A selvageria de Israel atinge a Cisjordânia

Mais de mil palestinos assassinados no território pelo exército e milícias de Tel Aviv, em dois anos. Expulsões. Invasão de terras. Um criminologista norte-americano denuncia a violência que a mídia não vê e propõe caminhos para uma possível campanha internacional de boicote a Israel

2023: Um bando de milicianos judeus fortemente armado investe contra população de Hawara, na Palestina ocupada por Israel. Em outubro de 2025, violência chegou ao patamar máximo
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Arie Perlinger em entrevista a Glauco Faria

Neste sábado (20/12), forças israelenses assassinaram dois palestinos na província de Jenin, na Cisjordânia ocupada. Imagens gravadas por uma câmera de segurança mostram os soldados atirando à queima-roupa contra o adolescente Rayyan Abdel Qader, de 16 anos, após invadirem a cidade de Qabatiya. Testemunhas afirmam ainda que as tropas de Israel abriram fogo contra ele e impediram que equipes de emergência chegassem até o jovem, deixando-o sangrar até a morte. Depois, retiveram o seu corpo.

A outra vítima foi Ahmad Zayoud, de 22 anos, morto em Silat al-Harithiya, a oeste de Jenin. Na mesma cidade, apenas uma semana antes, Mohammad Eyad Mohammad Abahra, de 16 anos, foi assassinado a tiros por forças israelenses. O episódio também foi gravado por câmeras de segurança, que flagraram o adolescente saindo de um beco e caminhando pela via lateral em direção à rua principal. Quando estava a cerca de dois metros da via, soldados saíram de trás de um muro e o alvejaram.

“Soldados israelenses continuam a atacar crianças com força letal sem serem responsabilizados, porque os líderes mundiais permitem que ajam sem consequências”, disse, na ocasião, o diretor do programa de responsabilização do Defense for Children International (DCIP), Ayed Abu Eqtaish. As duas mortes elevam o número de vítimas dos ataques israelenses na Cisjordânia ocupada para 1.101, incluindo 229 crianças, desde 7 de outubro de 2023, quando começou o genocídio em Gaza. Os ataques de colonos israelenses também aumentaram, com a omissão e/ou cumplicidade das forças israelenses e, no domingo (21), o governo de Israel aprovou a construção de 19 novos assentamentos na Cisjordânia ocupada, em uma evidente violação do direito internacional.

Espiral de violência

Em artigo publicado no The Conversation, o professor da Escola de Criminologia e Estudos de Justiça da Universidade de Massachusetts Lowell, nos Estados Unidos, Arie Perliger, alertava para a escalada de violência na Cisjordânia, destacando que outubro de 2025 foi o pior mês em termos de episódios violentos por parte dos colonos israelenses desde que começaram a ser registrados os incidentes em 2006.

“Como pesquisador que estuda grupos extremistas israelenses há mais de duas décadas, defendo que a escalada dramática da violência dos colonos na Cisjordânia revela uma profunda transformação nas instituições estatais de Israel. Em vez de atuarem como supostos agentes neutros da lei e da ordem, as forças armadas, a polícia israelense e o aparato governamental em geral têm se alinhado cada vez mais com — e, por vezes, se tornado diretamente cúmplices de — ações violentas de colonos contra palestinos”, pontua Perliger.

Para ele, a relutância institucional em lidar com a violência dos colonos não é meramente uma falha na aplicação da lei por parte do Estado de Israel, mas “resultado deliberado de profundas mudanças sociais, políticas e culturais que remodelaram a sociedade israelense desde pelo menos meados da década de 1990”.

O pesquisador concedeu uma entrevista ao Outras Palavras, por e-mail, sobre a atual situação e as perspectivas futuras para a região e para os palestinos que estão na Cisjordânia. Confira abaixo.

Arie Perliguer: “A escalada dramática da violência dos colonos na Cisjordânia revela uma profunda transformação nas instituições estatais de Israel”

Você argumenta que a transformação das instituições israelenses, que culminou na atual cumplicidade com a violência dos colonos, não é um fenômeno recente, mas sim o resultado de mudanças sociais, políticas e culturais deliberadas desde meados da década de 1990. Como a sociedade civil israelense fora do movimento dos colonos respondeu a essa reorientação fundamental do poder estatal?

