A escrita de si num Brasil improvável
Nas obras memorialísticas de autores mineiros, um sociólogo analisa como a “sociedade” e o “indivíduo” se formam e desconstroem continuamente. E provoca: qual sujeito é forjado numa sociedade colonial, que se quis moderna sem nunca deixar de ser arcaica?
Publicado 01/11/2024 às 17:30 - Atualizado 01/11/2024 às 20:04
Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “Indivíduo possível, sociedade improvável. Sociologia e memorialismo”. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.
Conferência de Titularidade, IFCS/UFRJ, 29 de outubro de 2024
Para Maurício Hoelz, primeiro leitor
Como um sociólogo que busca honrar a mais distintiva das características da sua disciplina – a saber, pensar as desigualdades nas relações sociais –, pode, ou deve, se aproximar do universo memorialístico?
Evito a pergunta mais direta “o que o memorialismo que se forja no Brasil tem a nos dizer sobre a nossa sociedade?” com receio de substancializar palavras em categorias estáveis que, justamente, precisam ser problematizadas; como “memorialismo” e “sociedade”.
Adoto uma estratégia desconstrutora e me regozijo com a tarefa primordial da minha disciplina: desnaturalizar ou provocar estranhamento de ações, relações e processos de significação e de sentido na vida social.
Como aconteceu de deixarmos a perplexidade de lado diante de fenômenos tão improváveis como a existência de indivíduo, de sociedade e de relações entre eles, para simplesmente, traindo nossa tarefa primordial, operarmos praticamente de modo automático com pressupostos que, a essa altura, são camadas e mais camadas de significados cristalizados em mais de um século de sociologia.
Nesta conferência desejo relatar minha aproximação cuidadosa e desconfiada ao memorialismo brasileiro como um campo de investigação sobre as relações entre indivíduo e sociedade. Novamente, recorro às aspas para indicar que meu objetivo final é problematizar as próprias categorias de “indivíduo” e “sociedade” e, quem sabe, surpreender relações ainda pouco trabalhadas entre elas.
Descobri no que chamo de memorialismo modernista mineiro um experimento estético e político extremamente original e forte sobre a forja do indivíduo e de uma subjetividade individual que, em tudo, contrasta com a tendência hegemônica dessa prática de escrita de si no Brasil – prática, aliás, cuja rarefação entre nós já diz muito sobre o nosso problema sociológico.
O pouco espaço para as narrativas de si com desenhos complexos de subjetividade individual, e não meros tipos sociais, como se dá, por exemplo, noutro grande momento da literatura brasileira, o chamado romance social de 1930, é indicativo do lugar problemático do indivíduo numa sociedade como a brasileira.
A família, e não o indivíduo, como temos visto reiteradamente no correr dos séculos brasileiros em correntes de opinião, em posicionamentos políticos e mesmo em políticas públicas, continua sendo pensada como a unidade da sociedade. Isso para não falar da força das religiões na modelagem dos sujeitos, as neopentecostais na vanguarda contemporânea, onde essa afirmação já seria, de certa forma, esperada.
O que pode o indivíduo numa sociedade patriarcal?
É essa a questão que surpreendo no memorialismo modernista mineiro. Trabalhei especialmente com As Memórias de Pedro Nava, publicadas entre 1972 e 1983, e com A idade do serrote, de 1968, de Murilo Mendes.
Quero afirmar a necessidade premente de a sociologia não esquecer a tarefa que lhe cabe como ciência do social: desconstruir/problematizar os pressupostos naturalizados e reificados – que podem ser de ordens variadas: eurocêntrico, antropocêntrico, androcêntrico – das noções de indivíduo e sociedade que formam a gramática básica da disciplina e que constroem universalidade à custa do apagamento da historicidade e das desigualdades sociais, por vezes simplificando e homogeneizando a complexidade das relações sociais.
