Pandemia implodirá a Segurança Pública?

Em diversos países, registram-se rebeliões em presídios, mais feminicídios e policiais infectados. Mas Brasil vacila em aproveitar hotéis vazios para acolher mulheres, reduzir população carcerária e até em treinar e proteger força policial

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No mundo todo, a pandemia causada pelo coronavírus (COVID-19) tem gerado consequências políticas. Governos de todos os países têm agido, não só na óbvia questão sanitária para frear a proliferação da doença, como também com medidas socioeconômicas que reduzam os impactos da crise e da paralisia sobre a população.

Para além das questões de emprego, abastecimento e renda, outra área social bastante impactada em todo o mundo é a da segurança pública. Aparatos policiais vêm sendo amplamente usados por governos na tentativa de fazer valer as regras de isolamento impostas a cada população, aumentando o risco de contágio por estes profissionais. No sistema penal, o medo de que a doença chegue aos estabelecimentos prisionais tem causado algumas movimentações nas Justiças Criminais ao redor do mundo. Sem as devidas medidas, ambas as situações podem levar o sistema de segurança pública das nações ao colapso.

Na contramão dessa preocupação com o sistema penal, porém, alguns países têm apostado em medidas de encarceramento como forma de impor as regras de isolamento social. Países como Índia, Filipinas, Equador ou Costa do Marfim já apresentam números preocupantes nesse sentido, que podem levar a sérias questões humanitárias. Nas Filipinas, por exemplo, pessoas têm sido submetidas a cárceres humilhantes em gaiolas a céu aberto. Já em El Salvador, prisões arbitrárias estão sendo realizadas sem a presença de juízes e advogados. Além disso, a inserção indiscriminada de novas pessoas em prisões, nesse momento de pandemia, aumenta as chances de que o vírus chegue ao interior dos cárceres.

Talvez por essa preocupação, aliás, outros países apostam em medidas não penais para garantir a eficácia das regras de isolamento. França e Alemanha, por exemplo, até estabeleceram penas a quem quebre as regras, mas a aplicação delas é branda e facilmente contornável, como o caso francês, em que a simples apresentação de documentos pode livrar de pena. Na Itália, as penas restringem-se aos doentes que furam a quarentena, enquanto pessoas saudáveis, a exemplo de outros países, ficam sujeitas apenas a multas.

Mas as preocupações dos países com a COVID-19 e o cárcere não se restringem a evitar novas prisões. Medidas de redução da população carcerária têm sido vistas em vários países, como a libertação de mais de 54 mil pessoas no Irã. Outros países ainda analisam possíveis medidas, como a redução de prisões preventivas pelo MP no Chile ou as recomendações para a libertação de presos em fim de pena, grávidas ou com filhos menores na Argentina.

Algumas regras para barrar a chegada da doença nos presídios, porém, podem gerar outros problemas. Em todo o mundo, a suspensão de visitas aos presos tem gerado grande insatisfação e tumultos no sistema carcerário. Rebeliões vem sendo registradas em muitos países, sobretudo na América do Sul, onde Colômbia, Uruguai, Argentina, Peru, Venezuela e Equador já registraram motins entre presos.

O Brasil não escapou a essa regra também. Logo no início da crise, o estado de São Paulo já registrou rebeliões em sete presídios, incluindo a fuga massiva de encarcerados. Mas o medo que assola a população prisional não é injustificado. O sistema penal brasileiro é altamente vulnerável a uma doença contagiosa como a COVID-19. Um sistema no qual 33,3% (234 mil) da população encontra-se em estabelecimentos sem unidades de saúde e onde 62% das mortes são causadas por doenças transmissíveis. Uma situação grave de forma geral, mas especialmente perigosa para os cerca de 8 mil presos com mais de 60 anos de idade.

Pouco tem sido feito, porém, para que essa situação de calamidade seja evitada. O Ministério da Justiça comandado por Sérgio Moro, por exemplo, parece inerte, se limitando a emitir protocolos genéricos de higiene aos presídios e recomendando a suspensão de visitas. Mais abrangente foi o CNJ que, por meio da Recomendação 62/2020, estabeleceu uma série de medidas para a redução da população prisional, apontando para a libertação de grupos de risco e de presos em regimes mais brandos. As medidas, porém, como o próprio nome diz, não passam de recomendações, ficando a cargo de cada juiz aplicá-las ou não. Já há relatos, porém, de estados que têm agido para segui-las, como São Paulo (1.227 libertos), Rio Grande do Sul (1.878 libertos) e Santa Catarina (mais de mil libertos), números ainda insuficientes frente a um sistema carcerário que recebe o dobro da sua capacidade.

Mas não é só no sistema prisional que os impactos do coronavírus preocupam a segurança pública. Da fiscalização de estabelecimentos à aplicação das sanções a quem desrespeita regras de isolamento, passando pela conscientização das pessoas nas ruas, as forças policiais têm sido usadas no mundo todo em ações que visam o combate à epidemia. O que se pode observar nesses movimentos, porém, é que, quanto mais rígidas as regras de isolamento, mais ostensiva é a atuação policial.

Nesse contexto, alguns países já apresentam casos explícitos de violência policial, como na Índia, onde agentes submetem pessoas fora do isolamento a humilhações públicas que são, inclusive, gravadas pelos agentes. Nas Filipinas de Duterte, na Colômbia, no Paraguai e no Equador também são vários os relatos de violência policial em vídeos que já povoam a internet. Em vários países também se observa o auxílio das Forças Armadas nas atividades policiais, tais como Argentina, Chile, Bolívia, Equador e Filipinas.

A onda de extrema-direita no mundo e, especificamente na América do Sul, de governos tomados por golpes com ligações militares acende um sinal de alerta para o uso da pandemia como justificativa para autoritarismo e violência policial. No Peru, por exemplo, é preocupante a nova legislação que isenta de pena policiais e militares que matarem ou ferirem pessoas no exercício da fiscalização das medidas de isolamento. No Reino Unido, já há plano emergencial para aumentar os poderes da polícia no caso de piora da pandemia.

Mas não são só os riscos autoritários que preocupam quando o assunto é a atividade policial. O caráter altamente contagioso da COVID-19, bem como sua alta capacidade de levar a internações, aponta para outro risco: o de colapso dos sistemas de segurança pública ao redor do mundo. A possibilidade das instituições policiais verem seus efetivos drasticamente reduzidos do dia para a noite já se mostra realidade em alguns lugares. Na França, delegacias vem sendo fechadas pelo alto número de policiais infectados ou de quarentena. Na cidade de Toulouse, por exemplo, 20% do efetivo já foi afastado. Em Nova York, nos EUA, novo centro mundial da pandemia, 500 policiais já foram infectados e mais de 3 mil apresentaram sintomas.

Para se ter uma ideia do tamanho do risco, uma única prisão por tráfico em Portugal acabou resultando no afastamento de 16 policiais para quarentena. Atento a essa situação, o Reino Unido, por exemplo, já apresentou plano para suas forças de segurança no caso do agravamento da pandemia, reduzindo as atividades policiais para focar apenas em casos mais graves e na manutenção da ordem. Outras medidas também podem ser eficazes para reduzir o contágio entre os policiais: o uso de drones realizado na China ou em El Salvador possibilitou o trabalho remoto de policiamento, e, em Cuba, foram médicos e trabalhadores da saúde que tomaram a frente de ações de rua no monitoramento da doença.

O Brasil também já vem sentindo os impactos da pandemia em suas instituições policiais. Por aqui, os agentes de segurança pública também estão sendo usados na conscientização das pessoas nas ruas e na fiscalização das regras de isolamento para estabelecimentos comerciais. Outa mudança já observada em todos os estados é o funcionamento da Polícia Civil, que ampliou o rol de crimes que podem ser denunciados pela internet, deixando o atendimento presencial apenas para crimes mais graves.

