Gaza: Os campos de concentração biométricos
Massacre de 31 palestinos na fila da comida expõe como Israel planeja sua “ajuda humanitária”. Fundação obscura, criada por mercenários dos EUA, a fará com vigilância orwelliana. Objetivo: forçar deslocamentos e consolidar a limpeza étnica
Publicado 02/06/2025 às 19:43 - Atualizado 02/06/2025 às 19:50

Por Bruno Sgarzini, no Other News | Tradução: Rôney Rodrigues
Uma fundação obscura está prestes a substituir as organizações humanitárias internacionais na entrega de ajuda a Gaza, em meio aos planos israelenses para deslocar milhares de palestinos e uma fome que afeta meio milhão de habitantes de Gaza devido ao bloqueio, ordenado pelas autoridades israelenses desde março deste ano, para pressionar o Hamas a liberar os reféns israelenses. O plano inclui que a entrega de ajuda humanitária seja custodiada por mercenários de duas empresas lideradas por ex-membros da Agência Central de Inteligência (CIA), do Pentágono e da contratante militar Costellis, herdeira da conhecida empresa de mercenários Blackwater.
Depois de proibir a Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Médio e bloquear o trabalho de organizações humanitárias internacionais, Israel tenta novamente criar um dispositivo de ajuda humanitária que terceirize sua responsabilidade de garantir direitos alimentares na Faixa de Gaza. Segundo o advogado Itay Epshtain: “as obrigações de Israel como potência ocupante derivam, entre outros, dos artigos 43 e 48 do Regulamento de Haia, e do artigo 59 da Quarta Convenção de Genebra. Se a totalidade ou parte da população de um território ocupado carece de suprimentos suficientes, deve aceitar planos de socorro, em nome e no interesse da população palestina — não em seu próprio interesse —, e deve facilitá-los por todos os meios ao seu alcance. O artigo 59 estabelece que as atividades de socorro devem ser realizadas por organizações humanitárias imparciais e capazes”.
No passado, Israel e Estados Unidos tentaram fazer o mesmo com a construção de um píer para receber ajuda humanitária, que seria dirigido por uma empresa de ex-militares estadunidenses, mas acabou afundando após ser usado para uma operação israelense de resgate de reféns nas mãos do Hamas. Também pretenderam estabelecer o que chamaram de “bolhas humanitárias” em algumas zonas de Gaza, custodiadas por chefes de clãs da Faixa e contratantes militares israelenses, onde seria entregue ajuda humanitária depois que os “beneficiados” passassem suas digitais e rostos por scanners biométricos para verificar que não eram militantes do Hamas. A iniciativa estava dentro do marco do famoso Plano dos Generais, elaborado por militares israelenses, que projetava uma ocupação permanente do norte de Gaza.
E foi vazada para a mídia após uma chamativa nota na revista do Pentágono estadunidense do “especialista” Omer Dostri, porta-voz de Netanyahu desde agosto de 2024. Na publicação, falava-se que um plano como este poderia estabelecer um regime colaboracionista que deslocasse, de forma permanente, o Hamas e a Autoridade Nacional Palestina da administração de Gaza, um objetivo de longa data do governo israelense.
Desta vez, o plano não é tão diferente dos anteriores: o gabinete de Benjamin Netanyahu aprovou a entrega de ajuda humanitária, alimentos e medicamentos, através da Fundação Humanitária de Gaza, uma entidade registrada em fevereiro deste ano na Suíça. Para isso, as Forças de Defesa de Israel (FDI) constroem quatro pontos de distribuição que ficariam a cargo da fundação, segundo imagens de satélite revisadas pelo jornal Haaretz. Três dos pontos estão atrás do corredor Netzarim, que os militares israelenses fortificaram com checkpoints e bases militares para dividir o norte do sul de Gaza.
Segundo Netanyahu, Israel pretende “criar grandes zonas seguras no sul de Gaza. A população palestina se deslocará para lá por sua própria segurança, enquanto nós combatemos em outras zonas”. Para o jornal israelense Haaretz: “os militares israelenses controlarão um perímetro exterior, enquanto contratantes privados assegurarão e operarão um centro de distribuição dentro da zona. Especialistas humanitários estimam que entre 2.000 e 3.000 gazenses cruzarão essas linhas diariamente, após passar por uma identificação biométrica e várias fileiras de soldados armados e contratantes, segundo a formulação atual do plano”. Em seu relatório “Mapeamento de um Genocídio”, a Forensic Architecture afirma que “Israel destruiu 36% da superfície de Gaza apenas para construir pontos militares e estradas para possibilitar uma ocupação de longo prazo”.