Por isso, devo me voltar não para os termos da relação indivíduo e sociedade separadamente, não para qualquer um deles como ponto de partida para se chegar ao outro, como posições na sociologia recente acabam por fazer. Tampouco pressuponho correspondências estáveis entre eles, do tipo tal sociedade, qual indivíduo; ou vice-versa. Muitas vezes, de fato, ao fim e ao cabo, a inteligibilidade dessa relação acaba sendo uma decorrência mais ou menos mecânica da ênfase que se dá ou no indivíduo ou na sociedade. Ou em termos mais analíticos: ou na estrutura ou na agência.
Volto-me para a própria relação entre indivíduo e sociedade como o problema sociológico. É nela que se esconde o segredo que tento decifrar. É um segredo importante.
Concordo com a socióloga britânica Margareth Archer quando ela afirma que não é casual que o binômio “agência” e “estrutura” tenha se tornado o ponto fulcral da teoria social moderna. Esta é uma questão não apenas teórica, mas da ordem da experiência dos próprios atores sociais. Afinal, faz parte do cotidiano “sentir-se livre e acorrentado, capaz de moldar nosso próprio futuro e, ainda assim, confrontado por restrições imponentes e aparentemente impessoais” (Archer, 1996: XII).
O segredo? Indivíduo e sociedade ou ação e estrutura cifram sociologicamente o “problema social mais premente da condição humana” (Archer, 1996: XII). E a sociologia deve enfrentar permanentemente o desafio de compreender a condição humana.
I.
No memorial que apresentei a esta banca de progressão, intitulado “Emaranhado André Botelho”, discuti o que ficou conhecido como “o novo movimento teórico” como uma espécie de fracasso legado à minha geração.
Título de um texto marcante de Jeffrey C. Alexander, um manifesto mesmo, eu diria, publicado em 1987 pela Revista Brasileira de Ciências Sociais, o novo movimento teórico prometia novas sínteses entre estrutura e ação que, no entanto, a meu ver, não logrou êxito para superar formulações dualistas, dicotômicas, disjuntivas.
O “fracasso” do novo movimento teórico se faz acompanhar, de certa forma, por uma situação de relativa “anomia” na teoria sociológica hoje – o movimento teórico tentou criar certo consenso quanto às “dualidades” a superar ou integrar (como agência/estrutura; ações orientadas normativamente/instrumentalmente; holismo/individualismo etc.); hoje, nem isso temos.
Foram décadas de trabalho teórico, histórico e empírico centrado na caracterização estrutural-funcionalista e marxista da sociedade, que pouco espaço deixara às ações e aos indivíduos, vistos frequentemente como epifenômenos da sociedade. Alexander, ele mesmo assumidamente neofuncionalista em determinado momento, não esteve sozinho.
A constituição da sociedade, de 1984, de Anthony Giddens, permanece exemplar não apenas da reivindicação, mas da proposição consistente de uma abordagem teórica não dualista do problema. Seu fundamento está na ênfase na condição ativa e reflexiva da conduta humana, em oposição ao que o sociólogo inglês identifica como “tendência do consenso ortodoxo de ver o comportamento humano como o resultado de forças que os atores não controlam nem compreendem” (Giddens, 2003: XVII).
Giddens defende a tese segundo a qual as “propriedades estruturais dos sistemas sociais só existem na medida em que formas de conduta social são cronicamente reproduzidas através do tempo e do espaço” (Giddens, 2003: XXIII). Segundo esta tese, designada de “dualidade da estrutura”, as capacidades reflexivas do ator social estão envolvidas, “de um modo contínuo, no fluxo da conduta cotidiana, nos contextos da atividade social”. Mas a reflexividade opera, contudo, apenas de modo parcial num nível discursivo: “O que os agentes sabem acerca do que fazem e de por que o fazem – sua cognoscitividade como agentes – está largamente contido na consciência prática”. Por “consciência prática”, Giddens entende “todas as coisas que os atores conhecem tacitamente sobre como ‘continuar’ nos contextos da vida social sem serem capazes de lhes dar uma expressão discursiva direta” (Giddens, 2003: XXV).