Fora isso, porém, os estados brasileiros parecem tomar poucas precauções para a proteção dos policiais. Esta negligência é duplamente arriscada, pois, além de colocar a saúde dos policiais em risco, estes podem se tornar propagadores da COVID-19, já que suas atividades os colocam em contato direto com muitas pessoas ao longo do dia. Atentos a isso, alguns estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais ou Pernambuco, vêm garantindo direito de trabalho remoto a policiais em grupo de risco. Fora isso, vê-se algumas ações pontuais, como o treinamento de bombeiros na Bahia para desinfecção e descontaminação ou a distribuição de EPIs para PMs no Ceará.

A inação dos estados para a proteção da saúde dos policiais é preocupante. Segundo levantamento do Fonte Segura, usando dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública de 2017, há aproximadamente 15 mil policiais civis e militares com 56 anos ou mais, ou seja, no grupo de risco. Nas polícias civis, a faixa chega a 12% do efetivo. E não só os grupos vulneráveis podem ter problemas, é claro. Em São Paulo, já se tem a notícia de 600 policiais afastados em quarentena.

Em uma situação de agravamento da crise social no país, com o governo não oferecendo suporte suficiente aos que perderam sua fonte de renda, não se pode descartar um cenário de distúrbios cada vez mais comuns. Nesse sentido, a falta de preparo dos estados para manter o funcionamento das atividades policiais é preocupante. Apenas a Bahia mostrou algum tipo de plano, regulando o chamamento de policiais da reserva, mas nem mesmo o estado baiano apresentou um plano em que se possa realizar as atividades policiais de forma reduzida para evitar a exposição desnecessária de policiais ao contágio.

Por fim, há ainda a questão do aumento da violência doméstica em tempos de confinamento. Em todo o mundo, aliás, esta parece ser uma preocupação. Países como Colômbia, Uruguai e Paraguai reforçaram linhas de denúncia para esse tipo de crime e mantiveram a continuação, com novos protocolos de higiene, dos serviços de proteção a mulheres e crianças. O Uruguai prorrogou medidas protetivas já concedidas a mulheres, e a Ministra da Família na Alemanha recomendou que abrigos para vítimas de violência doméstica continuem funcionando. São ações que têm sido replicadas também no Brasil, onde o problema sempre atingiu números assustadores.

Como se pôde perceber aqui, os impactos da pandemia da COVID-19 podem ser maiores do que se espera, podendo, inclusive, culminar com o colapso do sistema de segurança pública. No Brasil, não há tempo a perder, e o Governo deve agir com urgência. A implementação das medidas propostas na Recomendação 62/2020 do CNJ para reduzir a população prisional, por exemplo, deve acontecer imediatamente.

Medidas eficazes para a proteção da saúde dos policiais devem ser tomadas já, não só com equipamentos de proteção e treinamentos, mas também com a alteração dos regimes de trabalho dos policiais, implantando técnicas e tecnologias, como drones, que permitam o trabalho remoto de policiamento, evitando a exposição desnecessária destes agentes ao vírus. Manter o funcionamento de serviços de proteção às vítimas de violência doméstica, como as “Rondas Maria da Penha” e as casas de acolhida, também é essencial, inclusive usando-se da rede hoteleira disponível para utilização como casas de abrigo onde necessário.

Por fim, deve-se dizer que, num momento de ascensão da extrema direita e da proliferação de golpes militares na América do Sul, todo cuidado é pouco. É preciso estar atento ao uso político da pandemia por grupos autoritários e, no Brasil de Bolsonaro, esse é um risco muito próximo de se tornar realidade. É fundamental que qualquer Gabinete de Gestão de Crise seja comandado por instituições civis e tenha a ampla participação de membros representativos da sociedade civil. Em países como o Brasil, não é só o coronavírus que ameaça as nossas vidas.

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