que durou mais de três séculos. Por muitos anos essa data foi celebrada como um importante marco e símbolo da liberdade e da resistência do povo afrobrasileiro. Contudo, não seria uma mulher branca, da elite republicana, a responsável pela libertação do povo negro, uma vez que este não foi um ato benevolente e reparatório, mas sim uma ação inevitável, fruto de intensas lutas, resistências e divergências ideológicas.

Este texto tem por objetivo fazer uma breve reflexão acerca desta data, problematizando questões que contribuíram para a consolidação do Abolição, além de contextualizá-la na atualidade, sob o recorte das comunidades quilombolas. Para tanto, partimos da seguinte questão: “Afinal, temos o que comemorar no 13 de maio?

Para chegarmos a uma possível resposta, ancorada no tempo presente, faz-se necessário um retorno ao passado, período em que os corpos negros foram objetificados, reduzidos à posse de outrem, forjados para serem submissos à diversas opressões e apagamentos a eles imputados. Ao ser colocado na condição de objeto, o negro escravizado teve sua humanidade anulada, o que gera graves reflexos na atualidade, sobretudo no que diz respeito ao acesso a direitos. Tal opressão se manifesta tanto em seu aspecto material – baseada na violência e na exploração de sua força de trabalho – quanto em seu aspecto cultural – mediante apagamento de sua identidade e de suas contribuições na formação do nosso país (Memmi, 2007).

Este aspecto é central para compreendermos de que modo as relações sociais foram construídas em nosso país, tendo, numa pretensa diferenciação racial, o elemento distintivo entre brancos e negros, relação que nos interessa discutir. A construção social da cor foi sendo moldada por séculos, tendo na relação escravista seu ponto de partida, em que, segundo Clovis Moura (1983): “o colonizador luso estabeleceu, no Brasil, um mecanismo naturalizador da consciência étnica do negro através de um comportamento autoritário e racista” (p. 30).

A distinção entre brancos e negros no Brasil ganhou desdobramentos que superam as relações escravistas, abrangendo aspectos políticos, econômico e socioculturais, que ainda coloca determinado grupo às margens, mas que ganha distintas nuances a partir da chegada da Família Real ao Brasil, em 1808. Com a pretensão de construir a imagem de uma “nação brasileira”, rompendo com a ideia de um Brasil colonizado, o então rei Dom João VI, deu início à formação de espaços de produção de memória e de conhecimento científico.

Sob a incumbência dos “homens da sciencia”, que não necessariamente possuíam formação nas áreas das Ciências Humanas e Sociais, pesquisadores buscaram diversas teorias para desenvolver suas teses acerca da composição sociocultural do Brasil. Contudo, o que se consolidou no país foi uma ciência baseada em modelos evolucionistas e social-darwinistas, e categorizações biologizantes de raças humanas. As chamadas “teorias cientificistas” encontraram um terreno fértil no Brasil e foi um marco para se consolidar diferenças e preconceitos baseadas na cor e na raça, o que faz de nós um país reconhecidamente racista, sob diversas vertentes.

A partir de 1870, um discurso evolucionista e determinista ganhou força, a fim de explicar as diferenças internas e o dito “atraso brasileiro” frente ao mundo ocidental, justificado sob uma lógica de inferioridade, sobretudo da raça negra, que, naquele momento, era maioria no país. Teorias, como o evolucionismo social, o positivismo, o social-darwinismo e o naturalismo, emergiam como formas de explicar o curioso caso brasileiro, lideradas por representantes das elites tradicionais brasileiras, muitos de origem colonialista, o que deixa claro que:

No caso, o pensamento racial europeu adotado no Brasil não parece fruto da sorte. Introduzido de forma crítica e seletiva, transforma-se em instrumento conservador e mesmo autoritário na definição de uma identidade nacional e no respaldo a hierarquias sociais já bastante cristalizadas (Schwarcz, 2020, p. 55).

Nesse contexto, o mestiço emerge como elemento de análise, tanto de um ponto de vista otimista – mediante um projeto de embranquecimento – quanto de um ponto de vista pessimista – sendo fator de atraso e de uma população “incivilizada”. Ora, se a raça negra estava diretamente associada ao atraso,
à animalidade – ideia legitimada pela “ciência” e comungada pelo senso comum – clarear a nação passou a ser uma necessidade, um projeto político. E é nesse quadro sociopolítico, em que a Abolição passa a ser entendida como meio de desenvolvimento da emergente nação brasileira, sendo, portanto, inevitável.

Aqui, três aspectos centrais passam a subsidiar a emergência pela Abolição, as quais apresentarei de forma resumida:

  • a transição de uma concepção de “objeto”, de “animal”, para a pessoa humana, entendida como uma passagem da diferença para a desigualdade (Barros, 2014, p. 164), que é de suma relevância ao se considerar o negro como sujeito de direito;
  • a intensificação da luta dos negros escravizados pela Abolição, manifestas por insurgências e resistências, que se intensificaram e ganharam apoio de importantes expoentes, dentre eles políticos, membros da aristocracia e intelectuais;
  • projeto político de branqueamento da população brasileira enquanto saída para solucionar o problema da miscigenação, tida como fator estruturante do atraso brasileiro.

Em suma, o movimento abolicionista ganhou proporção e defensores, ao ponto de se tornar inevitável, não sendo fruto da benesse de nenhum aristocrata ou personagem influente da época. O que a história não convencionou contar é que esse processo foi fruto da resistência do povo negro, que desde os primórdios do Tráfico Transatlântico, negou a submissão a que foi submetido.