Um exemplo bastante estimulante dessa proposição sobre a relação entre caráter recursivo da vida social e a reflexividade das formulações intelectuais feitas sobre ela pode ser encontrado na própria análise de Giddens da dimensão semântica de constituição de “identidades” no âmbito da modernidade. Assim, em Modernidade e identidade (2002), por exemplo, percorre uma agenda de pesquisa para identificar, de uma perspectiva sociológica, a constituição da identidade individual, o “eu”, através do surgimento de novos mecanismos de autoidentificação da condição ativa e reflexiva da conduta humana.
Quanto a Jeffrey Alexander, autor do manifesto de uma geração já citado, pode-se observar um progressivo neofuncionalismo no desenvolvimento dos seus trabalhos. Seu programa forte para a teoria sociológica contemporânea prescreve uma teoria cultural erguida sobre a sociologia da religião de Émile Durkheim, ainda que procure guardar a autonomia relativa da cultura às condições próprias de uma modernidade complexa e contingente. Como, por exemplo, em seu Performance and Power (2011).
Como o próprio Alexander, outras teorizações contemporâneas têm levado à reformulação de problemáticas persistentes e de conceitos básicos do repertório teórico da sociologia em direções menos convergentes à pauta do “novo movimento teórico”.
Atualmente, vemos surgir um campo fraturado e sem comunicações. De um lado, a, talvez, mais consistente teorização contemporânea, a chamada teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, um autor ainda fronteira a ser cruzada no cotidiano da sociologia em geral. Impressionam-me, particularmente, suas análises dos meios de comunicação simbólica generalizada, nas quais destaca o papel da semântica na estruturação contingente da vida social, vista como um processo intersubjetivo de constituição de sentido e de construção do mundo.
Assim, uma teoria da sociedade faz parte do tecido da sociedade que ela descreve, ou, o que dá no mesmo, uma teoria da comunicação é ela própria comunicação. Desse modo, o sujeito do conhecimento ou da observação (a teoria da sociedade) e o objeto conhecido ou observado (a sociedade) constituem “momentos” de uma espiral contingente de retroalimentação paradoxal.
Mas, nessa construção, não há espaço para o indivíduo, que foi realocado no sistema psíquico. Ele não faz parte, senão indiretamente, por comunicações sistêmicas, da sociedade, que também forma outro sistema próprio.
De outro lado, vemos emergir todo um campo identificado como “sociologias do indivíduo” por Danilo Martuccelli e François Singly (2012), Las sociologías del individuo, ou Bernard Lahire (2002, 2004), O homem plural e Retratos sociológicos: disposições e variações individuais, por exemplo.
Martuccelli e Kathya Araujo têm uma particularidade importante: trabalham extensivamente com o individualismo latino-americano. Na interpretação de Martuccelli, o “individualismo agêntico” é uma “variante do individualismo” a que se chega por uma crítica de pressupostos da teoria clássica, com destaque para o de Durkheim, segundo o qual “o individualismo é um fenômeno que não começa em lugar algum, mas que se desenvolve, sem parar, ao longo de toda a história” (Durkheim apud Martuccelli, 2019).
Seja como for, o interesse pelo indivíduo na disciplina tem-se mostrado potente o suficiente para atingir a própria teorização sociológica como um todo. Quando a individualização e a organização do eu como projeto reflexivo se impõem de maneira sem precedentes, torna-se necessário rediscutir a própria modernidade. Foi o que fizeram, entre outros, Ulrich Beck (2011) em Sociedade de risco, Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim (2002) em Individualization: institutionalized individualism and its social and political consequences (2002). O processo de individualização característico do que esses autores consideram a “segunda modernidade” ou “modernidade reflexiva” (historicamente, a partir do pós-Segunda Guerra Mundial) diz respeito, fundamentalmente, ao aumento das condições de possibilidade de uma espécie de imperativo moral a favor da autodeterminação pela escolha, segundo o qual o indivíduo deve sempre pesar suas opções e fazer uma escolha, arcando com seus riscos.
