Colapso: Os super ricos preparam o fim

O 0,1% que governa o Ocidente já não crê em saídas para a crise que criou. Busca escapes para si – ilhas sem lei, exércitos privados, terapias mágicas e realidade virtual. Eesta deserção abre uma trilha: ela exige reinventar a política e a esperança

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Por Douglas Rushkoff | Tradução: Antonio Martins

Acho que é hora de avaliarmos o que está acontecendo aqui. Todo mundo tem palavras diferentes para o que se passa no mundo. Há meses enxerguei, no ambiente em que vivemos, uma atmosfera fascista, em que as escolhas se reduzem a uma opção binária entre sim e não e não há sensibilidade para os entremeios onde a vida de fato acontece. Nossa civilização reconhece os tiques do relógio, mas não o período entre esses tiques, o tempo real em que a experiência se dá.Mas acho importante explicar o que penso serem as motivações que impulsionam algumas pessoas – sim, seres humanos, por enquanto – a arquitetarem o que parece ser um colapso intencional de nosso Estado e sociedade.

Escrevi sobre esse fenômeno pela primeira vez em meu livro de 2022, A Sobrevivência dos Mais Ricos: Fantasias de Fuga dos Bilionários da Tecnologia. Ele baseou-se em um encontro que tive com cinco homens ultrarricos, no qual me contaram sobre os bunkers e outros preparativos que faziam para o que chamavam de “o evento” – o desastre nuclear, a catástrofe climática, a escassez de alimentos, poluição ou pandemia – que torna a vida imposssível. O que me impressionou na época foi serem as pessoas mais ricas e poderosas que eu já conhecera, mas se sentirem completamente impotentes para influenciar o futuro. O máximo que podiam fazer era contratar futurólogos para prever o que se passaria e, em seguida, preparar-se para sobreviver.

O objetivo do jogo, para eles, era adquirir dinheiro e tecnologia suficientes para ultrapassar os impactos de seus próprios negócios e tecnologias. Se possuíam uma empresa de mídia social cujo efeito líquido era enlouquecer as pessoas e romper a democracia, o que tinham a fazer era criar um paraíso insular fortificado, que não dependesse de uma democracia funcional em seu país de origem.

Minha reação foi rir. Escrevi uma comédia sombria. Esses homens pareciam loucos. Estavam chapados com seu próprio produto. Usavam a desculpa de um possível desastre global para construir suas fantasias infantis de uma casa-clube virtual online, para a qual pudessem fazer upload de seus cérebros e onde praticassem sexo com personagens de anime. Escrevi o livro para que pudéssemos rir da pequena coorte de tecnolibertários, transumanos, protofascistas e misóginos que só folheiam Ayn Rand; para não levá-los tão a sério só porque conseguiam convencer Joe Rogan de algo. Acima de tudo, para não seguirmos seus passos quando algo como a covid, ou uma crise econômica, nos tentar a erguer as barricadas e viver atrás de uma fechadura inteligente com câmera da Amazon. Eu tentava mostrar o ridículo de tentar seguir sozinho, e a impossibilidade de genuinamente se proteger de um horror catastrófico. Ou, como perguntei no episódio de abertura do livro, “por que os jagunços da sua força de segurança irão proteger você, quando seu bitcoin não valer mais nada?” É risível.

Me parecia que solução, ao contrário, é conhecer nossos vizinhos, reduzir nossa dependência de grandes corporações e estabelecer resiliência local. Nós podemos conseguir. Quando sobrevivemos juntos, avançamos juntos.

Até hoje, só me entrevistam sobre o capítulo de abertura do livro. Parece muito absurdo, ou inacreditável, que bilionários adultos estejam construindo bunkers do juízo final. Entendo por que essa isca é tão interessante. Mas, lamento dizer: o livro não era sobre aqueles cinco bilionários, mas sobre uma visão completa de mundo: a crença de que apenas os indivíduos mais fortes podem e devem sobreviver. Ela agora orienta as políticas autodestrutivas do governo dos EUA. Constituem a filosofia e visão de mundo que impulsionam um caos autoritário.


