Em Gaza, Israel constrói seu Auschwitz

Uma jornalista palestina vive e narra o horror. Encurralada num gigantesco campo de concentração, população definha e é humilhada. Quem busca comida, arrisca-se às balas. Os corpos se exaurem, em silêncio: falar consome energia demais

Foto: Ahmed Jihad Ibrahim Al-arini/Anadolu via Getty Images
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Por Ruwaida Amer, na 972mag | Tradução: Antonio Martins

Estou com muita fome.

Nunca disse essas palavras com o significado que têm agora. Elas carregam uma humilhação que não consigo descrever por completo. A todo momento, me pego desejando: Se ao menos fosse um pesadelo. Se ao menos eu pudesse acordar e tudo tivesse acabado.

Desde maio passado, depois que fui forçada a fugir de casa e me abrigar com parentes no campo de refugiados de Khan Younis, ouvi essas mesmas palavras, ditas por incontáveis pessoas ao meu redor. A fome aqui parece um ataque à nossa dignidade, uma contradição cruel num mundo que se orgulha de progresso e inovação.

Toda manhã, acordamos pensando numa única coisa: como encontrar algo para comer. Meus pensamentos vão para nossa mãe doente, que fez cirurgia na coluna há duas semanas e agora precisa nutrir-se para se recuperar. Nada podemos oferecer a ela.

Palestinos tentam receber uma refeição quente preparada por voluntários, em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza (20 de junho de 2025). Foto: Abed Rahim Khatib/Flash90

E há minha sobrinha e sobrinho pequenos — Rital, 6 anos, e Adam, 4. Pedem pão o tempo todo. Nós, adultos, tentamos aguentar nossa própria fome para guardar qualquer migalha para as crianças e os idosos.

Desde que Israel impôs um bloqueio total a Gaza, no início de março (só aliviado, marginalmente, no fim de maio), não provamos carne, ovos ou peixe. Ficamos sem quase 80% da comida que costumávamos comer. Nossos corpos estão se desfazendo. Nos sentimos constantemente fracos, desatentos e desequilibrados. Ficamos irritados com facilidade; mas na maior parte do tempo, em silêncio. Falar consome energia demais.

Tentamos comprar qualquer coisa disponível nos mercados, mas os preços não permitem. Um quilo de tomate agora custa 90 shekels (mais de R$ 125). Pepinos custam 70 shekels o quilo (cerca de R$ 95). Um quilo de farinha está 150 shekels (R$ 200). Os números parecem absurdos e cruéis.

Sobrevivemos com apenas uma refeição por dia: geralmente só pão, feito com qualquer farinha que consigamos. Se tivermos sorte, o almoço pode incluir um pouco de arroz, mas mesmo isso não sacia. Tentamos separar um pouco de comida para minha mãe — talvez alguns legumes – mas nunca é suficiente. Na maioria dos dias, ela está fraca demais para ficar em pé, exausta até para fazer suas orações.

Raramente saímos de casa agora, com medo de que nossas pernas cedam. Já aconteceu com minha irmã: enquanto procurava algo nas ruas, qualquer coisa para alimentar seus filhos, desabou no chão. Seu corpo não tinha mais forças para ficar em pé.

Começamos a sentir a profundidade da fome quando o padeiro Abu Hussein, conhecido por todos no campo, reduziu suas atividades. Costumava assar pão para dezenas de famílias por dia, incluindo a nossa – que não têm mais gás de cozinha ou eletricidade para assar em casa. Seus fornos a lenha ficavam ligados de manhã até a noite.

Huda Abu Al-Naja, de 12 anos, acompanhada pela mãe, recebe tratamento para desnutrição no Hospital Nasser em Khan Younis, sul da Faixa de Gaza (25 de junho de 2025). Foto: Doaa Albaz/Activestills

Mas recentemente, foi obrigado a trabalhar cada vez menos dias por semana. Minha irmã chegava em casa e dizia: “O Abu Hussein fechou. Talvez, trabalhe amanhã.” Agora, conseguir massa e farinha tornou-se um sofrimento à parte.

Três gerações de fome

No campo, entendi a verdadeira crueldade desse genocídio: a sufocante superlotação, a massa de refugiados expulsos de suas casas e as histórias intermináveis de fome.