Ora, em um país marcado pelo mito de uma pretensa democracia racial, ou seja, de um entendimento de que “todos somos iguais” e de que “as oportunidades são para todos”, o reconhecimento das desigualdades orientadas pela raça se torna um desafio. No caso das comunidades quilombolas, por exemplo, após a Abolição, estes grupos só vão aparecer na jurisdição brasileira em 1998 – 100 anos depois – por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que passa a reconhecê-los como sujeitos de direitos. E de lá pra cá, milhares de comunidades veem se autodeclarando quilombolas, passando a assumir uma identidade até então negada e estigmatizada, sob uma afirmação identitária, com finalidade política de promoção de direitos. E quais direitos?

Falar de acesso a direitos quando o assunto são comunidades quilombolas é desafiador, já que, para esses grupos etnicamente diferenciados, toda a sua existência e reprodução socioeconômica e cultural se fazem no e com o território em que estão inseridos. Em um país de tradição latifundiária, em que terra é sinônimo de riqueza e poder, como produzir justiça social e reparação para grupos negros de origem escrava?

No primeiro Censo quilombola da história do país (2022), foram recenseadas 1.330.186 pessoas quilombolas residentes em 1.700 municípios. Contudo, esses números não refletem o acesso a direitos, uma vez que 90,02% da população quilombola possuem acesso precário ao saneamento; 66,71% não possui água encanada até a residência; 24,77% não tinham banheiro de uso exclusivo do domicílio (UNFPA Brasil, 2025)1. Já a Saúde quilombola tem ganhado espaço recentemente, por meio da Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola – PNASQ, que está sendo elaborada pelo Ministério da Saúde.

Em relação à saúde quilombola, apesar de sua relevância e do significativo avanço que a PNASQ propõe, sem o acesso ao território, não há saúde para a população quilombola, uma vez que são indissociáveis, como discuti em minha tese de doutorado2. Além de fornecer todos os elementos necessários à sua reprodução socioeconômica, o território em que a comunidade está inserida possui uma relevância simbólica, subjetiva, onde se produzem saberes e formas de relacionar que promovem o bem-viver desses grupos.

Contudo, a regularização fundiária de territórios quilombolas é um processo moroso, que depende de orçamento e interesse político, estando muitos deles em áreas de intensas disputas com grandes empreendimentos minerários, em áreas de criação de parques, de implementação de monoculturas, dentre outros. Apesar de o artigo presente na Constituição definir que: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, o único direito constitucionalmente garantido, ainda é pouco efetivo. Em Minas Gerais, por exemplo, existem 392 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares (enquanto o movimento estima mais de 2.000). Destas, 18 territórios possuem processo em tramitação junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Essa lacuna demonstra que o principal direito garantido aos quilombolas, não tem sido efetivamente garantido.

Mas uma coisa podemos afirmar: sem território, não há quilombo. E aqui, retomamos à pergunta inicial: Têm os quilombos, motivos para comemorar? O que a Abolição garantiu às comunidades? Liberdade? Inclusão? Justiça social? Reparação?

Ao longo de minha atuação junto a diversos territórios quilombolas pelo estado de Minas Gerais, por meio de ativismo junto a entidades do Terceiro Setor e do movimento quilombola instituído, foi possível perceber que ainda falta muito para que os direitos básicos cheguem a essas comunidades. Questões como falta de infraestrutura, acesso à água, à serviços de saúde, trabalho e renda, segurança alimentar e tantos outros direitos básicos, ainda parecem estar distantes de muitas comunidades. Por mais que a Abolição possa soar como um avanço, ainda há um longo caminho a percorrer, para que esses grupos tenham acesso à dignidade e ao bem-viver.

Ainda pouco visibilizados e pautados na agenda política das esferas federal, estadual e municipal, a herança colonial parece perseguir esses povos, marcados pelo estigma da cor da pele, pelos racismos… Racismo este que se manifesta de diversas formas cotidianas, desde o não acesso a um serviço básico, até as ameaças sofridas por muitas lideranças que lutam pela permanência em seus territórios. Tomemos as palavras do mestre quilombola Nego Bispo:

O que podemos perceber é que essas comunidades continuam sendo atacadas pelos colonizadores que se utilizam de armas com poder de destruição ainda mais sofisticado, numa correlação de forças perversamente desigual. Só que hoje, os colonizadores, ao invés de se denominarem Império Ultramarino, denominam a sua organização como Estado Democrático de Direito e não apenas queimam, mas também inundam, implodem, trituram, soterram, reviram com suas máquinas de terraplanagem tudo aquilo que é fundamental para nossas comunidades, ou seja, os nosso territórios e todos os símbolos e significações dos nossos modos de vida (Santos, 2015, p.76).

Contudo, mais estudos e mais engajamento social se faz necessário para mudar este quadro. Para aqueles que trabalharam por séculos nas terras colonizadas pelos brancos, o direito ao território ainda parece ser uma distante utopia a ser perseguida.

Celebremos o 13 de Maio tornando a luta quilombola visível e legítima!

Referências

MEMMI. Alberti. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 190 p.

MOURA, Clovis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Revista Afro-Ásia, nº 14, 1983.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo da raça: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília, 2015.

SAQUET, Marcos Aurelio. Abordagens e concepções de território e territorialidade. Revista Geográfica de América Central Número Especial EGAL, 2011- Costa Rica II Semestre 2011, pp. 1-16

SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. E. ed. – Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

1 Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/unfpa-e-ibge-lan%C3%A7am-publica%C3%A7%C3%A3o-%E2%80%9Co-brasil-quilombola%E2%80%9D-em-encontro-apoiado-pela-funda%C3%A7%C3%A3o

2 Tese de doutorado intitulada: “Território, água e saúde: (in)confluências no processo de reterritorialização da comunidade quilombola, pesqueira e vazanteira de Croatá”, realizada no programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto René Rachou (Fiocruz Minas).

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