Trump, Gaza e o império da paz tutelada
Em um cessar-fogo construído sobre escombros, cada detalhe pode esconder uma nova armadilha para a paz. É possível confiar em Netanyahu, que já quebrou acordos anteriores? Desta vez, o presidente dos EUA estará disposto a contrariar seu aliado?
Publicado 10/10/2025 às 18:11

Após a aprovação da chamada fase um do acordo para encerrar o conflito em Gaza, mediado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, e aceito de forma condicional pelo Hamas e pelo gabinete do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, diversas questões são colocadas para o futuro próximo de Gaza e do equilíbrio geopolítico da região.
Inicialmente, o plano prevê um cessar-fogo, seguido pela retirada das tropas israelenses de áreas do território palestino ocupado para uma linha pré-acordada. Em um prazo de 72 horas, o Hamas deve libertar 20 reféns vivos, em troca da soltura de aproximadamente 2.000 prisioneiros palestinos por Israel. A recuperação dos corpos de 28 reféns mortos, no entanto, é um processo mais demorado e complexo, que pode levar mais tempo, já que estariam sob escombros de edifícios atingidos pela ofensiva militar israelense. A ajuda humanitária, incluindo 170.000 toneladas de suprimentos, será liberada assim que o acordo entrar efetivamente em vigor.
O plano de 20 pontos de Trump inclui a formação de um comitê temporário de tecnocratas, composto por especialistas internacionais para governar a região, sob a supervisão de um Conselho de Paz. O Hamas e outros grupos aliados deverão se desarmar e renunciar a qualquer papel no governo, enquanto uma Força Internacional de Estabilização, organizada pelos EUA e nações árabes, assumirá a segurança interna e o controle das fronteiras.
Tudo, por enquanto, está colocado em linhas gerais, e se o diabo mora nos detalhes, por ora eles não existem, o que abre possibilidade de entendimentos distintos de cada parte sobre os mesmos temas. Além disso, alguns pontos mais problemáticos permanecem em uma zona cinzenta, em que pese o aceite iniciais do Hamas e do governo de Israel.
O desarmamento do Hamas
A proposta de Trump pede que o Hamas entregue suas armas, mas o grupo já se opôs a fazer isso anteriormente e ainda não teria concordado expressamente com essa condição. Contudo, pesquisadores apontaram ao site Al Jazeera que esta teria sido uma das mudanças substanciais de postura que possibilitaram o acordo. “[Funcionários do Hamas] disseram em particular a interlocutores que o grupo pode estar aberto a um processo de desmantelamento das armas ofensivas do Hamas”, disse o especialista em Israel-Palestina, Hugh Lovatt, do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR).
Um grupo tem o direito de portar armas e resistir a uma potência ocupante em linha com o direito internacional humanitário. A Carta das Nações Unidas e diversas resoluções da Assembleia Geral reconhecem o direito dos povos à autodeterminação e, em consequência, o direito de resistir à dominação colonial, ocupação estrangeira e regimes racistas. A Resolução 37/43 (1982) da ONU, por exemplo, “reafirma a legitimidade da luta dos povos pela independência, integridade territorial, unidade nacional e libertação da dominação colonial e estrangeira, por todos os meios disponíveis, incluindo a luta armada”. Contudo, a forma de resistência também é regulada, sendo proibido o ataque a civis ou o cometimento de atos de terrorismo.
Israel historicamente exige que os grupos palestinos desistam da resistência armada como pré-condição para lançar um processo de paz ostensivamente destinado a acabar com a ocupação e esta foi a estrutura subjacente, como lembra a Al Jazeera, aos Acordos de Paz de Oslo na década de 1990, assinados por líderes palestinos e israelenses. Para o pesquisador do International Crisis Group (ICG) Azmi Keshawi, o Hamas pode entregar algumas “armas ofensivas”, como mísseis de curto e longo alcance, mas não abrirá mão de suas armas menores, nem entregará um mapa de sua sofisticada rede de túneis. “[O Hamas] só vai desistir [de armas leves] quando não houver necessidade dessas armas. Isso significa que eles só os entregarão a uma liderança palestina que assume o controle de um Estado depois que Israel terminar sua ocupação”, acredita Keshawi.
O Hamas também concordou em apoiar um governo tecnocrático em Gaza, mas a referência a ser “baseado no consenso nacional palestino” sugere que o grupo quer ao menos exercer uma influência indireta sobre a governança, ferindo as pretensões de Israel.