Aqui, o paradoxo social da individualização se recoloca: ao mesmo tempo em que o indivíduo é impulsionado a determinar e desenhar sua própria vida, encontra-se à mercê de uma série de constrições novas para o desenvolvimento de sua individualidade, a começar pelo próprio princípio de incerteza que a todos atinge. É para esse novo tipo de sociedade submetida a fortes e novos riscos ligados aos processos de individualização em curso que essa sociologia se volta: mudanças organizacionais do trabalho, dos estilos e modos de vida, das estruturas de poder e das formas de dominação política e de participação, da concepção de tempo, particularmente a compreensão sobre o futuro, alteram os laços sociais e parecem decretar o fim das biografias estáveis.
II.
Durante 2020 e 2024, coordenei com os colegas Maurício Hoelz e Pedro Meira Monteiro, além de, inicialmente, Eneida Maria de Souza e Mariana Chaguri, e, posteriormente, Wander Melo Miranda, o projeto MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira. Foi uma experiência de trabalho e aprendizado coletivo e em rede excepcional. Uma rede multidisciplinar – antropologia, artes cênicas e plásticas, ciência política, história, literatura brasileira e comparada, sociologia entre as principais – com mais de 70 pesquisadores e pesquisadoras de numerosas instituições no Brasil (em todas as suas regiões, exceto a Norte) e no exterior, Estados Unidos e Portugal, principalmente.
Iniciado durante a pandemia da Covid-19, o projeto MinasMundo desenvolveu uma agenda intensa e diversificada de atividades regulares como seminários, curadoria de festivais de conhecimento e literários, mesas-redondas e simpósios em eventos nacionais e internacionais, publicação em periódicos acadêmicos dentro e fora do Brasil, matérias em jornais de circulação nacional e em suplementos culturais e realização de oficinas para o público em geral, incluindo alunos do ensino médio. São atividades nas quais buscamos articular a produção de conhecimento universitário relevante e a divulgação científica e comunicação pública mais ampla. Assim, quisemos colaborar para a inovação, ampliação e democratização do conhecimento produzido em rede.
O principal objetivo do projeto foi problematizar a ideia corrente de modernismo domesticado pelo paradigma da “identidade nacional” e promover um novo reconhecimento de sua dimensão cosmopolita aberta às alteridades na cultura brasileira. O acontecimento celebrado em 2024, a viagem dos modernistas a Minas Gerais, marca um jogo complexo de relações que não se deixa domesticar pela ideia de dialética entre localismo e cosmopolitismo, como já foi tentado no passado. Ele se repete como diferença em várias linguagens, especialmente aquelas ligadas a Minas Gerais, mantendo em tensão criativa o novo e o conhecido, a cópia e o original. Aproveitamos a viagem modernista naquilo em que ela surpreende um “passado-em-diferença” e abre à imaginação artística e intelectual possibilidades de reconhecer a cultura não como um campo de reconciliação, mas um campo de tensão e de conflitos democráticos.
Meu projeto pessoal no MinasMundo investigou o que chamei de genealogia de uma subjetividade individual no memorialismo modernista mineiro, ou seja, uma frente inédita de investigação que buscou testar as possibilidades, alcances e limites de tratar o memorialismo, sociologicamente, como uma experiência reflexiva da figuração do indivíduo, dos processos sociais de subjetivação e do conflito entre indivíduo e sociedade.
Trabalhei especialmente com As Memórias de Pedro Nava, que tive a oportunidade anos atrás de reeditar para a Companhia das Letras, compostas por Baú de ossos (1972), Balão cativo (1973), Chão de ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo das trevas (1981) e O círio perfeito (1983), além das 36 páginas de Cera das almas, o livro que daria continuidade à série interrompida pelo suicídio do autor, ocorrido em 13 de maio de 1984. Já sobre A idade do serrote (1968), de Murilo Mendes, venho trabalhando, também, com meu orientando de doutorado, Lucas van Hombeeck.
O trabalho com o memorialismo modernista mineiro me levou a uma série de perguntas que não têm recebido muita atenção na área do pensamento social brasileiro, e que apontam para as questões da subjetividade individual como relação social e do cosmopolitismo da/na cultura brasileira. Chama-me a atenção o conflito tênue, mas decisivo, entre indivíduo e sociedade nesses textos: uma subjetividade em busca dramática, não raro trágica, de individualização em meio à cultura objetiva representada pela família (a chamada “tradicional família mineira”) e pela sociedade e o Estado, inclementes estruturas de poder.