Assim como os bilionários que conheci acreditavam que havia pouco a fazer diante de uma ameaça existencial iminente, os mais ricos entre nós acreditam sinceramente que os sistemas pelos quais nossa sociedade se organiza estão entrando em colapso. Eles creem na inevitabilidade das mudanças climáticas tanto ou mais que os ativistas do clima que trabalham para evitar os piores danos. Nem sequer enxergam a possibilidade de mitigação. Claro, promovem e pagam propaganda segundo a qual a mudança climática é uma farsa. Mas é apenas para impedir que todos os outros se deem conta. As campanhas dão aos super ricos o tempo de que precisam para fazer seus planos de sobrevivência, acumular terras, capturar a economia, garantir exércitos privados, construir os muros… antes que as maiorias descubram o que está acontecendo. Basta ir a uma conferência privada realizada por um dos conglomerados que financiam a propaganda de negação das mudanças climáticas. Você verá apresentações sobre como a elevação do nível dos mares impactará os mercados de financiamento habitacional ou como o encolhimento dos litorais exigirá migração em massa para o interior. Eles cobrem os mesmos assuntos discutidos em uma conferência de ambientalistas, exceto que se concentram menos na mitigação do que em oportunidades econômicas perversas. Os bancos e seguradoras estão mais desesperançados sobre a possibilidade de evitar um colapso ecológico do que os ambientalistas mais radicais.

Ou tomemos os manifestantes do Occupy Wall Street. Nós buscávamos alternativas ao crescimento exponencial sem limites; maneiras de contê-lo enquanto desenvolvíamos práticas econômicas mais circulares. As pessoas que financiam e dirigem a nova extrema-direita não têm tanta fé na economia. Elas veem melhor do que ninguém como o corporativismo extrativo e desenfreado acaba por destituir uma vasta maioria. Elas sabem que a pirâmide que construíram vai parar de gerar riqueza. A única exceção são alguns zilionários da IA que acreditam que, uma vez que os consumidores humanos não tenham mais dinheiro para gastar, serão substituídos por consumidores de IA – agentes autônomos serão os novos clientes, usando criptomoedas para comprar os ciclos de computação e os dados de que precisam, das próprias empresas de IA. Primeiro, eles tiram nossos empregos. Depois, assumem nosso papel de consumidores. Teoricamente, pelo menos nas mentes dos tecnocratas mais loucos, isso funciona. Para eles. (Escreverei sobre isso em outra ocasião.) De qualquer forma, o sistema entra em colapso para a vasta maioria das pessoas.

Simplificando, esta ultra elite são aqueles que perderam a fé no sistema que os serviu até agora. Eles acham que tudo vai desabar – pelo menos economicamente – e, mais importante, que não haverá comida, abrigo, energia e produtos suficientes para todos, quando isso acontecer.

Convencidos de que um colapso inevitável está chegando – bunkers privados à parte –, sua melhor resposta para sobrevier no caos é ficar o mais rico possível, comprando o máximo de terras e ativos, enquanto também constroem uma força militar capaz de controlar as hordas de nós que não terão comida, abrigo ou remédios suficientes. Mesmo que isso signifique promulgar políticas que acelerem o colapso, isso é preferível, para eles, a perder o controle sobre o monopólio dos espólios restantes. Já que o edifício está desabando, mais vale fazer uma demolição controlada.

Então, eles investem em cripto enquanto desvalorizam as moedas locais, baixam seus próprios impostos enquanto aumentam os impostos sobre os pobres por meio de tarifas. As tarifas também levam à falência agricultores que não conseguem encontrar mercado, e veem suas terras compradas por fundos privados, que podem então recontratá-los como “parceiros”. Colocam o máximo possível de pessoas no desemprego, demitindo funcionários públicos, o que leva a uma cascata de falências dos negócios que eles frequentam. Cortam programas de saúde e outros, jogando mais pessoas na pobreza. Basicamente, eles olharam para o “capitalismo de desastre” de Naomi Klein — a maneira como as empresas lucram com os desastres — e perceberam que poderiam criar esses desastres. À medida que governos locais vão à falência, fundos soberanos e outros investidores podem comprar portos, pontes, rodovias, parques… privatizando ativos públicos para que possam possuir, em vez de compartilhar, o que resta.
É assim que oligarcas russos assumiram o controle do país, após o colapso da União Soviética. Só que, neste caso, o colapso será orquestrado.