A retirada israelense e a força de estabilização: um horizonte incerto
A proposta dos Estados Unidos pede a retirada das forças israelenses de Gaza em etapas, mas não estabelece um cronograma específico ou um conjunto de condições em que isso ocorreria. Trata-se de um ponto crucial, já que a saída de Israel do território ocupado não é uma condição somente do Hamas, mas também dos países árabes que devem contribuir para a Força Internacional de Estabilização.
“Neste momento, a Força Internacional de Estabilização da Faixa de Gaza é mais um desejo do que um plano. O acordo de Israel para uma força substituir as suas forças militares em Gaza está longe de ser garantido, especialmente porque não está claro quem contribuirá com pessoal. O ministro das Relações Exteriores italiano, Antonio Tajani, ofereceu-se para enviar tropas para contribuir com a força”, aponta o professor da University College Dublin Scott Lucas, no The Conversation. “O plano para um governo administrar a Faixa é igualmente vago. Embora a presença de tecnocratas palestinos seja mencionada no ‘plano’ de Trump, não sabemos quem serão. Sabemos que o Hamas está excluído. É também provável que Israel vete a Autoridade Palestina a curto prazo. E a libertação da prisão de potenciais líderes palestinos – como Marwan Barghouti, que está detido por Israel há mais de 20 anos – não está confirmada.”
Preso desde 2002, Barghouti mantém alta popularidade entre os palestinos e é visto como uma figura de reconciliação entre grupos rivais, como o Fatah, do qual é o líder mais proeminente, e o próprio Hamas. Ele está em confinamento solitário desde o início da ofensiva militar israelense e pesquisas de opinião sugerem que ele seria o favorito para a presidência palestina caso pudesse concorrer ao cargo. Seu nome, contudo, foi retirado da lista de prisioneiros que seriam libertados por conta do acordo de forma unilateral pelo governo de Israel. Ainda não se sabe que impacto isso pode ter na efetivação do pacto.
A criação de um Estado palestino, o papel de governança da Autoridade Palestina (AP) e a reunificação de Gaza com a Cisjordânia são outros pontos que já foram rejeitados publicamente pelo governo de Benjamin Netanyahu.
O histórico de Trump e Netanyahu: um ciclo de instabilidade?
Apesar do otimismo inicial, o acordo enfrenta inúmeros e significativos desafios e a possibilidade de implementação de uma paz duradoura exigirá negociações complexas sobre o futuro do Hamas e a governança de Gaza. É importante destacar que, em março, Israel rompeu o cessar-fogo mediado por Washington, atraindo em seguida o governo Trump para as chamadas “operações humanitárias” que ignoraram a ONU e entidades internacionais, causando o aprofundamento da estratégia de uso da fome como arma de guerra em Gaza.
Mais adiante, o governo Netanyahu sabotou as conversações dos Estados Unidos com o Irã ao atacar o território persa, arrastando novamente o governo Trump para o conflito. Ou seja, acontecimentos recentes e a própria postura estadunidense sugerem que um acordo perene para se alcançar a paz continua no terreno das intenções.
Segundo o membro sênior do Oriente Médio no departamento de Segurança Nacional e Política Internacional da American Progress, Andrew Miller, “o histórico do presidente Trump sobre o acompanhamento da política não é encorajador”. “Não é difícil imaginar um cenário em que ele perca o interesse em Gaza depois que os reféns – sua própria prioridade – forem libertados. Além disso, embora Netanyahu não possa dominar Trump, ele se mostrou hábil em incitar o presidente a ações que ele originalmente se opunha, seja a participação dos EUA na guerra de 12 dias de Israel com o Irã ou fazer zero enriquecimento o padrão nas negociações nucleares anteriores.”
E ainda que se estabeleça um cessar-fogo mais duradouro em Gaza, isso também não garante que novos ataques possam acontecer, de formas distintas e com outros alvos. “Mesmo com a paz genuína em Gaza, o potencial para uma maior violência em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia permanece alarmantemente alto. Em segundo lugar, Israel e o governo Trump já semearam instabilidade atacando o programa nuclear do Irã em vez de continuar as negociações. O Irã provavelmente está mais determinado a adquirir uma capacidade de arma nuclear do que em qualquer outro ponto nos últimos 25 anos”, acredita Miller, sugerindo que mais ações militares possam ser promovidas contra o país, mantendo um ciclo contínuo de violência.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras