A humanidade, antes de um pesadelo invernal

Série de textos investigará a crise civilizatória, a partir do risco nuclear. O que é a teoria de autopoiesis — e como ela ajuda a entender o mundo de hoje? De que esta natureza autoconservadora nos valeria numa vida pós-inverno atômico?

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Título original: Não existe nenhuma ‘realidade’ única aos homens

Diante do trágico momento histórico a que chegamos, este artigo propõe pensarmos o impensável – como haverão de ser as nossas vidas em um pós-guerra nuclear –, e ele é composto por cinco partes, a serem publicadas em cinco semanas consecutivas, às sextas-feiras:

– A primeira parte, “Não existe nenhuma ‘realidade’ única aos homens”, consiste em uma preliminar e necessária digressão a respeito da natureza intrínseca aos seres vivos, às pessoas e às sociedades, para fundamentação das demais partes;

– A segunda parte, “Salvar o Dólar – ou morrer junto com ele”, discorre sobre o porquê de uma guerra nuclear no mundo ter-se tornado hoje bastante provável;

– A terceira parte, “A morte não é só pelas bombas”, aborda as consequências diretas de uma guerra nuclear;

– A quarta parte, “Um retrocesso que poderá ser de séculos ou de milênios”, trata das consequências indiretas e a longo prazo; e

– Finalmente, a quinta parte, “Ou juntos, ou nada”, discorre sobre o que seria possível tentarmos fazer para lidar com essas consequências.

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O que você, leitor(a), pensaria de eu lhe dizer que simplesmente não existe nenhuma realidade em si, porque a natureza de cada pessoa é criar a sua própria realidade, e isso para muito além de mera interpretação ou viés psíquico, e sim por determinação biológica? E se eu também lhe disser que as pessoas não se adaptam às mudanças no seu ambiente externo, porque qualquer mudança que nelas porventura ocorra terá sido na verdade causada internamente, não pelos eventos externos? Pois então, não se trata aqui de uma explicação para se compreender algum fenômeno que já subentendamos, se trata ao invés de uma profunda mudança de paradigma, e é por isso que iremos, preliminarmente às demais partes deste texto, abordar tais questões com o grau de profundidade necessário.

Há mais de quarenta anos, os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela propuseram uma refundação da Biologia como ciência, recusando a explicação vigente, de origem darwinista, do fenômeno da vida a partir da físico-química (interações moleculares), e redefinindo a vida não mais como um fenômeno universal (algo idêntico em todos os seres vivos), mas singular, particularizado para cada indivíduo (cada ser vivo). Cada ser vivo seria dotado de um sentido de autoconservação autônomo, ou seja, uma espécie de identidade própria. Imerso no seu ambiente e nas variações e mudanças no mesmo, o ser vivo permanentemente reajusta as suas correlações internas (suas regularidades), podendo mesmo chegar a alterações fisiológicas, sempre de modo a preservar o seu padrão de organização próprio – a sua identidade. Maturana e Varela denominaram a sua teoria de autopoiesis (a perpétua autoprodução de si).

Em suma, a conservação da identidade (interna ao ser vivo) é o processo vital último, não a adaptação às mudanças (externas ao ser vivo). O resultado de qualquer “adaptação” a mudanças externas será determinado não por estas, mas pela dinâmica interna de conservação da identidade – muito embora a um observador externo possa parecer que o ser vivo “adaptou-se ao meio”, quando na verdade ele atualizou-se internamente de modo a prosseguir congruente com seu ambiente (na terminologia de Maturana e Varela, a prosseguir “acoplado” ao seu ambiente). Ou ainda: qualquer conservação da adaptação ao meio subordina-se à conservação da identidade – pode-se assim dizer que o ser vivo “muda para não mudar” (atualiza-se, parecendo adaptar-se, para conservar-se como já é).

