Universidade, caminho para a depressão?
Sob estruturas burocráticas e sistema produtivista, estudantes adoecem. Nas instituições, despreparadas para lidar com desafios de saúde mental, rareia a empatia. Mas brotam resistências nos campis para reaprender a habitar o tempo, o corpo e o outro
Publicado 02/07/2025 às 18:26

“A universidade é o lugar aonde os jovens vão para sonhar com o mundo — e, às vezes, para aprender a sobreviver a ele.”
Nos corredores silenciosos das universidades públicas brasileiras, multiplicam-se corpos exaustos, olhares apagados, crises de ansiedade abafadas com tarja preta, suicídios não ditos, choros silenciosos nos banheiros. Enquanto o país se curva à racionalidade neoliberal, o espaço universitário, que um dia foi símbolo de esperança e transformação, se converte, cada vez mais, em terreno de performance, adoecimento e desamparo.
O sofrimento psíquico entre estudantes não é novidade, mas sua banalização sim. Tornou-se esperado — até normal — que estudantes de graduação vivam em constante estado de colapso emocional. A carga das disciplinas é pesada, desproporcional à capacidade humana de absorção. Projetos, provas, estágios e leituras atravessam madrugadas inteiras sem respiro. O que se exige é uma performance ininterrupta de excelência — mas sem o mínimo de cuidado.
Muitos professores, embora empáticos, também estão adoecidos e sobrecarregados, reféns de estruturas institucionais burocráticas e de um sistema produtivista que os impede de acolher com profundidade. Outros reproduzem, sem mediação crítica, uma pedagogia autoritária e indiferente. Tudo isso tem um efeito: a juventude está cansada antes do diploma, tentando sobreviver em vez de se formar.
A gestão do sofrimento: psicotrópicos e silenciamentos
Como analisa Heribaldo Maia em Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (2022), o adoecimento nas universidades é tratado como falha individual — e não como sintoma coletivo. A resposta institucional a esse sofrimento tem sido a medicalização em massa: ansiolíticos, antidepressivos, estabilizadores de humor e estimulantes circulam quase como parte do material didático. A saúde mental se tornou objeto de gestão tecnocrática, não de cuidado real.
Os suicídios são silenciados, invisibilizados pelos discursos oficiais. São tratados como “casos isolados”, “eventos trágicos” — e não como aquilo que realmente são: expressões extremas de um sistema universitário que fracassa em cuidar.
Disciplina, corpo e poder: Foucault e a universidade como aparelho normativo
Para Michel Foucault, o poder opera nos corpos, molda condutas, define normas. A universidade, nesse contexto, age como um espaço de disciplina e vigilância, onde o estudante deve internalizar a lógica da produtividade, da competição, da excelência meritocrática. É a figura do “bom aluno”, autônomo, resiliente, disciplinado — que não chora, não cansa, não erra.
Esse modelo forja corpos dóceis (Foucault, 1975), prontos para serem inseridos no mercado. A saúde mental, nesse arranjo, é a ausência de perturbação ao rendimento. A loucura — ou qualquer desvio — é tratada como obstáculo a ser eliminado. Nas universidades brasileiras, o sofrimento virou ruído na engrenagem neoliberal. Algo a ser silenciado, medicado ou descartado.
A pós-modernidade e a fragmentação do sentido
Como aponta Stuart Hall em Cultura e Representação (1997), a pós-modernidade rompe com as grandes narrativas de verdade, progresso e identidade estável. Vivemos em uma era de fragmentação, fluidez e deslocamento dos sentidos — inclusive sobre o que significa “ser estudante”, “ter sucesso”, “fazer universidade”.
No contexto universitário, essa crise do sentido se manifesta como desorientação existencial, sentimento de inadequação permanente e angústia de não pertencer. Somos, como diz Hall, sujeitos em construção — mas sob um modelo que exige coerência, desempenho e prontidão constantes. A universidade pós-moderna, atravessada pelo capital, já não é espaço de emancipação: é palco de representação e controle.
Essa fragmentação subjetiva — teorizada também por Derrida, Bauman e pelos estudos culturais — não pode ser resolvida com fórmulas de autoajuda ou discursos de “inteligência emocional”. Ela exige crítica estrutural.
A crítica como libertação: Escola de Frankfurt e a negação do sofrimento
A teoria crítica, especialmente em autores como Adorno e Horkheimer, já denunciava o perigo de uma razão instrumentalizada, onde a lógica técnica supera o pensamento ético e crítico. Na universidade neoliberal, tudo se mede, se ranqueia, se monetiza — inclusive a mente dos estudantes.
Como afirmou Adorno, “a incapacidade de sofrer é uma forma de barbárie”. A universidade contemporânea, ao negar o sofrimento de seus estudantes, reproduz um modelo de barbárie institucional, onde o humano é sacrificado em nome da produção.
Mas a crítica — no sentido frankfurtiano — ainda pode ser a chave de virada. Pensar contra a corrente, problematizar o que é dito como natural, reivindicar o inaceitável como político: isso é resistir.
Quando o cuidado vira luta: bell hooks e a pedagogia do afeto
Apesar de tudo, brotam resistências. Grupos de escuta, coletivos de saúde mental, assembleias estudantis, ocupações, rodas de partilha, espaços agroecológicos — onde se reaprende a habitar o tempo, o corpo e o outro.
Nas palavras de bell hooks, “o ato de ensinar é um ato de amor”. O ensino libertador é aquele que acolhe a dor, escuta as margens, subverte o silêncio. Ele é político, radical, poético. Quando estudantes se organizam para cuidar uns dos outros, eles não apenas sobrevivem — eles desafiam o projeto neoliberal de desumanização.
Entre o colapso e a reinvenção
O sofrimento da juventude universitária não é apenas emocional. Ele é histórico, político, estrutural. Não será resolvido por psicotrópicos ou palestras de autoajuda, mas por uma crítica profunda às condições materiais e simbólicas da vida universitária.
Entre o cansaço e o colapso, há potência de reinvenção. Há quem chore entre uma aula e outra — e ainda assim organize assembleias. Há quem pense em desistir — e mesmo assim construa coletivos. Há quem sonhe, mesmo com o corpo falhando.
Resistir, hoje, é cuidar. É criticar. É desacelerar. É partilhar a dor. E, principalmente, é afirmar que nossos corpos não estão à venda, nossas mentes não são engrenagens e nossa presença aqui não é concessão — é conquista.
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