O que me remete à visão do social de Georg Simmel (1988, 2006) e, mais ainda, nos joga direto dentro do grande tema da sua sociologia. Na modernidade, o descompasso entre tudo aquilo que os indivíduos produzem fora de sua subjetividade, a “cultura objetiva”, e o cultivo pessoal, interior, da individualidade, alcança um nível extremamente assimétrico, gerando uma separação radical entre o indivíduo e seu potencial criativo, “a cultura subjetiva”. E essa cisão adquire sentido trágico justamente porque, em Georg Simmel, a ação humana está sempre relacionada à ideia de criatividade originada da subjetividade.
Outra inspiração foi a releitura feita por Gabriel Cohn de Émile Durkheim. Ele, um dos maiores especialistas em Max Weber e Simmel, assinala que, embora tenha deixado uma imagem de pensador conservador, preocupado mais com a autoridade do que com a liberdade, as relações que Durkheim estabelece entre o social e o individual são bem mais matizadas e problemáticas do que o lugar-comum a que ele foi confinado, já que a própria figura do indivíduo é para ele uma criação social do mundo moderno. Diz Gabriel: “Mas, ao ser engendrada pela sociedade, essa figura do indivíduo já não corresponde a um ente isolado, voltado sobre si próprio, pois já traz a marca da ligação com o outro, com todos os outros. Laços, que, sendo sociais e não naturais, são da ordem dos significados e da consciência. Laços morais, portanto (e é por isso que Durkheim usa o termo “solidariedade” para designá-los). Portanto, não é o indivíduo como partícula isolada que está em jogo, mas sim o valor que a sociedade lhe confere (e que ele, sozinho, não saberia atribuir-se)” (Cohn, 1999: 33).
III.
A figuração do indivíduo e de processos de subjetivação no memorialismo modernista mineiro aponta, a meu ver, para um traço cosmopolita marcante na formação social de Minas Gerais. Lembremos com Antonio Candido (2006) que a urbanização precoce de Minas Gerais, comparativamente ao restante do Brasil e mesmo do continente, está na raiz do surgimento, no século XVIII, de uma literatura, em primeiro lugar, com um “acentuado cunho de universalidade”, como discutiu em “Poesia e ficção na autobiografia”, palestra de 1976. E, o que nos toca ainda mais diretamente, em segundo lugar, um gosto particular dos mineiros por literatura em primeira pessoa, em particular a autobiografia, assunto de seu texto que estamos evocando.
O contraste com outras formas de memorialismo – literário ou sociológico – brasileiros contemporâneos é muito impressionante. Pensemos em Gilberto Freyre, em quem, como já notou Davi Arrigucci Jr. (2001), o sentido do movimento de relacionar a memória pessoal e a sociedade é oposto ao de Nava. Freyre parte de vasta documentação que compõe o material da sua pesquisa sociológica para chegar a seu mundo de origem pessoal. Nava, ao contrário, parte da autobiografia para desenhar um retrato mais geral.
Dando um passo atrás ao de Arrigucci, podemos nos perguntar sobre essa subjetividade individual tão contrastante entre os dois autores e, mais, entre as duas formações sociais a que estão ligados e que, de alguma forma, constroem em seus livros, a pernambucana, no caso de Freyre, e a mineira, no de Nava. Não parece significativo que a subjetividade individual trabalhe, em Freyre, justamente para recompor um perfil social do grupo, a família patriarcal? Afinal, o argumento decisivo de Casa-grande é justamente que a família patriarcal, e não o indivíduo, constitui a unidade da formação da sociedade brasileira. É ela a protagonista do ensaio de Freyre, na verdade, parte de uma reflexão mais ampla sobre o seu papel na construção da ordem numa sociedade tão violenta e polarizada (entre senhores e escravos) como a colonial, como tão bem nos explicou pioneiramente Elide Rugai Bastos (2006).
