Universidade, caminho para a depressão?

Sob estruturas burocráticas e sistema produtivista, estudantes adoecem. Nas instituições, despreparadas para lidar com desafios de saúde mental, rareia a empatia. Mas brotam resistências nos campis para reaprender a habitar o tempo, o corpo e o outro

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“A universidade é o lugar aonde os jovens vão para sonhar com o mundo — e, às vezes, para aprender a sobreviver a ele.”

Nos corredores silenciosos das universidades públicas brasileiras, multiplicam-se corpos exaustos, olhares apagados, crises de ansiedade abafadas com tarja preta, suicídios não ditos, choros silenciosos nos banheiros. Enquanto o país se curva à racionalidade neoliberal, o espaço universitário, que um dia foi símbolo de esperança e transformação, se converte, cada vez mais, em terreno de performance, adoecimento e desamparo.

O sofrimento psíquico entre estudantes não é novidade, mas sua banalização sim. Tornou-se esperado — até normal — que estudantes de graduação vivam em constante estado de colapso emocional. A carga das disciplinas é pesada, desproporcional à capacidade humana de absorção. Projetos, provas, estágios e leituras atravessam madrugadas inteiras sem respiro. O que se exige é uma performance ininterrupta de excelência — mas sem o mínimo de cuidado.

Muitos professores, embora empáticos, também estão adoecidos e sobrecarregados, reféns de estruturas institucionais burocráticas e de um sistema produtivista que os impede de acolher com profundidade. Outros reproduzem, sem mediação crítica, uma pedagogia autoritária e indiferente. Tudo isso tem um efeito: a juventude está cansada antes do diploma, tentando sobreviver em vez de se formar.

A gestão do sofrimento: psicotrópicos e silenciamentos

Como analisa Heribaldo Maia em Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (2022), o adoecimento nas universidades é tratado como falha individual — e não como sintoma coletivo. A resposta institucional a esse sofrimento tem sido a medicalização em massa: ansiolíticos, antidepressivos, estabilizadores de humor e estimulantes circulam quase como parte do material didático. A saúde mental se tornou objeto de gestão tecnocrática, não de cuidado real.

Os suicídios são silenciados, invisibilizados pelos discursos oficiais. São tratados como “casos isolados”, “eventos trágicos” — e não como aquilo que realmente são: expressões extremas de um sistema universitário que fracassa em cuidar.

Disciplina, corpo e poder: Foucault e a universidade como aparelho normativo

Para Michel Foucault, o poder opera nos corpos, molda condutas, define normas. A universidade, nesse contexto, age como um espaço de disciplina e vigilância, onde o estudante deve internalizar a lógica da produtividade, da competição, da excelência meritocrática. É a figura do “bom aluno”, autônomo, resiliente, disciplinado — que não chora, não cansa, não erra.

Esse modelo forja corpos dóceis (Foucault, 1975), prontos para serem inseridos no mercado. A saúde mental, nesse arranjo, é a ausência de perturbação ao rendimento. A loucura — ou qualquer desvio — é tratada como obstáculo a ser eliminado. Nas universidades brasileiras, o sofrimento virou ruído na engrenagem neoliberal. Algo a ser silenciado, medicado ou descartado.

A pós-modernidade e a fragmentação do sentido

Como aponta Stuart Hall em Cultura e Representação (1997), a pós-modernidade rompe com as grandes narrativas de verdade, progresso e identidade estável. Vivemos em uma era de fragmentação, fluidez e deslocamento dos sentidos — inclusive sobre o que significa “ser estudante”, “ter sucesso”, “fazer universidade”.

No contexto universitário, essa crise do sentido se manifesta como desorientação existencial, sentimento de inadequação permanente e angústia de não pertencer. Somos, como diz Hall, sujeitos em construção — mas sob um modelo que exige coerência, desempenho e prontidão constantes. A universidade pós-moderna, atravessada pelo capital, já não é espaço de emancipação: é palco de representação e controle.

Essa fragmentação subjetiva — teorizada também por Derrida, Bauman e pelos estudos culturais — não pode ser resolvida com fórmulas de autoajuda ou discursos de “inteligência emocional”. Ela exige crítica estrutural.

