Assim funciona o Tecnofeudalismo

Novo livro de Yanis Varoufakis. relações capitalistas persistem e continuam a nos oprimir. Mas surgiram, na fase ultramonopolista do sistema, um outro tipo de poder e outra forma de captura da riqueza social. É preciso conhecê-los

Imagem: Ajay Mohanty/Business-Standard
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Por Cory Doctorow para Resilience e Pluralistic | Tradução: Maurício Ayer

Os socialistas vêm anunciando com ardor o fim do capitalismo pelo menos desde 1848, quando Marx e Engels publicaram O Manifesto Comunista – mas o Manifesto também nos lembra que o capitalismo fica muito feliz em se reinventar durante as suas crises, voltando em novas formas, uma e outra vez.

Agora em Technofeudalism: What Killed Capitalism [Tecnofeudalismo: o que matou o capitalismo], Yanis Varoufakis – o antigo ministro das Finanças “marxista libertário” da Grécia – apresenta uma excelente argumentação de que o capitalismo morreu há uma década, transformando-se em uma nova forma de feudalismo: o tecnofeudalismo. 

Para compreender o ponto de partida de Varoufakis, é preciso ir além dos significados corriqueiros de “capitalismo” e “feudalismo”. O capitalismo não é apenas “um sistema no qual se compram e vendem coisas”. É um sistema em que o capital reina no poleiro: as pessoas mais ricas e poderosas são aquelas que coagem os trabalhadores a usarem o seu capital (fábricas, ferramentas, veículos, etc.) para gerar rendimentos sob a forma de lucro

Em contrapartida, uma sociedade feudal é organizada em torno de pessoas que têm coisas e cobram de outras pessoas para usá-las na produção de bens e serviços. Numa sociedade feudal, a forma de rendimento mais importante não é o lucro, é a renda [“rent”, em inglês, é a mesma palavra para renda e aluguel]. Citando Varoufakis: “a renda flui do acesso privilegiado a bens de fornecimento fixo” (terra, combustíveis fósseis, etc.). O lucro vem de “empreendedores que investem em coisas que de outra forma não existiriam”.

Esta distinção é sutil, mas importante: “O lucro é vulnerável à concorrência de mercado, a renda não”. Se você tem uma cafeteria, todas as outras cafeterias abertas em seu quarteirão são uma ameaça competitiva que pode corroer suas margens de lucro. Mas se você é dono do prédio que o dono da cafeteria aluga, as outras cafeterias abertas no quarteirão aumentam o valor da propriedade e o valor do aluguel que você pode cobrar.

A revolução capitalista – enaltecida e condenada no Manifesto – foi liderada por pessoas que valorizavam os lucros como retornos heroicos por fazer algo novo neste mundo, e que condenavam a renda como um dreno parasitário extraído dos verdadeiros produtores, cujo espírito empreendedor nos enriqueceria a todos. Os “mercados livres” exaltados por Adam Smith não eram isentos de regulaçãoeles eram livres de rendas.

Mas as rendas, escreve Varoufakis, “sobreviviam apenas de forma parasitária sobre o – e à sombra do – lucro”. Ou seja, os rentistas (pessoas cuja riqueza provém de rendas) eram uma pequena parte da economia, ligeiramente suspeitos e à margem de qualquer poder de influenciar sobre como organizar a nossa sociedade. No entanto, tudo isso mudou em 2008, quando os bancos centrais mundiais enfrentaram a Grande Crise Financeira resgatando não apenas os bancos, mas sobretudo os banqueiros, direcionando bilhões de dólares justamente para aqueles cujo comportamento temerário levou o mundo à beira da ruína econômica.

De repente, esses ricos e os seus bancos experimentaram enormes ganhos de riqueza sem lucros. Seus negócios perderam bilhões em lucros (o custo de oferecer os produtos e serviços da empresa excedeu largamente o dinheiro que as pessoas gastaram nesses produtos e serviços). Mas o negócio ainda tinha bilhões como excedente no final do ano, em relação ao que tinha no início: bilhões em dinheiro público, direcionados para eles pelos bancos centrais.

Isso deu início à “recuperação de tudo”, em que todo tipo de ativo – imóveis, obras de arte, ações, títulos, e até mesmo JPEGs de macacos – disparou em valor. É exatamente o que se espera de uma economia em que a renda tem a prevalência sobre o lucro. Os rentistas feudais não precisam investir para continuar ganhando dinheiro – lembre-se, sua riqueza provém de possuir coisas nas quais outras pessoas precisam investir para ganhar dinheiro.

As rendas não são vulneráveis ​​à concorrência, de modo que os rentistas não têm a menor necessidade de investir em novas tecnologias para manter a entrada de dinheiro. O capitalista que arrenda o campo petrolífero precisa investir em novas plataformas de extração e na refinação para se manter competitivo em relação a outras empresas petrolíferas. Mas o rentista do campo petrolífero não tem que fazer nada: ou o inquilino capitalista investe em mais capital e tornará o campo mais valioso, ou perderá para outro capitalista que o substituirá. De um jeito ou de outro, o rentista ganha mais renda.