Fico me perguntando: não seria preferível ser bastante rico, em um mundo feliz, a ser super rico em um mundo horrível? Se houvesse a escolha? Esta elite ainda poderia dominar as pessoas, construir bibliotecas e andar por aí como deuses. Suas legiões de trabalhadores e consumidores estariam felizes e cantando seus louvores. Seria possível desfiles como a Macy’s fazia.

Mas eles não acham que isso seja possível.

Por isso, qualquer política para melhorar as condições de vida na base da sociedade, a seus olhos, apenas distribui e desperdiça os fundos e ativos de precisam para garantir sua própria segurança. Porque eles vão precisar de ilhas inteiras, reinos murados, forças de segurança robustas, usinas nucleares, soldados-robôs, poder de computação e implantes neurais para que possam construir mundos virtuais nos quais viver, caso o próprio planeta se torne tóxico demais.

Duvido que tenham algo contra criar tecnologias baratas o suficiente para que todos também possam colocar suas mentes na nuvem; mas esse não é o objetivo do jogo. Além disso, para eles, essa conversa de Socialistas Democratas radicais sobre garantir que todos os seres humanos tenham comida suficiente, ou acesso a cuidados médicos, é simplesmente irrealista. Não haverá o suficiente para todos. Por isso, em vez de cuidar dos pobres, é melhor simplesmente cortá-los. Em vez de ajudar a regiões empobrecidas do mundo, deixe que sucumbam à fome, doença ou conflito. E trate os desfavorecidos em seu próprio país exatamente da mesma maneira — enquanto os convence de que os imigrantes são o problema e que só precisamos restaurar a pureza étnica e religiosa de nossa nação para sobreviver.

E se as pessoas reclamarem ou resistirem, envie o exército a suas cidades, para sufocar o distúrbio. Crie argumentos para manter as mulheres fora das forças armadas, por medo de que elas não sigam ordens com o zelo agressivo dos esquadrões da Polícia de Imigração. E certifique-se de que não haja soldados negros, que podem ser mais propensos a se enxergar nas pessoas que deveriam abater. (É disso que trata, nos EUA, o novo regulamento que exige que as pessoas façam a barba. Pseudofoliculite da barba.) Você não quer mulheres e gente não branca em suas unidades de assalto urbano…

No momento, tais invasões são justificadas como operações contra imigrantes ilegais ou mitigação de ondas de criminalidade inexistentes. Mas — como já nos disseram — isso também é um treinamento para a guerra urbana que está por vir. Eles estão contando essa parte em voz alta. Na TV. Em seu Project 2025. No livro que endossaram, UnHumans, sobre como os comunistas não são totalmente humanos.

Por que eles diriam essa parte em voz alta? Porque estão vendendo uma filosofia de que apenas os fortes e os salvos merecem estar entre os sobreviventes. Eles promoveram a sensação geral de excesso da justiça social (Diversidade, Equidade e Inclusão) para avançar sua noção de sobrevivência darwiniana como a ordem natural das coisas. O guepardo come a gazela. Patrulhas da ICE cercam crianças mexicanas.
Eles só precisam manter a ilusão de que aderir à revolução da lei-do-mais-forte beneficiará até os brancos pobres. Pegue alguns trilhões da saúde para pagar aos policiais bônus de adesão de 50 mil dólars, para conduzir pogroms autorizados em bairros hispânicos. Mantenha até 30% das pessoas acreditando que tudo isso funcionará a seu favor — pelo menos, por tempo suficiente para sugar a riqueza remanescente e então submetê-los ao mesmo tratamento. Exceto, talvez, por aqueles que permaneceram leais.

Isso se concretizará? Eis agora a parte desagradável: quando até uma pessoa sã e compassiva ouve tudo e assimila a ideia de que nosso Estado está se vendendo porque seus líderes acreditam que o mundo está implodindo, então, o que posso fazer para proteger a mim e à minha família? Mudo-me para o Canadá? Tento ganhar muito dinheiro? De quanto dinheiro precisaria para estar no lado “seguro” das coisas? Isso é mesmo possível? As ações sobem quando o dólar cai, ou os títulos? Ouro? Bitcoin? Que tal um segundo passaporte? É tarde demais para me juntar a uma comunidade de permacultura remota?