A crítica como libertação: Escola de Frankfurt e a negação do sofrimento

A teoria crítica, especialmente em autores como Adorno e Horkheimer, já denunciava o perigo de uma razão instrumentalizada, onde a lógica técnica supera o pensamento ético e crítico. Na universidade neoliberal, tudo se mede, se ranqueia, se monetiza — inclusive a mente dos estudantes.

Como afirmou Adorno, “a incapacidade de sofrer é uma forma de barbárie”. A universidade contemporânea, ao negar o sofrimento de seus estudantes, reproduz um modelo de barbárie institucional, onde o humano é sacrificado em nome da produção.

Mas a crítica — no sentido frankfurtiano — ainda pode ser a chave de virada. Pensar contra a corrente, problematizar o que é dito como natural, reivindicar o inaceitável como político: isso é resistir.

Quando o cuidado vira luta: bell hooks e a pedagogia do afeto

Apesar de tudo, brotam resistências. Grupos de escuta, coletivos de saúde mental, assembleias estudantis, ocupações, rodas de partilha, espaços agroecológicos — onde se reaprende a habitar o tempo, o corpo e o outro.

Nas palavras de bell hooks, “o ato de ensinar é um ato de amor”. O ensino libertador é aquele que acolhe a dor, escuta as margens, subverte o silêncio. Ele é político, radical, poético. Quando estudantes se organizam para cuidar uns dos outros, eles não apenas sobrevivem — eles desafiam o projeto neoliberal de desumanização.

Entre o colapso e a reinvenção

O sofrimento da juventude universitária não é apenas emocional. Ele é histórico, político, estrutural. Não será resolvido por psicotrópicos ou palestras de autoajuda, mas por uma crítica profunda às condições materiais e simbólicas da vida universitária.

Entre o cansaço e o colapso, há potência de reinvenção. Há quem chore entre uma aula e outra — e ainda assim organize assembleias. Há quem pense em desistir — e mesmo assim construa coletivos. Há quem sonhe, mesmo com o corpo falhando.

Resistir, hoje, é cuidar. É criticar. É desacelerar. É partilhar a dor. E, principalmente, é afirmar que nossos corpos não estão à venda, nossas mentes não são engrenagens e nossa presença aqui não é concessão — é conquista.

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12 comentários para "Universidade, caminho para a depressão?"

  1. Larissa disse:

    As instituições não são feitas de burocratas opressores, mas de servidores, estudantes, intelectuais e uma comunidade que resiste aos imperativos de uma lógica produtivista, uma desventura, que desloca o sentido de produção de conhecimento vivo e enraizado para uma “resposta” ao mercado. Felizmente, seguimos humanizando os espaços, os saberes, continuaremos de pé, sejamos acolhedores, acolhedoras.

  2. Maria da Gloria Hissa disse:

    Como Orientadora Profissional me deparo com jovens que buscam no curso universitário uma realização construtiva de seu projeto de vida. Muitos se sentem frustrados com o curso que foi escolhido porque foi onde a nota do ENEM “deu”. Muito a refletir! A sociedade precisa atuar na prevenção de distúrbios emocionais em prol de um bem-estar coletivo

  3. Maria da Gloria Hissa disse:

    Como Orientadora Profissional me deparo com jovens em busca de uma vida universitária que traga satisfação em seu projeto de vida. Ocorre ainda a frustração com o curso que, muitas vezes, foi escolhido porque foi onde a nota do ENEM “deu”. Muito a refletir face ao exposto. A sociedade precisa prevenir fatores que adoecem e comprometem o bem-estar dos indivíduos em busca de um futuro construtivo

  4. Rafael disse:

    No caso da universidades federais, especificamente, e posso falar por cursei duas delas, na UFRRJ e na UNIFAL, a maior praga não é a carga horária e nem o acúmulo de matérias, mas o desvio de finalidade que acontece por questões políticas e morais.

    O uso de drogas, as pautas políticas de esquerda, o feminismo, toda a doutrinação que envolve o ambiente universitário nas faculdades públicas é o que destrói a mente do aluno.