Assim, quando os capitalistas ficam mais ricos, gastam parte desse dinheiro em novos capitais, mas quando os rentistas ficam mais ricos, gastam dinheiro em mais ativos que possam alugar aos capitalistas. A “recuperação de tudo” tornou todo tipo de capital mais valioso, e as empresas que estavam em transição para uma base feudal viraram-se e entregaram esse dinheiro aos seus investidores em recompras de ações e dividendos, em vez de gastarem o dinheiro em pesquisa e desenvolvimento, ou na renovação das fábricas, ou em novas tecnologias.

As empresas de tecnologia, porém, foram a exceção. Eles investiram no “capital da nuvem” – os servidores, linhas e serviços pelos quais todos os outros passam a ter que pagar aluguel para praticar o capitalismo.

Pense na Amazon: Varoufakis compara fazer compras na Amazon a visitar um movimentado centro de cidade repleto de lojas geridas por capitalistas independentes. No entanto, todos esses capitalistas são subservientes a um senhor feudal: Jeff Bezos, que tira 51 centavos de cada dólar que trazem e, além disso, decide quais os produtos que podem vender e como esses produtos serão exibidos.

O mundo pós-capitalista e tecnofeudal não é um mundo sem capitalismo, portanto. É um mundo onde os capitalistas são subservientes aos “feudalistas” (ou “cloudalistas”, segundo o termo de Varoufakis), assim como o resto de nós, os peões da nuvem, desde os utilizadores e artistas das redes sociais que enchem os silos dos tecnofeudalistas com “conteúdo” até aos utilizadores regulares cuja dieta de mídia é ditada pelos sistemas de recomendação dos cloudalistas.

Uma característica definidora do cloudalismo é a capacidade do senhor rentista de destruir o negócio de qualquer vassalo capitalista com o clique de um mouse. Se o Google expulsar sua empresa do índice de pesquisa, ou se o Facebook bloquear sua publicação, ou se o Twitter proibir menções ao seu produto, ou se a Apple retirar seu aplicativo da loja, você estará frito.

Os capitalistas “ainda têm o poder de comandar o trabalho da maioria que depende dos salários”, mas no fim das contas são meros vassalos dos cloudalistas. Mesmo o capitalista mais vigoroso não consegue escapar ao pagamento de rendas, em grande parte graças à “propriedade intelectual” (PI), que afirmo ser mais bem compreendida como “qualquer lei que permita a uma empresa ir além dos seus muros para ditar a conduta dos concorrentes, críticos e clientes”.

Varoufakis aponta maneiras pelas quais os cloudalistas podem consolidar os seus ganhos: por exemplo, a energia “verde” não depende de arrendamento de terras (como os combustíveis fósseis), mas depende sim de redes e protocolos de dados que podem ter restrições de PI, ambos os quais podem ser transformados em pontos de estrangulamento para a extração de renda feudal.

Para piorar as coisas, Varoufakis argumenta que os cloudalistas não terão a capacidade de acumular os graus de cooperação e paciência necessários para realmente resolver a crise climática – eles não só extrairão renda de todas as fontes renováveis, mas também as armazenarão de maneiras que tornará inviável que esses recursos produzam as coisas que precisamos que produzam.

A energia é apenas uma das implicações tecnofeudais que Varoufakis explora neste livro: há também extensas e fascinantes partes sobre geopolítica, política monetária e a Nova Guerra Fria. O tecnofeudalismo – e a luta para produzir um feudo dominante – é uma lente muito útil para entender a guerra tecnológica entre EUA e China.

Embora neste aspecto Varoufakis apresente um argumento técnico (e até esotérico), ele se esforça bastante para torná-lo acessível. O livro está estruturado como uma longa carta aberta ao seu pai, um engenheiro químico de esquerda que foi prisioneiro político durante a tomada fascista da Grécia. O quadro conceitual funciona muito bem, especialmente se você leu Conversando com minha filha sobre economia [Talking To My Daughter About the Economy], a cartilha de Varoufakis sobre economia radical de 2018, na forma de uma carta à sua filha.

No final do livro, Varoufakis apela a “uma rebelião nas nuvens para derrubar o tecnofeudalismo”. Esta seção é muito curta – e com poucos detalhes. Isso não é uma crítica ao livro: há muitos livros muito bons que consistem principal ou inteiramente na análise dos problemas de um sistema, sem a necessidade de apresentar um programa detalhado de como resolver esses problemas.

Mas para o que vale a pena, acredito que uma forma de planejar e executar uma “rebelião na nuvem” – uma forma de utilizar leis, tecnologia, engenharia reversa e leis de direitos humanos para destruir as plataformas e tomar os meios de computação. Eu partilho esse programa no livro The Internet Con: How to Seize the Means of Computation [A fraude da internet: Como tomar os meios de computação], que publiquei pela Verso Books há algumas semanas.

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