Ou pior: as pessoas se perguntam sobre o que postaram online. As IAs encontrarão seu retuíte de 2011, de alguém considerado “anticapitalista” — um dos grupos agora oficialmente nomeados como parte do esquema democrata radical para promover o terror? Eu não gosto de pensar assim, e você também não deveria.

Eu sei. Você está esperando a parte boa. Minha alternativa do “Time Humanista”. Aqui está.

Nosso trabalho como membros do Time Humanista é não sucumbir à mentalidade de soma zero dos ricos. Em vez de ver nossa realidade como irreparável e exigir uma retirada interesseira, vemos a recompensa potencial de estarmos juntos numa luta. Eles são os que desistiram da prosperidade. Eles estão vivendo o pesadelo. Eles são os pessimistas deprimidos, que não têm fé na capacidade regenerativa das pessoas, das culturas, do planeta e da própria vida.

Eles podem ser os ricos, mas não são os fortes. São os fracos. Aqueles que veem previsões sobre mudança climática, ou sobre o capitalismo afundando sob seu próprio peso extrativista, e pensam que não há saída a não ser uma escotilha de escape construída sob encomenda.

Nós, em vez disso, devemos ser os que vemos tais previsões como desafios. Como podemos evitar mais dois graus de aquecimento? Como podemos restaurar o solo superficial, por meio da rotação de culturas e da agricultura de plantio direto para alimentar o mundo de forma sustentável? Como preservar a floresta tropical para que ela continue a fornecer sua riqueza de medicamentos ainda não descobertos? Como aumentar nossa capacidade de acolher, em vez de deportar, os milhões de refugiados climáticos que estão por vir? Em vez de fazer filmes de zumbi para nos ajudar a desumanizar as massas que sacodem os portões, criamos histórias para ajudar as pessoas a lembrar que o sinal de uma civilização avançada é o quão bem ela trata o estranho. (Este foi o teste de Deus para Ló na Bíblia, e a razão pela qual ele e sua família foram poupados da destruição de Sodoma. Ele acolheu o estranho. Seria bom que mais pessoas realmente lessem a Bíblia…)

É assim que se sobrevive ao Apocalipse — porque um “apocalipse” realmente significa revelação, ou desvelamento. Não um fim. Toda a obsessão em vencer o jogo final é, na verdade, apenas nosso medo da morte. É uma fantasia de imortalidade (outra fixação dos bilionários da tecnologia). E é isso que nos impede de desfrutar do céu sob o qual nascemos e da abundância que ele nos oferece. Estamos no Éden, gente, e é melhor começarmos a agir como tal.

Em vez de revidar, ou fugir, ou traçar estratégias para o fim, nos recusamos a ver o mundo terminando. Em vez de comprar o pesadelo da elite e aceitar sua visão limitada de como as coisas poderiam ser, abraçamos o estranho, compartilhamos nossa comida com ele e, juntos, construímos a realidade que todos sabemos ser possível, e até provável.


Em vez de confrontar aqueles que odeiam você como seu inimigo, simplesmente faça o oposto do que eles fazem. Não os odeie, ou você se tornará um deles. Em vez disso, enfrente o ódio deles com amor. Confronte o egoísmo deles compartilhando. Em vez de construir muros para manter os outros fora, abra portais que os deem as boas-vindas de casa.

Podemos fazer isso. Chega de catastrofismo e pessimismo. Esse é o jogo deles.

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Um comentario para "Colapso: Os super ricos preparam o fim"

  1. Fernando Pereira Bretas disse:

    Só quero dizer que é bom que eles se preparem para o fim. Mas será o fim deles. O fim do mundo desigual, misógino, rascista, cruel, triste e cinza que eles criaram. Construiremos o nosso sobre suas Cinzas. Transformando pelo amor, pela solidariedade e pela educação libertadora tudo que fizemos para eles melhorarem o mundo e eles usaram para usurpar, oprimir, aniquilar, humilhar e entristecer. Será o fim deles e a redenção da Terra.

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