Que virá após a crise do Estado liberal?

O velho “centro” político esgotou-se: desigualdade extrema, fascismos e guerras são os sintomas. Catástrofe só não é maior porque sobrevivem certas proteções sociais. Um novo dilema impõe-se ao capitalismo: fagocitar-se em crises ou abraçar algumas saídas socialistas

Imagem: Beppe Giacobbe
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Título original: Oscilações no processo histórico capitalista contemporâneo

Creio que já está bem estabelecido, na teoria da história, que o desenvolvimento econômico acaba forçando transformações no modo de vida social, nos pontos em que as relações sociais vigentes terminam por ficar em contraposição e por funcionar como barreiras contra o avanço das forças produtivas. Essa contradição termina por ser rompida e o modo de produção antigo é, de algum modo, superado. Ou seja, quando as forças sociais de produção se desenvolvem significativamente, criando novas condições de trabalho e novas possibilidades para o desenvolvimento da capacidade produtiva e da riqueza social, este desenvolvimento acaba encontrando barreiras nas estruturas sociais onde ele próprio ocorreu, até um ponto em que, necessariamente, força a transformação destas estruturas. Novas devem surgir, mais compatíveis com a realidade e as possibilidades dos novos recursos, das novas tecnologias. Estas novas estruturas terminam por suplantarem as anteriores, através de conflitos e diversas formas de crises sociais, muitas vezes muito violentas, com grandes revoluções e guerras.

Esta é uma tendência transhistórica, inerente à produção social humana, em geral, mas que se manifesta, de modo mais definido e incontestável, justamente no sistema capitalista, em que vivemos nos últimos séculos, pois, o modo capitalista de produção, por sua estrutura econômica mesma, promove o desenvolvimento produtivo, tecnológico, de modo mais intenso e acelerado do que nos modos de produção anteriores. É claro, portanto, que este movimento deve levar à superação também do próprio sistema capitalista. E, de fato, este processo já é perceptível no desenvolvimento histórico do capitalismo, sobretudo no período histórico mais recente, o período em que se constituiu, verdadeiramente, o sistema capitalista mundial contemporâneo. É isto que vou tentar explicar abaixo.

Entendo ser correto, ou, aceitável, pelo menos, considerar como economia capitalista contemporânea aquela que emerge após a revolução industrial, ou seja, a economia capitalista mundial dos últimos 200 anos, aproximadamente. Foi neste período em que a grande indústria e o sistema financeiro, capitalistas, se desenvolveram aos saltos, se consolidaram e dominaram completamente a economia mundial, conformando um verdadeiro sistema econômico e social, capitalista, mundial.

Este período corresponde à maioridade e ao amadurecimento, digamos assim, do capitalismo mundial e, ao mesmo tempo, ao início e ao avanço de sua superação social. Neste período, inegavelmente, conceitos e práticas socialistas se implantaram e se desenvolveram dentro do sistema capitalista, mundo afora. E, apesar dos momentos de inflexão liberal, persiste um gradiente socializante positivo, no longo curso do capitalismo contemporâneo, em praticamente todo o mundo. Não vejo como alguém poderia negar que, pelos parâmetros econômicos e sociais mais relevantes, o sistema capitalista mundial é hoje, em geral, mais socialista e menos liberal do que há 100 ou 200 anos atrás.

Nenhum grande processo de transformação social deste tipo, desta magnitude, pode ocorrer de modo imediato, como resultado de um ato de revolução política e social apenas, e nem pode se realizar de modo linear e nem homogêneo. Neste período, grandes transformações socializantes realmente ocorreram, e continuam ocorrendo, no interior do sistema capitalista mundial e, hoje, já parece suficientemente claro que, neste processo de desenvolvimento e superação do sistema capitalista, há períodos de avanços e regressos, ou seja, flutuações históricas, períodos de mudanças mais acentuadas no sentido da socialização e outros momentos de vitória do liberalismo, se sucedendo alternativamente. Tudo indica que, no desenvolvimento da sociedade capitalista mundial contemporânea, atendendo à lógica econômica e social própria deste desenvolvimento mesmo, estas ondas alternadas têm ocorrido, ocorrem e devem necessariamente ainda ocorrer, mas com um direcionamento consistente de maior socialização e de superação do capitalismo e, portanto, com a tendência de redução progressiva da intensidade das ondas e crises liberais.

Se retrocedemos até o início do século XX, nos últimos 125 anos, aproximadamente, um período sobre o qual já temos um aporte mais sistemático de dados econômicos mundiais, o que vemos é que, após alguns anos de progresso contínuo, que vinha desde os fins do século anterior, o sistema capitalista mundial entrou em um longo período, entre 1914 e 1945, de grandes crises econômicas sistêmicas, violentos conflitos sociais e guerras disseminadas, mundiais. Este período de crises extremas do sistema capitalista liberal teve imensa destrutividade, com perdas inaceitáveis em vidas humanas e recursos sociais, e foi sucedido por uma onda longa e exitosa de estabilização e desenvolvimento com grande redistribuição da riqueza social e com o desenvolvimento de diversos serviços e instrumentos socializantes, de proteção social e de controle e de regulação públicos, nacionais e transnacionais, dentro do sistema capitalista mundial.