O que a comparação me sugere, portanto, é que, primeiro, o “lugar” do indivíduo constitui uma clivagem importante para pensar diferentes figurações brasileiras do “memorialismo” e das narrativas em primeira pessoa em geral. E que, talvez, uma genealogia da subjetividade individual, como a que estamos propondo, possa ajudar a, direta e indiretamente, desentranhar o conflito sobre diferentes interpretações do Brasil desses textos-práticas de si, porque aquela clivagem também diz respeito às visões de sociedade ideal em disputa não apenas economicamente, mas em termos culturais e políticos.
Minha tese, portanto, é que o memorialismo é um campo de figurações do indivíduo e da sociedade, mais especificamente das formas de subjetivação e objetivação do conflito entre indivíduo e sociedade. Toda figuração do indivíduo traz pressupostos sobre o que é sociedade; toda figuração sobre a sociedade implica concepções sobre o indivíduo. Estão juntos, mesmo quando um é sublimado pelo outro na escrita do social.
É por isso que o memorialismo se mostra um campo fértil para surpreender e pensar a emergência desse personagem social complexo numa sociedade patriarcal como a brasileira, o indivíduo e suas promessas e limites; mas também para problematizar noções reificadas de sociedade, com as quais também trabalham, eles, escritores, e muitas vezes nós, analistas.
As noções de indivíduo e sociedade não podem continuar sendo um mero pressuposto em nossas análises, não nas sociológicas.
Amplio minha sugestão para os chamados ensaios de interpretação do Brasil. Voltar aos ensaios dos anos 1920, por exemplo, Populações meridionais do Brasil (1920) ou Retrato do Brasil (1928), e pensar mais uma vez na ausência de unidade social ao país que apontam, mas não para esclarecer os prognósticos de nacionalização que implicam, mas quem sabe também como problemas significativos em si mesmos.
Voltar a Gilberto Freyre e reenquadrar o problema da coesão social, divisada na família patriarcal, que, mesmo ligado à retórica política conservadora do autor sobre a chave do equilíbrio social, não deixa de expor não apenas certa surpresa quanto às possibilidades da ordem social, como ainda dúvidas justamente sobre a fragilidade em sua manutenção e transformação.
A mesma estupefação sobre, afinal, ter-se, a despeito de tudo o mais, acabado por se formar aqui na colônia portuguesa na América uma sociedade – problemática, sem dúvida – está presente, com outro sentido político, em Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr. Como expressa a categoria de “sentido da colonização”, o imperativo de cumprir o papel de fornecedora de produtos tropicais para os mercados europeus fez com que a colônia portuguesa na América se reduzisse quase a uma vasta empresa comercial.
E como esquecer em Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, o problema do desenvolvimento particularmente extremo, desde a península Ibérica, de uma “cultura da personalidade” que compromete o tecido social? Afinal, o sentimento de autonomia e de sua independência em relação aos demais coloca problemas cruciais para que se possa pensar, talvez não apenas a sociedade brasileira como uma ordem democrática, mas propriamente como uma “sociedade” – parafraseando sua conhecida provação, será mesmo possível pensar em “sociedade” e “indivíduo” numa terra onde todos são barões?
Não há sociologia, de fato, se não refizermos a pergunta básica sobre como a sociedade e como o indivíduo são possíveis ou mesmo improváveis. Pergunta crucial não apenas na teoria clássica, moderna e contemporânea, mas que se repõe necessariamente – ainda que nem sempre direta e conscientemente – mesmo em toda pesquisa estritamente empírica, mas diferencialmente sociológica.
IV.
Porque o moderno também é colonial, é necessário, em desenvolvimentos futuros da pesquisa, enfrentar perguntas próprias do século XXI: Que tipo de indivíduo se forja pela violência numa sociedade colonial, formada em parte por povos não europeus – originários e em diáspora forçada – (1) para os quais a noção moderna de indivíduo é estranha, (2) cujos processos de subjetivação passam justamente pela memória de um coletivo (um “social”) ancestral e (3) cujas “culturas” não naturalistas e não antropocêntricas (em geral animistas) desafiam a ideia de um indivíduo universal ao reconhecer subjetividades outras, que incluem animais, plantas e espíritos?