    Eu estudei em públicas e em particulares. Estou na terceira graduação, e na faculdade particular onde não há essa politicagem horrorosa e massacrante sobre os alunos, onde o consumo de drogas é quase inexistente, pois a maioria dos alunos precisa trabalhar para sustentarem a si mesmos ao invés de passarem os dias em Diretórios Acadêmicos fumando maconha, tomando ‘purple drink’ e fazendo cartazes com citações da Frida Kahlo, os alunos são bem mais saudáveis.

    Não são os estudos, é o ambiente inóspito, insalubre e extremamente perigoso criado pela esquerda que dominou as universidades públicas.

    E a proposta para sanar esse mal é qual?
    Amenizar o estudo. Ou seja, vamos fazer menos do que se tem que fazer, para fazer mais do que nos adoece, em prol de uma dominação política ainda maior e de um falso senso de compaixão.

    Malditos, todos eles.

  5. José Manoel disse:

    Sim, a universidade deve ser um local seguro, de acolhimento, onde os traumas da infância serão resolvidos. Certamente, após a graduação, os futuros profissionais serão recebidos de braços abertos pela sociedade, e é claro, pelo benigno “mercado de trabalho”, que como sabemos, existe apenas para que todos os sonhos sejam realizados, independentemente de competência, conhecimento ou aptidão individual. Afinal, em Marte funciona assim. Porquê não funcionaria no Brasil?

  6. Ana disse:

    Perfeito o texto!
    Que compartilhemos muito para que mães de universitário, como eu, os próprios estudantes e toda a sociedade, conscientize-se dessa dura e triste realidade e assim, possamos dialogar, encontrar saídas, gritar ao mundo que não será o mutismo, a omissão, o silenciamento neoliberal e escravizador sistemático, que vai nos derrotar “pra todo o sempre”. Estamos “derrotados” sim, enquanto serviçais do sistema, mas esse texto já é um dos começos. Gratidão.

  7. Pk disse:

    Alunos, professores e também os servidores administrativos dessas universidades estão adoecendo

  8. JOSE FERNANDO MARQUES DE FREITAS FILHO disse:

    Cara Lívia, faltou lembrar com mais ênfase que a estafa e o sofrimento podem ser também dos professores. Por vezes, não raras, os estudantes agem com intolerância e mesmo impiedade para com os docentes. Os grupos identitários, sobretudo.
    Ferozes e avessos ao diálogo. É preciso haver diálogo constante e não há, e esse problema não é só dos professores. A conversa cura ou nos ajuda a curar as dores que você apontou, e para isso é preciso buscar ativamente o entendimento. Com toda a lucidez.

  9. JOSE FERNANDO MARQUES DE FREITAS FILHO disse:

    Cara Lívia, faltou lembrar com mais ênfase que a estafa e o sofrimento podem ser também dos professores. Por vezes, não raras, os estudantes agem com intolerância e mesmo impiedade para com os docentes. Os grupos identitários, sobretudo.
    Ferozes e avessos ao diálogo. É preciso haver diálogo constante e não há, e esse problema não é só dos professores. A conversa cura ou nos ajuda a curar as dores que você apontou, e para isso é preciso buscar ativamente o entendimento. Com toda a lucidez. Abraços

  10. Em meu caso, quero muito fazer um curso superior… mas não sei se vou dar conta! Padeço de fortes dores por um enxerto de platina no braço esquerdo e crises diárias e agravantes por uma depressão, uma insônia e uma distimia! Estão ligados?

    E eu também não sei se faço Artes Plásticas, Artes Visuais ou Letras-Português (pois sou ilustrador, quadrinista, escritor, pintor, letrista, poeta, youtuber, blogueiro e cosplayer)! Não quero correr o risco de começar um desses e me arrepender depois… tem disso, sim?

    Mas enfim… meus parabéns a vocês pela matéria toda, que é bastante completa e explicativa! Podem crer aí?

  11. Mauro Alexandre disse:

    Vou usar na discussão de textos da pós graduação na UFRN.

  12. Jhonatan cardozo disse:

    A universidade é do jeito que é há séculos. Será que os alunos estão cansados por conta da universidade ou pelo que acontece fora dela? Ou pela rotina de atividades programadas que permeia a vida deles desde que nascem pq o cuidado dos filhos precisa ser terceirizado?

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