Esta foi uma fase de importante desenvolvimento social na economia capitalista mundial contemporânea, mesmo dentro da sua desigualdade brutal. Andamos um tanto, de algum modo, neste período. Avançamos na regulação pública da economia e no emprego dos recursos anticíclicos e de proteção social, o que resultou em um bom momento, de várias décadas, de desenvolvimento econômico acelerado e melhora da qualidade de vida das populações em geral, sobretudo nos centros dominantes do sistema capitalista, mas chegando também às suas periferias. E, apesar da onda liberal atual, tudo isto ainda persiste, de algum modo, impedindo, pelo menos até o momento, que as crises atuais sejam tão destrutivas quanto foram aquelas da primeira metade do século passado. Mas, também é fato que, a partir da segunda metade da década de 1970 e início dos anos 80, parte das estruturas públicas de proteção social e de regulação e controle estratégico da economia se mostraram um tanto anacrônicas e limitantes, diante do grande desenvolvimento da economia mundial em curso, e foram superadas.

A onda socializante do século passado, tão grande, tão exitosa e definidora, encontrou, enfim, seus limites e uma nova onda liberal tomou o sistema capitalista mundial, a partir de então. A nova onda liberalizante trouxe a redução de barreiras financeiras e comerciais dos Estados nacionais, a privatização e desregulamentação em setores da economia, a eliminação ou redução de instrumentos e recursos de proteção social e a desregulamentação nas relações de trabalho e, apesar de representar perdas muito significativas sobre as conquistas sociais do período anterior, esta nova onda liberal, chamada de neoliberalismo, associou-se a uma grande globalização financeira e produtiva e a um novo ciclo de desenvolvimento econômico e social mundial, que ocorreu a partir de então. Mas as forças do capitalismo, deixadas livres, no exercício de sua lógica liberal própria, ou inerente, resultam, necessariamente, em grande destrutividade, em crises econômicas prolongadas e extremas, com grande queima de capital, empobrecimento, conflitos sociais e guerras. A roda da acumulação, do investimento e do desenvolvimento, capitalistas, não pode se realizar, e não se realiza, de fato, se tiver um mercado de consumo estagnado ou decadente. Ao contrário, ela requer um mercado de consumo de massas florescente. Com o avanço da onda liberal na economia, no entanto, os recursos sociais se distribuem mais e mais desigualmente e a perda de recursos, relativa e, eventualmente, até absoluta por parte das massas, termina por trazer dificuldades progressivas para a realização do ciclo do capital, em geral. Crescem os investimentos frustrados, as quebras e, ao fim, o investimento privado em geral se reduz e se afasta mais das necessidades e interesses populares e, correspondentemente, o crescimento da economia desacelera e, ao fim, advém a recessão. É o ciclo da crise no capitalismo liberal: se investe menos em capital produtivo, se destrói e inutiliza capital e riqueza em ritmo mais acelerado e o crescimento da economia desacelera e regride, com o corolário de desgraças sociais que isto traz. As grandes crises capitalistas são caracterizadas, enfim, pela queima de capital, sucateamento acelerado de setores e métodos produtivos, recessão, desemprego e pobreza, que perduram até que um novo ciclo de investimento e inovações possa criar novas condições de desenvolvimento.

Na atual onda (neo)liberal da economia mundial, como não poderia deixar de ser, pois isto é realmente próprio da lógica econômica capitalista liberal, a concentração de riquezas realmente veio se acentuando muito ao longo das últimas décadas, no interior dos países, em geral, no sistema capitalista mundial, trazendo, ao fim, até mesmo nos países mais ricos, perdas significativas no poder de compra das massas. Agora, novamente, chegamos a um ponto extremo de desigualdade na distribuição da riqueza social e estamos vivendo um longo período de crises econômicas sem solução razoável, com redução do crescimento, recessões e empobrecimento de populações nos próprios centros do sistema capitalista mundial, e com ampliação da presença e do risco de guerras. Atualmente, desde 2007, para ser mais preciso, estamos vivendo esta fase de grandes crises econômicas do fim de uma onda liberal no sistema capitalista mundial. De fato, os dois únicos registros de recessão global anual, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, estão neste período, nos anos de 2009 (-1,4%) e 2020 (-3%). Creio ser relevante destacar que a queda do PIB global de 2009 começou no final de 2007 e a de 2020 começou em 2018 e que houve, em ambos episódios, é claro, um grande peso das recessões norte-americanas.

