Pelbart crê na Ofensiva Sensível

Novo livro aponta: o afeto é campo de batalha, hoje ocupado pelo neoliberalismo e seu produtivismo viril. Mas valores ligados ao feminino poderão resgatá-lo: e o cuidado e o frágil são potências para reconfigurar o cotidiano e a política

Imagem: Rui Palha
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Esta é a introdução à edição brasileira de A ofensiva sensível, livro de Diego Sztulwark publicado pela Editora Elefante, parceira editorial de Outras Palavras. Quem contribui com nosso jornalismo tem desconto de 25% em todos os títulos publicados pela editora. Saiba como apoiar.

O desafio que enfrenta o livro de Diego Sztulwark já se apresenta no título: A ofensiva sensível. Como introduzir a esfera sensível no campo político? O sensível costuma ser associado ao domínio das artes, às práticas do cuidado, à esfera do feminino. Já o poder costuma se conjugar com os verbos vencer, comandar, impor, dominar. A sensibilidade é vista como afeita à nuance, à delicadeza, até a certa passividade, enquanto o político é concebido como ação, organização, planejamento, previsão. A primeira seria da ordem da receptividade, da reverberação, da intuição, dos afetos; o segundo, da força, do cálculo, da esperteza. Eis uma polaridade repleta de clichês, cuja matriz certamente se apoia na contraposição entre os gêneros, que a luta feminista colocou inteiramente em xeque.

Ora, não será esse um dos impasses do político trazidos à luz nas últimas décadas — o paradigma falocêntrico, francamente sexista, que, por milênios, não apenas trancafiou as mulheres no lar enquanto deixava aos homens a gestão dos negócios da cidade, mas concebeu o exercício do próprio poder como sendo da ordem da guerra e da morte, reservando ao feminino o lugar da fragilidade e da vulnerabilidade?

Apenas há poucas décadas reconheceu-se a dimensão intolerável dessa fabricação histórica. Judith Butler, Silvia Federici, bell hooks, para mencionar somente autoras recentes, dão conta dessa repartição como uma operadora de violência, repressão, expropriação, silenciamento.

As consequências dessa descoberta não são poucas. Entre outras, um borramento das fronteiras que permite à fragilidade e à vulnerabilidade, em parte ligadas ao cuidado, revelarem-se como uma potência política.

Esse não foi o único ponto em que as cartas se embaralharam. Paralelamente, a própria teoria política deu um salto numa direção paradoxal. Por exemplo, começou-se a conceber o exercício do poder como uma espécie de cuidado (do rebanho, da população, da vida) e vice-versa — certo tipo de cuidado começou a ser visto como uma forma de poder (na medicina, na pedagogia, na psicologia, na psiquiatria, na psicanálise etc.). Coube a Michel Foucault descortinar esse campo vasto ao qual finalmente deu o nome de biopolítica ou biopoder. Alguns viram nisso um exercício de poder mais incisivo e penetrante, que atinge, agora, a própria vida. Outros, fiéis à ideia de que todo poder é indissociável de uma resistência, vislumbraram novas modalidades de contrapoder apoiadas na vida em si mesma. Ao poder sobre a vida responde a potência da vida, ao biopoder responde a biopotência. Em todo caso, nessa fita de Möbius, a textura vital e sensível ganha um novo alcance.

Constatou-se que o exercício do poder já não consistia apenas em domar os corpos, expropriar sua força de trabalho, apropriar-se dos bens e riquezas, monitorar a vida da população, otimizando seu rendimento, mas também capturar os afetos, laçar as almas, exercer a sedução, produzir desejos, formatar a subjetividade.

Eis-nos, pois, de volta ao livro de Sztulwark. Diz o autor: “o sensível se tornou um campo de batalha”. Não há poder contemporâneo que não invista no plano dos afetos, que não dependa deles, que não invente estratégias as mais insidiosas para capturar ou manipular essa dimensão elementar, pré-discursiva, inconsciente, que a racionalidade ou a argumentação apenas encobrem.

É verdade que o próprio populismo é impensável sem o apelo às emoções primárias, à identificação com um chefe, à demanda de proteção. Contudo, no presente, ainda mais desafiador é entender como o neoliberalismo inventou toda uma tecnologia micropolítica para atingir o plano da sensibilidade. “Chamamos de neoliberalismo, portanto, o devir micropolítico do capitalismo, suas maneiras de fazer viver.”

Os exemplos elencados pelo autor são os mais variados, e não cabe aqui dar qualquer spoiler. Já seria uma contribuição de porte rastrear, na literatura política, filosófica, psicanalítica contemporânea, internacional ou especificamente latino-americana, a análise minuciosa de tais mecanismos, e reportá-los com clareza, de maneira sucinta, para além das pequenas divergências entre autores.

No entanto, o outro lado da moeda importa tanto quanto esse. Se o poder se exerce no campo sensível, quais modalidades de revide, antagonismo, escape ou deserção se exercem e se inventam com base nesse mesmo campo sensível? Que outras táticas vão surgindo? O desafio consiste em não espelhar os modos de ação valorizados majoritariamente — daí a própria recusa de vários vetores minoritários em utilizar ainda essa figura bélica e defensiva que o termo resistência evoca — e na insistência em investir numa direção outra, chame-se ela molecular, desejante, nômade, criadora, acontecimental.