Essas perguntas estão sendo feitas na floração nossa contemporânea mais recente do memorialismo mineiro, legatária das inovações de seus antecessores modernistas que discuti aqui.
Menino sem passado (2021), de Silviano Santiago, e Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite (2022), de Ricardo Aleixo, são duas afirmações da individualidade e da cultura subjetiva que desdobram a luta do indivíduo em meio a tradicional família mineira e se chocam com as formulações contemporâneas sobre a institucionalidade como fator fundamental da individuação.
Em Silviano, o que se lê é a figura de uma subjetivação desencantada, prática de um (con)texto pós-Bildung, hospedada em textos de outras temporalidades. Uma aliança entre os tempos do sujeito. O inacabamento do sujeito, sempre “entre” interações, e a repetição do trauma da perda da mãe, estilhaçada e projetada nas muitas figuras femininas do livro, servem como índice daquele desencantamento. Mas porque sem passado, o indivíduo também está livre.
Em Aleixo, a relação entre indivíduo e sociedade é trabalhada entre os limites, os da existência e os da linguagem. A história improvável de um adolescente de uma família mineira negra, e o domínio da leitura, da escrita, da escuta e da interação entre esses códigos. A recusa do narrador, um escritor, em se lançar a qualquer visão de ancestralidade que não contenha um projeto de futuro. Sendo negro e atuando num contexto de reivindicações e reconhecimentos de forte mobilização de identidades coletivas racializadas, sua poesia e suas memórias são também a defesa da subjetividade individual nesse novo momento da cultura brasileira. O coletivo construído não deve subjugar o indivíduo.
Enfim, cumprida a tarefa de libertar o indivíduo, ainda que em chave trágica, da sociedade patriarcal, o memorialismo mineiro de hoje diz que a sociedade não é só patriarcal, ela é também colonial. Não à toa, as memórias de Silviano, a de um menino “sem passado”, são uma espécie de desdobramento do seu livro de poesia Crescendo numa colônia ultramarina durante a guerra. Assim como Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, de Aleixo, reelabora a sua poesia, das mais originais do nosso século XXI.
O sentido dessas escritas de si não se esgota nos embates de renovação estética, que podem ser, porém, seu vezo próprio de realização, como também depende da interação com outras forças e portadores sociais de diferentes gerações. Há uma acumulação estética formal, que inclusive enlaça gerações e embaraça temporalidades. Se suas ações são da ordem do processo, não se extinguem na conjuntura, mas o processo é necessariamente contingente, com o perdão da quase aporia. São linhas em ziguezagues, para lembrar o saudoso Ricardo Benzaquen, que vivem, morrem, sobrevivem ou não, e também reaparecem nos conflitos da cultura e da política brasileira. Então, parafraseando Mário de Andrade, com a ironia habitual, mas tão rara no texto melancólico de 1942 escrito para a Casa do Estudante do Brasil: “Mas isso decerto ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão” (Andrade, 1978: 247).
Obrigado a todas as pessoas pela escuta dessa minha reflexão sobre sociologia e memorialismo. Possibilidades e limites recíprocos e assimétricos entre existência social e linguagem. Esse entre-lugar possível para o indivíduo e para a sociedade. E também, bastante improvável.
Referências
ANDRADE, Mário de. (1978). O movimento modernista. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, p. 231-255.
ARCHER, Margaret. (1996). Culture and Agency: The Place of Culture in Social Theory. Cambridge: Cambridge University Press.
ARRIGUCCI JR., Davi. (2001). Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras.
BASTOS, Elide Rugai. (2006). As criaturas de Prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo: Global.
CANDIDO, Antonio. (1989). Poesia e ficção na autobiografia. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, p.51-41.
COHN, Gabriel. (1999). Individualidade e cidadania num mundo dividido. Perspectivas, n. 22, p. 31-38.
GIDDENS, Anthony. (2003). A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
MARTUCCELLI, Danilo. (2019). Variantes del individualismo. Estudios Sociológicos, v. 37, n. 109, p. 7-37.
SIMMEL, Georg. (2006). Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
SIMMEL, Georg. (1988). La tragédie de la culture. Paris: Petite Bibliotèque Rivages.