Nesses dias, estou na casa da minha tia, que nos acolheu depois que fomos deslocados e nos abrigou nos últimos dois meses. Como quase todas as construções do campo, sua casa foi quase totalmente destroçada pelos ataques de Israel. Seus irmãos trabalharam dia e noite para consertar o que podiam. Conseguiram deixar um cômodo habitável.

A casa está cheia de netos, cada um em sua própria luta contra a fome. Meu primo mais velho, Mahmoud, é pai de quatro deles. Perdeu quase 40 quilos nos últimos meses. Os sinais de desnutrição são visíveis em seu rosto pálido e corpo emaciado.

Todos os dias, antes de amanhecer, Mahmoud sai para os centros de distribuição de ajuda controlados pelos EUA. Arrisca a vida a cada tentativa, para que seus filhos famintos tenham alguma comida. Desde que cheguei, me conta as mesmas histórias angustiantes dia após dia.

“Hoje rastejei de quatro em meio a uma multidão de milhares”, disse recentemente, mostrando um saco com restos de comida que conseguiu catar. “Tive que pegar o que havia caído no chão — lentilhas, arroz, grão-de-bico, macarrão, até sal. Meus ossos doem de tanto ser pisoteado, mas preciso fazer isso. Não suporto o som da fome de meus filhos.”

Um dia, Mahmoud voltou sem nada. Seu rosto estava sem cor, e ele parecia prestes a desmaiar. Disse-me que o exército israelense havia aberto fogo sem aviso. “O sangue de um jovem ao meu lado respingou em minhas roupas. Por um instante, pensei que tinha sido baleado. Congelei — tinha certeza de que a bala estava no meu corpo.”

Uma mulher palestina deslocada alimenta crianças em Al-Mawasi, no sul da Faixa de Gaza (13 de julho de 2025). Foto: Doaa Albaz/Activestills

O jovem caiu no chão bem à sua frente, mas Mahmoud não pôde parar para ajudar. “Corri mais de seis quilômetros sem olhar para trás. Meus filhos estão famintos e esperando que eu leve comida”, ele disse, com a voz embargada, “Não ficarão felizes se eu voltar para casa morto.”

Meu outro primo, Khader, tem 28 anos. Tem uma filha de 2 anos, e sua esposa está grávida. Está consumido pela preocupação com o bebê por vir, que deve nascer em dois meses. Sua esposa não pode se alimentar direito, e todos os dias ele fica sentado em silêncio, atormentado pelas mesmas perguntas: Essa fome vai prejudicá-la? A criança será saudável ou doente?

Sua filha de 2 anos, Sham, chora o dia todo de fome. Implora por pão. Um dia, um amigo de Khader deu-lhe um punhado de uvas, para ela. Khader ajoelhou-se ao lado de Sham e ofereceu as uvas, mas ela só ficou olhando, brincando com elas nas mãozinhas e não ousando comê-las. Não as reconheceu: em seus dois anos de vida em Gaza, nunca tinha visto uvas antes. Só quando seu pai colocou uma em sua boca e sorriu, ela o imitou, hesitante. Mastigou. Depois, riu.

Corpos em colapso

Um palestino ferido recebe ajuda humanitária de organizações internacionais na Cidade de Gaza, norte da Faixa de Gaza (26 de junho de 2025). Foto: Yousef Zaanoun/Activestills

Muitas vezes fico parada na porta de casa, observando as crianças de Khan Younis. Passam a maior parte do tempo sentadas no chão, olhando para quem passa com expressão vazia. Se peço a uma delas que me compre um cartão de internet para eu trabalhar, ou que chame minha sobrinha na casa do vizinho, respondem com vozes baixas e cansadas. Dizem que estão com fome. Que não comem pão há dias.

Tenho só 30 anos, mas não sou mais a mulher cheia de energia que um dia fui. Costumava trabalhar longas horas ensinando ou escrevendo, mas desde que a guerra começou não tive um momento de descanso. Lido com tarefas domésticas exaustivas — cuidar da minha mãe e da família — enquanto tento continuar documentando e escrevendo sobre tudo o que acontece a meu redor.

Há cerca de um mês, porém, perdi a capacidade de acompanhar as notícias. Minha concentração está falhando. Meu corpo desmorona. Sofro anemia por comer apenas lentilhas e outros legumes há meses. Nos últimos dois dias, não consegui engolir nada devido a uma inflamação grave na garganta — consequência de depender de dukkah e pimentas vermelhas picantes para tentar saciar minha fome.