Seria fácil supor que os “adversários” se encontram em tabuleiros distintos (macropolítico/micropolítico, material/imaterial, objetivo/subjetivo, masculino/feminino). Nada mais enganoso. O que está em jogo, para além das lutas evidentes — a olho nu ou na microscópica perspectiva —, é justamente a dimensão sensível e seus efeitos transversais sobre os demais planos. Sem dominá-la, o jogo não pode ser vencido. Ou, na linguagem que recusa exatamente o dominar ou o vencer: o sensível torna-se força ativa. Eis a origem do paradoxo enfrentado por aqueles que mais parecem insensíveis ao sensível, mas não podem deixá-lo aos adversários, sob pena de perderem seu domínio.

Daí também a ambiguidade do título. Como ver que o sensível não é apenas passividade, receptividade, vulnerabilidade, inação? A ofensiva sensível se dá tanto do lado dos dominantes (“o sensualismo do capital é despótico”) como dos dominados, para quem essa dimensão antagonista embutida no sensível é decisiva, embora não esgote a luta. A meu ver, o interesse maior do estudo do autor reside no mapeamento desse campo sensível, no qual se trava, na surdina, a verdadeira batalha política.

Tal cartografia só é possível graças a uma nota spinozana que retorna ao modo de um ritornelo: o afeto não é um sentimento, mas uma potência, e justamente uma potência de metamorfose. Uma potência, por definição, é constituída por um poder de afetar e de ser afetado. Ora, ser afetado não é da ordem de uma mera receptividade; é uma capacidade, e das mais relevantes. Que nos baste evocar a capacidade de escutar música contemporânea — não é suficiente fechar os olhos e sentir; há aí um pensamento, uma intensidade, uma conjugação necessária entre sensibilidade e pensamento. Na música ou na psicanálise, na política ou na filosofia, não sei se há menos potência no ouvir do que no fazer.

Contudo, o autor deste livro não se deixa arrastar para o campo estético, no qual sua hipótese teria mais chances de alçar voo sem enfrentar, por assim dizer, a “prova de realidade”. Ele tem a pretensão explícita de pensar como, no campo do embate político atual, num contexto em que se alternam ou se conjugam populismo e neoliberalismo, seria possível ativar uma dimensão que fosse como que o avesso do político, mas capaz de atingir seu coração. “Se pensar de outra maneira requer sentir de outra maneira, a batalha das ideias deveria ser precedida, ou pelo menos acompanhada, por uma ofensiva sensível”.

Ao lado das várias guerras que nos atravessam, está a guerra entre formas de vida (o autor prefere pensar numa contraposição entre modos de vida e formas de vida, mas deixarei de lado, aqui, tais nuances terminológicas). Um dos pontos altos do livro é sondar, por exemplo, uma forma de vida dita plebeia na Argentina, situada em bairros populares e ilustrada por Diego Valeriano com o mote “o consumo liberta”, como que virando do avesso o imperativo da inclusão pelo consumo. Escreve ele:

Nem filha, nem trabalhador, nem classe, nem operário qualificado, nem lumpesinato, que dirá ascender socialmente. Deserção de todas as normas. Começar, marcar posição, colocar uma barraquinha de sanduíche na Ruta 4, mudar de mil formas, ser malandro, ser entregador, ser bandido. Nem aluna, nem office-boy, nem peão, nenhuma corrida longa, nem futuro, nem pobre. Motorista particular que vende droga, pau-mandado, ir à manifestação para ganhar o lanche. Não aceitar as regras do jogo, fazer novas, abandoná-las conforme a conveniência. Transformar-se em confronto a céu aberto. Tênis de bandido, bebida barata do mercadinho chinês, todas as bandidas dançando de sutiã, os negros virados sem camisa num domingo. Uma gestão disposta da existência, não aceitar o pouco que lhe cabe.

E o comentário lúcido do autor:

Essa pragmática pode ser qualificada como plebeia menos por sua realidade sociológica do que, pelo contrário, por um ponto de vista puramente maquinal: coloca em ação um tipo de funcionamento centrífugo, um extravasamento ocasional e, às vezes, apenas gestual da regulação burguesa da existência, cuja estrutura não é capaz de transformar nem se propõe a fazê-lo. O âmbito plebeu está vinculado às percepções específicas de um sujeito que não é nem puramente vítima nem puramente passivo, que não se deixa tomar como um excluído a incluir nem como um empreendedor a incentivar.

Atento a essas e a muitas outras experiências, incluindo aquelas que lhe foi dado presenciar quando integrava o Situaciones, um coletivo de investigação participativa, Sztulwark reitera que é preciso “politizar o mal-estar”, “escutar o sintoma”, vulnerabilizar-se, compondo

uma vitalidade muito diferente da afirmação viril do produtivismo. Uma afetividade não neoliberal pode dar lugar a um vitalismo turvo, impuro, que extraia sua força da experiência da fragilidade. Talvez a percepção politicista não seja capaz de captar o potencial sintomático dessas afetividades, de suas possíveis concreções políticas.

Eis justamente o desafio: apostar numa percepção não politicista. Deleuze dizia que a política é uma questão de percepção.

A mudança de perspectiva que assim se vislumbra neste livro nos reconecta com uma aposta que se encontra no ar do tempo entre autores muito diferentes, de León Rozitchner a Félix Guattari, de Franco Bifo Berardi a Rita Segato e Suely Rolnik: “Corpos e textos parecem querer comunicar o mesmo: a impossibilidade de relançar o político externamente a uma nova centralidade do erótico, do sensual e do sensível”.

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