Por isso, a Fundação Humanitária de Gaza desempenha um papel chave para apoiar o que é a reedição deste velho plano israelense; que se conjuga com os chamados dos colonos extremistas para instalar assentamentos no norte da Faixa. Segundo um de seus documentos internos, “distribuiria 300 milhões de refeições nos primeiros 90 dias”. A organização planeja alimentar os palestinos por 1,30 dólares por refeição, cifra que inclui o custo de contratar mercenários estrangeiros para proteger os alimentos e as instalações. “A ajuda será distribuída sem consideração de identidade, origem ou afiliação. Não haverá requisitos de elegibilidade”. As FDI “não estarão estacionadas em ou perto dos locais dos centros de distribuição para manter a natureza neutra e civil das operações”, afirma o documento que teria sido elaborado pelo think tank israelense Tachlith.
Não está claro o respaldo financeiro da operação, apoiada também pelo governo Trump. Até a semana passada, nenhum doador estrangeiro havia aportado fundos, segundo o The Financial Times. Uma fonte, consultada pelo meio, revelou que um país se comprometeu a aportar pelo menos 100 milhões de dólares, mas o dinheiro ainda não se materializou. Há sérias dúvidas se essa companhia é apoiada por algumas monarquias árabes, como os Emirados Árabes Unidos, que nas últimas semanas firmaram importantes acordos com os Estados Unidos durante a turnê de Trump pelo Oriente Médio. Até o momento, Dubai negou qualquer adesão ao plano, enquanto mais de 20 países da Europa e Ásia criticaram a iniciativa, entre eles Reino Unido e Alemanha, dois países facilitadores do genocídio em Gaza.
O certo é que a criação da fundação surgiu de um grupo de ex-funcionários de inteligência e defesa dos Estados Unidos e executivos de empresas preocupados com “o desvio da ajuda por parte do Hamas”, segundo documentos internos da proposta revelados pelo The Washington Post. “A operação substituiria as redes de distribuição de ajuda existentes, coordenadas pelas Nações Unidas. Os civis palestinos teriam que viajar aos centros de distribuição e se submeter a controles biométricos de identidade para receber rações das ONGs. Com o tempo, segundo o plano, os palestinos viveriam em complexos vigiados que abrigariam cada um até dezenas de milhares de civis”, de acordo com o jornal estadunidense.
Seis meses antes de Israel e Estados Unidos apoiarem o plano da organização, um documento interno de 198 páginas levantou as limitações que a iniciativa teria: “por se tratar de uma organização completamente nova sem antecedentes de projetos ou conquistas prévias, a fundação requereria uma estratégia de recrutamento meticulosa para atrair organizações humanitárias internacionais e diretores destacados que aportassem ‘sua própria reputação no âmbito humanitário’”. Por isso, em um rascunho interno da fundação, vazado pela empresa, aparecem, em sua diretoria e assessores, figuras como Nate Mook, ex-CEO da World Central Kitchen, a organização humanitária do chef José Andrés, e David Beasley, ex-diretor do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU.
Os dois negaram, através de comentários à imprensa, pertencer à fundação em um contexto onde tanto organizações humanitárias quanto as Nações Unidas criticaram a iniciativa por não cumprir os princípios humanitários de imparcialidade, neutralidade e independência. Para o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários: “a proposta contraria princípios humanitários fundamentais e parece desenhada para reforçar o controle sobre os artigos essenciais como tática de pressão dentro de uma estratégia militar. É perigoso, além disso, pois obriga a população civil a se deslocar para zonas militarizadas para coletar rações, o que põe em perigo a vida, inclusive dos trabalhadores humanitários, ao mesmo tempo que consolida ainda mais o deslocamento forçado”.
Diante do êxodo de personalidades relacionadas ao mundo humanitário por suas reservas éticas (inclusive Tony Blair se distanciou da iniciativa), a fundação ficou composta em sua diretoria por uma multiplicidade de ex-militares, ex-funcionários estadunidenses e figuras desconhecidas, como seu presidente, David Papazian, ex-diretor do Fundo de Interesses Nacionais da Armênia e executivo da companhia aérea low cost Fly Arna Airlines. Entre eles, destacam-se personagens como Jake Wood, diretor-executivo da fundação, um veterano da Marinha dos Estados Unidos que dirigiu a agência de ajuda em casos de desastre Team Rubicon, David Burke, diretor de operações, também um fuzileiro naval aposentado e colega de Wood no Team Rubicon, John Acree, chefe de Missão que foi líder de resposta a desastres e catástrofes da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o tenente-general reformado Mark C. Schwartz, ex-coordenador de Segurança dos Estados Unidos para Israel e a Autoridade Palestina, Raisa Sheynberg, vice-presidente de Assuntos Governamentais na Mastercard que, antes, trabalhou no escritório de Terrorismo e Inteligência Financeira do Departamento do Tesouro e foi diretora do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para Comércio e Investimentos Internacionais durante o governo Obama.
Um dos temores iniciais dos organizadores do projeto foram as possíveis acusações de que seus centros de distribuição de alimentos e complexos residenciais fossem “campos de concentração com reconhecimento biométrico”, dirigidos por uma organização vinculada a Israel. Ao que parece, apesar das dúvidas sobre a capacidade da “fundação”, o plano segue em marcha e só se permitiu o acesso de ajuda humanitária a Gaza, por parte de organizações internacionais, até que esteja em funcionamento.
A criação dessas “bolhas humanitárias” remonta ao final de 2023, quando a unidade do Ministério da Defesa Israelense encarregada da “ajuda a Gaza” começou a formular planos para “confinar os civis palestinos dentro de zonas seguras enquanto as FDI combatiam os militantes do Hamas do lado de fora”. A ideia de estabelecer “sistemas de identificação biométrica para controlar os palestinos que coletassem a ajuda foi de Liran Tancman, empresário e reservista da unidade de inteligência de sinais 8200 das FDI”, responsável por desenvolver ferramentas de espionagem e uso de IA para atacar os Territórios Palestinos Ocupados, segundo o The Washington Post.
Um elo chave para concretizar a ideia de criar esta fundação foi Phil Reilly, oficial paramilitar aposentado da CIA e ex-chefe de estação da agência no Afeganistão, a quem os funcionários israelenses comentaram seu plano e a intenção de que os Estados Unidos se envolvessem na liderança da iniciativa para evitar vinculações com Tel Aviv (isso explicaria a enorme quantidade de ex-funcionários estadunidenses no conselho da fundação). Por essa razão, a iniciativa foi anunciada em 9 de maio por Mike Huckabee, embaixador dos Estados Unidos em Israel e de boa relação com figuras pró-israelenses como Miriam Adelson, viúva do magnata dos cassinos Sheldon Adelson, um dos principais financiadores de Netanyahu.
Reilly, que planejou nos bastidores a fundação segundo o Washington Post, é o diretor-executivo da Safe Reach Solutions (SRS), uma das duas contratantes militares encarregadas da segurança das “bolhas humanitárias”. A companhia teve presença em Gaza durante o último cessar-fogo entre Hamas e Israel, graças ao apoio dos Estados Unidos, Egito, Qatar e as duas forças beligerantes. Sua origem é opaca, pois, em termos patrimoniais, é uma empresa fantasma da firma de gestão Two Ocean Trust LLC, sediada em Wyoming, segundo uma investigação do analista Jack Poulson. Reilly, por sua vez, foi vice-presidente sênior de atividades especiais da Constellis, empresa surgida de uma fusão da contratante Academi, antes conhecida como Blackwater, e a empresa de segurança privada Triple Canopy. Seu pessoal está repleto de antigos tenentes e comandantes do Pentágono estadunidense.
A outra companhia encarregada da segurança da distribuição é a UG Solutions, fundada pelo ex-boina-verde Jameson Govoni, que “ajudou a estabelecer um programa de vigilância para as Forças Especiais do Pentágono que visava ensinar soldados de operações especiais a realizar vigilância e encontrar células terroristas difíceis de localizar em todo o mundo”. Govoni “antes de fundar a UG, descreveu-se como um degenerado de Boston que se alistou no exército o mais rápido que pôde para infligir dor às pessoas que nos infligiram dor”, segundo o jornal israelense Haaretz. A UG Solution, como a Safe Reach Solution, participou com contratantes durante o último cessar-fogo e teria pago a seus mercenários um total de 1.100 dólares diários, acima do salário oferecido na época pela Blackwater.
O ressurgimento do plano de “bolhas humanitárias”, liderado por essas fundações e empresas, é criticado até por generais israelenses por considerá-lo inviável, segundo o The Washington Post. O paradoxo é que, enquanto o governo de Netanyahu acusa o Hamas de atacar os envios de ajuda humanitária, os militares israelenses permitem no sul de Gaza que gangues de narcotraficantes, afiliadas ao Estado Islâmico (ISIS), saqueiem os caminhões com alimentos e medicamentos que chegam do Egito. Inclusive, Yasser Abu Shabab, traficante de drogas e líder de gangues vinculado ao ISIS, comanda um posto de controle em Rafah em uma zona declarada de “extermínio” pelos militares israelenses, segundo Muhammad Shehada, pesquisador do Conselho Europeu para Relações Exteriores.
O que demonstra uma clara coreografia para desestabilizar os envios de ajuda humanitária internacionais, com o objetivo de que a iniciativa das “bolhas humanitárias”, melhor chamadas de campos de concentração biométricos, seja a única alternativa possível para os palestinos.
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