Mahmoud, um fotógrafo de 28 anos que trabalha comigo em reportagens em vídeo, também está sofrendo. “Não comi nada em dois dias, exceto sopa”, ele me disse recentemente. “Não tenho energia para trabalhar.” Ninguém tem. Trabalhar durante um genocídio exige um nível de força impossível de sustentar. A fome destruiu a produtividade de todos os trabalhadores em Gaza.

Ontem, acompanhei minha mãe ao Hospital Nasser para uma sessão de fisioterapia após sua cirurgia. No caminho, vimos dezenas de pessoas que não conseguiam andar mais do que alguns metros sem precisar descansar. Minha mãe estava como elas: as pernas fracas demais para sustentá-la. Sentou-se em uma cadeira de plástico à beira da estrada, reunindo o pouco de energia que conseguia para continuar.

Uma mulher palestina deslocada faz pão em sua tenda, Al-Mawasi, sul da Faixa de Gaza (13 de julho de 2025). Foto: Doaa Albaz/Activestills

Enquanto continuávamos a caminhar, ouvimos gritos. Jovens corriam em nossa direção, gritando em júbilo: “Tem caminhões de farinha na rua!” Uma multidão enorme se formou. As pessoas corriam desesperadamente em direção a eles pela chance de conseguir um saco de farinha.

Era o caos. Ninguém estava escoltando os caminhões para garantir que todos pudessem receber sua parte em segurança. Vimos a multidão correr para áreas perigosas sob controle do exército israelense, tudo por farinha.

Alguns voltaram com sacos. Alguns foram mortos. Vimos corpos carregados nos ombros de homens, baleados nos mesmos lugares onde a ajuda deveria salvá-los.

18 mortes por fome em 24 horas

Palestinos carregam um homem ferido atingido por fogo israelense enquanto tentavam obter ajuda alimentar na Rua Al-Rashid, no norte da Cidade de Gaza (16 de junho de 2025). Foto: Yousef Zaanoun/ActiveStills

Após a sessão de fisioterapia, saímos do hospital e passamos por mulheres chorando sobre seus filhos famintos, morrendo diante de nossos olhos. Uma mulher, Amina Badir, gritava, agarrando sua filha de 3 anos.

“Digam como salvar minha filha Rahaf da morte”, ela chorou. “Há uma semana ela não come nada além de uma colher de lentilhas por dia. Sofre de desnutrição. Não há tratamento, não há leite no hospital. Tiraram dela o direito de viver. Vejo a morte em seus olhos.”

Segundo o ministério da Saúde em Gaza, o número de mortos por fome e desnutrição subiu para 86 pessoas, 76 das quais crianças. Ontem, anunciou-se que 18 pessoas morreram de fome apenas nas últimas 24 horas. Profissionais de saúde fizeram protesto no Hospital Nasser para pedir intervenção internacional antes que mais pessoas morram de fome.

Não consegui encontrar um táxi para nos levar para casa. Minha mãe esperou no portão do hospital enquanto eu procurava transporte, mas o combustível é escasso e os táxis praticamente não existem. Passei uma hora tentando.

Quando voltei, estava tonta e fraca. Desmaiei. Tentei me manter forte por minha mãe, mas não havia mais ninguém conosco. Ao meu redor, vi mais pessoas desmaiando. Um homem me disse: “Se houvesse comida adequada, sua mãe não teria ficado tão doente.”

Estamos todos tentando confortar uns aos outros, nessa fome sem fim. No Facebook, as pessoas desabafam sua raiva, escrevendo post após post sobre a política de fome que colocou Gaza de joelhos. Não conseguimos mais fazer as coisas mais básicas que pessoas em todo o mundo fazem todos os dias. A fome nos tirou tudo.

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Um comentario para "Em Gaza, Israel constrói seu Auschwitz"

  1. Fábio disse:

    O que o governo de Israel está fazendo com seres humanos em Gaza é imperdoável e abjeto! Tudo sob um silêncio absoluto do povo israelense e das comunidades israelenses espalhadas pelo mundo, o que os tornam coniventes ou, no mínimo, indiferentes . A incapacidade de o mundo intervir e colocar um basta faz com que todos os países apodreçam juntos com Israel. A degradação moral mundial está num caminho sem volta. Estamos fazendo história!

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