A resposta propriamente liberal a estas crises sistêmicas da economia capitalista é dobrar e triplicar a sua aposta, defendendo, com todos os recursos ideológicos e materiais possíveis, a concentração das riquezas que está, no entanto, no cerne da própria crise. Apostam que, com mais liberalismo, com mais liberdade e poder econômico para os capitalistas, com mais capitalismo, como eles mesmo dizem, vão conseguir vencer as crises que foram criadas justamente por isto mesmo. Portanto, as respostas liberais resultam apenas na permanência e no agravamento das crises, ficando cada vez mais e mais difícil sustentar racionalmente esta insanidade. E, é nestas condições que as soluções mais irracionais, delirantes e macabras, do fascismo e da guerra, tornam-se mais prováveis, mais aceitáveis e, até mesmo, mais necessárias para o capitalismo liberal. Uma grande onda liberal resulta, necessariamente, em crises econômicas sistêmicas, de muito difícil resolução, dentro dos próprios marcos do capitalismo liberal. Neste aspecto, o próprio capitalismo liberal pede o seu fim. Mas, apenas através de grandes crises, violência e sofrimento desnecessários. Não conseguindo se realizar de modo sistêmico, a economia capitalista liberal tende a exacerbar as suas piores características, insistindo no erro e indo ao delírio para preservar a lógica de concentração da riqueza e os privilégios de poder do capital. Exacerbam-se a exploração e a concentração de riquezas, o desequilíbrio produtivo, a perda de investimentos, a dissociação da produção das necessidades populares e a destruição da natureza, por exemplo, com seus correspondentes de aumento da pobreza, da violência, da opressão, das guerras e mortes desnecessárias. E é justamente o que estamos vivendo no presente. Este é o fim da atual onda liberal. E cada movimento no cenário econômico e político mundial no momento deve ser compreendido dentro deste quadro geral de crise sistêmica do capitalismo, no fim de uma onda liberal.

É sempre necessário lembrar, contudo, que tudo isto está aí, presente, agora, mas sobre um grande colchão regulatório e protetor trazido pelas conquistas sociais históricas, desenvolvidas dentro do capitalismo, e que persistem ainda hoje, mesmo depois de tantas décadas da onda liberal atual. Todo um aparato de proteção social e de regulação e intervenção pública nos mercados financeiros e produtivos se desenvolveu, e ainda se aplica, disseminadamente, de um modo ou de outro, no mundo atual, para controlar estas crises, minorar seus efeitos e reduzir as suas sequelas.

Não é realmente possível fazer uma análise objetiva do que seria a economia capitalista mundial sem os mais diversos instrumentos de intervenção e regulação públicas do Estado na economia e na vida social em geral. Mas eu sou daqueles que têm certeza que os mais diversos instrumentos socializantes têm se desenvolvido, no interior do capitalismo, a bem da humanidade. Os avanços sociais na regulamentação e controle dos mercados e nos sistemas e serviços públicos de proteção e promoção social foram, e continuam sendo, fundamentais e decisivos. Eles evitaram no passado, e certamente estão evitando, hoje, maiores atrasos e regressões da economia capitalista, ou seja, da economia social mundial. É mais do que razoável conceber que a coisa estaria bem pior se não tivéssemos desenvolvido estes conceitos e práticas socialistas no interior do sistema capitalista, mundialmente, e se ainda estivéssemos, hoje, apenas dotados dos recursos sistêmicos do capitalismo liberal. As grandes crises econômicas do sistema, antes destes avanços socializantes, surgiam como insolúveis, a não ser à custa de grandes recessões e depressões econômicas, empobrecimento em massa, conflitos sociais violentos e guerras de grandes proporções. As forças destrutivas do modo de produção capitalista, por sua lógica inerente mesmo, são grandes demais e a alternativa ao desenvolvimento das estruturas e recursos socializantes seria a repetição das grandes crises, das depressões econômicas e das guerras, ainda mais virulentas e destrutivas, do que já têm sido. Ou seja, são os recursos e instrumentos de caráter socializantes que estão evitando a repetição, na atualidade, do caráter mais destrutivo das crises sistêmicas do capitalismo mundial, que deveriam ter, hoje, proporções ainda maiores do que na primeira metade do século passado. Com certeza, os muitos trilhões de dólares, injetados na economia pelos Estados e instituições públicas, nos últimos 15 anos, em programas anticíclicos de recuperação e incentivo econômico e de proteção social, foram suficientes para garantir um quadro econômico e social muito menos desesperador do que aquele de meados da primeira metade do século passado. Mas, o caminho para sairmos realmente da grande crise sistêmica do capitalismo liberal do século passado foi, essencialmente, de grande redistribuição da renda e de ampliação significativa do socialismo no capitalismo e, agora, não será diferente. Agora, chegamos ao ponto em que os limites da onda liberal atual já foram atingidos e ela trouxe o próprio centro do sistema capitalista mundial a uma sequência de crises sem solução razoável, crescimento econômico baixo e recessões, aumento de gastos militares e empobrecimento. Chegamos ao ponto em que as respostas liberais se esgotaram e em que não há saída fora de um novo avanço social decisivo, significativo e persistente, no sistema capitalista mundial. Agora, iremos para uma nova onda socializante. Na realidade, hoje, já estamos no início dela e apenas guerras e crises ambientais extremas podem atrasar ou barrar, momentaneamente, o seu processo.

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