De maneiras complexas e amplamente fragmentadas. O padrão mais marcante é o da persistência organizacional em meio à marginalização política. Organizações como a Peace Now, fundada em 1978, continuam acompanhando a expansão dos assentamentos por meio do programa Settlement Watch, reconhecido internacionalmente por sua credibilidade. Da mesma forma, a Yesh Din passou 20 anos monitorando a violência dos colonos, apresentando petições ao Supremo Tribunal e emitindo atualizações regulares à comunidade internacional sobre falhas na aplicação da lei. Organizações de direitos humanos como a B’Tselem e a Associação pelos Direitos Civis em Israel (ACRI) continuam seu trabalho de defesa jurídica, apresentando petições contra demolições de casas e transferências forçadas.

No entanto, essa sociedade civil tem enfrentado severas restrições. Em Israel, vários mecanismos legais são usados para restringir a liberdade de expressão e os protestos, e uma campanha organizada está em andamento para limitar a revisão judicial dessas medidas. O Knesset tem repetidamente promovido legislação destinada a restringir o financiamento e as atividades das ONGs — o que a Yesh Din caracterizou como esforços para “amordaçar a sociedade civil israelense”.

Dada a profunda incorporação da violência dos colonos na lógica operacional das instituições estatais, quais você considera os cenários mais prováveis para o futuro próximo na Cisjordânia? Em sua avaliação, existe alguma força política ou social interna em Israel capaz de reverter essa tendência de capitulação institucional e restaurar um nível mínimo de neutralidade e Estado de Direito?

Com base nas trajetórias atuais, vários cenários parecem mais prováveis:

Anexação acelerada de fato: os colonos viram explicitamente a guerra na Faixa de Gaza como uma oportunidade para acelerar a sua agenda, forçando mais de 1000 palestinos de pelo menos 18 comunidades a partir de 7 de outubro de 2023. Só em 2024, as autoridades israelenses declararam 24 258 dunams [medida que corresponde a aproximadamente 1.000 metros quadrados] como “terras do Estado” — aproximadamente metade de todas as terras declaradas como terras do Estado desde os Acordos de Oslo. Esse padrão de deslocamento impulsionado pela violência provavelmente continuará sem uma intervenção significativa.

Enraizamento estrutural: Ao colocar a administração civil sob controle político, em vez de comando militar independente, o governo enfraqueceu um dos poucos mecanismos capazes de restringir a expansão dos colonos. A transferência da governança da Cisjordânia para ministros com ideologias explicitamente pró-colonos sugere que essas mudanças institucionais persistirão independentemente de incidentes específicos.

Isolamento internacional sem mudança interna: Embora a Austrália, o Canadá, a União Europeia, os EUA e o Reino Unido tenham imposto sanções aos colonos violentos, essas medidas específicas não alteraram fundamentalmente a trajetória.

Em relação às forças internas capazes de reverter a situação, a avaliação deve ser sóbria. Embora muitas organizações da sociedade civil tenham demonstrado resiliência diante de crises e pressões, elas muitas vezes têm lutado por relevância e influência política. O espaço para o ativismo pela paz já estava diminuindo antes de 7 de outubro, mas os ataques violentos aumentaram ainda mais a pressão. Muitos ativistas pela paz estavam entre as vítimas de 7 de outubro, e mesmo a partir da esquerda israelense agora surgem apelos por retaliação militar por motivos de segurança.

O problema estrutural é que a transformação foi tão profunda que a reversão exigiria não apenas uma mudança de governo, mas uma reorganização fundamental do aparato de segurança, a incorporação do movimento dos colonos nas estruturas estatais e realidades demográficas e políticas nas quais os colonos representam um bloco eleitoral significativo.

Com a crescente aproximação entre colonos civis armados e membros das forças de segurança, quais são os impactos sociais e psicológicos sobre os palestinos na Cisjordânia, especialmente considerando a percepção de que o Estado e os colonos agora operam como uma única força de opressão?

O esmaecimento das fronteiras entre colonos e forças de segurança produziu o que os profissionais de saúde mental descrevem como traumatização contínua — distinta do TEPT [Transtorno de Estresse Pós-Traumático] convencional porque a ameaça nunca termina. Os residentes descrevem incidentes quase diários: espancamentos, gado solto para pisotear terras agrícolas, estradas bloqueadas, casas demolidas e pressão psicológica constante.

A indistinguibilidade entre a violência dos colonos e a violência do Estado cria uma dinâmica psicológica particularmente devastadora. Os colonos frequentemente usam uniformes oficiais e portam armas fornecidas pelo exército durante ataques a palestinos. Infraestruturas de segurança, como delegacias de polícia, muitas vezes estão localizadas fisicamente dentro dos assentamentos, promovendo relações estreitas entre as forças da lei e as comunidades de colonos. Isso significa que os palestinos vivenciam o Estado e os colonos como um aparato unificado de ameaça.

Embora reconheça a ocupação, a Suprema Corte de Israel frequentemente mantém políticas que a consolidam ainda mais. Você interpreta esse comportamento como uma captura ideológica do Judiciário ou como uma adaptação gradual a um “estado de exceção permanente” nos territórios ocupados?

Eu diria que a resposta não é nem uma captura puramente ideológica nem uma simples adaptação, mas sim algo mais parecido com uma acomodação institucional a um “regime jurídico de ocupação” que o próprio Tribunal ajudou a construir.

Quando se trata da violação dos direitos dos palestinos, o Supremo Tribunal de Israel não realiza uma revisão judicial eficaz nem controla as forças de segurança. Está disposto a sancionar quase qualquer injustiça com base em interpretações jurídicas irracionais e ignora sistematicamente o contexto: que os recorrentes provêm de uma população sem representação, governada por um regime militar rigoroso há mais de 50 anos.

A abordagem histórica do Tribunal tem sido a de criar marcos jurídicos que reconhecem nominalmente o direito internacional humanitário, ao mesmo tempo em que sistematicamente se submete a razões de segurança. O Supremo Tribunal determinou que o Estado tem o direito de defender a si mesmo e a seus cidadãos, mesmo em territórios definidos como “sob ocupação beligerante” de acordo com a Quarta Convenção de Genebra; no entanto, determinou que o Estado não pode construir uma cerca para anexar terras. Isso cria um padrão em que princípios abstratos são afirmados, enquanto violações concretas são permitidas.

Em vez de uma captura ideológica no sentido de um alinhamento partidário consciente, o que observamos é um Judiciário que internalizou as premissas da ocupação prolongada como “normal” — o que Agamben poderia chamar de normalização do estado de exceção. Ao longo dos anos, a Suprema Corte emitiu inúmeras decisões que abriram caminho para que o governo e as forças armadas israelenses cometessem violações dos direitos humanos. O tribunal aprovou a demolição de milhares de casas palestinas e a destruição de aldeias inteiras.

À luz dessa situação, você acredita que a intervenção internacional é necessária e, em caso afirmativo, de que forma ela poderia assumir de maneira realista?

A intervenção internacional parece necessária, dado o fracasso dos mecanismos corretivos internos, mas suas formas realistas permanecem limitadas.

Formas realistas de intervenção incluem:

Sanções direcionadas: em junho de 2025, o Reino Unido, a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia, a Eslovênia e a Noruega impuseram sanções direcionadas a dois ministros do governo israelense, Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich. O Reino Unido suspendeu as negociações de livre comércio com Israel e anunciou uma revisão de suas relações bilaterais.

Restrições ao comércio de armas: países como Holanda, Canadá e Reino Unido suspenderam algumas transferências ou licenças de armas para Israel devido ao risco evidente de que suas armas fossem utilizadas em graves violações do direito internacional. No entanto, os EUA e a Alemanha continuam sendo os principais fornecedores de armas, de modo que qualquer embargo teria impacto limitado, a menos que esses fornecedores-chave reconsiderassem suas políticas.

Revisões de acordos comerciais: Espanha, Irlanda e Eslovênia pediram a suspensão do Acordo de Associação UE-Israel. A maioria dos ministros das Relações Exteriores da UE votou pela revisão do Acordo de Associação UE-Israel devido a preocupações de que Israel esteja violando suas obrigações em matéria de direitos humanos.

A limitação fundamental é que, dadas as fortes relações econômicas entre a UE e Israel — a UE era o maior parceiro comercial de Israel em 2024 —, a adoção de sanções comerciais abrangentes parece improvável. Além disso, a política dos EUA sob a atual administração reverteu algumas sanções da era Biden.

Mais clichês sobre uma solução de dois Estados e o processo de paz não contribuirão em nada para promover os objetivos de acabar com as violações, nem para interromper os padrões de deslocamento na Cisjordânia. Uma intervenção eficaz exigiria uma ação coordenada, incluindo embargos de armas, proibições comerciais aos assentamentos e sanções direcionadas a funcionários cúmplices — medidas que continuam politicamente restritas, apesar do crescente apoio a nível da ONU.

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