Os seres vivos, no transcurso dessa sua “deriva natural” (acoplamento) em congruência com as variações dos seus ambientes, acabam por estabelecer correlações internas (ou seja, por criar regularidades) como modos de referenciar padrões de variação externos. Isto corresponde a dizer que cada ser vivo especifica (cria) o SEU mundo externo, a SUA realidade, a qual não é assim de modo algum universal ou absoluta a todos eles. Pesquisadores comprovaram que até mesmo bactérias são capazes de estabelecer correlações internas como modo de referência a variações externas, tais como frio-quente ou alcalino-ácido; submetidas a circunstâncias ambíguas (estímulos conflitantes), cada bactéria é capaz de “decidir” de forma individualizada.i

A conservação da identidade (autopoiese) e a conservação da adaptação dependem uma da outra, mas não se determinam: esta é uma decorrência daquela, que a precede; em contrapartida, se a conservação da adaptação cessa, as interações do ser vivo em seu meio tornam-se interações desintegradoras, com o que a autopoiese tende também a cessar e, o organismo, a morrer. Ou ainda: uma vez que a conservação da identidade se dá na produção e renovação de regularidades internas, a contrapartida da conservação da identidade é uma inércia dessas regularidades que, face a mudanças bruscas no meio, tende a constituir empecilho à conservação da adaptação. Seguem-se alguns exemplos:

– Na década de 1940 foram realizados experimentos com salamandras em que se seccionava parte da musculatura de um dos olhos de uma larva que era então invertido (girado 180 graus). Após o desenvolvimento até a fase adulta eram sucessivamente dispostos insetos em uma mesma posição relativamente à salamandra: ao se cobrir o seu olho invertido, o animal projetava a sua língua e capturava com perfeição o alvo; ao se cobrir o seu olho normal, o animal projetava a sua língua no vazio – na direção exatamente oposta à do inseto.ii As correlações internas entre as células da retina e os nervos que contraem músculos motores da língua mantiveram-se inalteradas, independentemente da “realidade” exterior “vista”;

– Esse experimento com as salamandras já havia, de forma análoga, sido feito em seres humanos: ao final do século XIX, George Stratton adaptou a si próprio óculos com lentes que o faziam ver o mundo de cabeça para baixo. Após cerca de uma semana de severa desorientação, sua visão voltou a gerar imagens em suas posições habituais; alguns dias mais e ele retirou os óculos, com o que por várias horas tudo voltou a ser visto de cabeça para baixo até que, finalmente, o seu sistema nervoso resgatou as suas correlações originais.iii Em síntese: após uma mudança externa abrupta, o processo de reconfiguração das correlações internas para recuperação da congruência com o ambiente requer tempo;

– Em um experimento na TV, Alain Bombard apresentou duas bacias de vidro: uma com água poluída na qual nadava com desenvoltura um polvo, e outra com água do mar limpa; ao transferir o polvo da água poluída para a água limpa, este contorceu-se, prostrou-se e morreu.iv Aquele animal dispusera de todo o seu tempo de vida para ajustar as suas correlações internas de modo a manter a congruência com a água poluída em que nascera, e de tempo praticamente nenhum para atualizar estas correlações diante da mudança repentina para a água limpa;

– Também um episódio análogo a esse do polvo já houvera acontecido, inadvertidamente, com seres humanos: a partir de dezembro de 1944, com a aproximação do final da Segunda Guerra Mundial, os nazistas deram início à transferência maciça dos prisioneiros remanescentes em seus campos de concentração para o campo de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, superlotando-o. Ao ser libertado por tropas inglesas em abril de 1945, lá havia cerca de 60 mil prisioneiros. Os soldados, compadecidos diante da condição esquelética dos sobreviventes, deram a eles suas rações de alta caloria, e cerca de 14 mil morreram em seguida. Submetidos à fome extrema, os organismos deles para conseguir sobreviver haviam redefinido o nível de eletrólitos no sangue para um mínimo, e a produção abrupta de enzimas digestivas os levou à hipofosfatemia (baixa de fosfatos), que os levou à falência cardiorrespiratória.

Para muito além de bactérias, salamandras ou polvos, o homem, por ser não apenas social como civilizacional, constitui um caso particular entre os seres vivos. A teoria da autopoiesis explica então a passagem do homem pré-histórico (animal) para o homem histórico (animal e também civilizacional) por considerar a linguagem como fenômeno biológico. Aquilo que distingue o homem de outros animais como golfinhos (que mantêm entre si uma linguagem eminentemente auditiva) e chimpanzés e gorilas (capazes de aprender com os humanos os rudimentos de linguagens gestuais, como as utilizadas pelos surdos-mudos) não seriam as suas capacidades cognitivas de aprendizado, e sim as suas capacidades superiores de vocalização – que levaram ao surgimento da linguagem, para somente então ter lugar o avanço na aprendizagem.

Muitos animais são capazes de comunicação (formigas, por exemplo), porém a linguagem é um caso particular de comunicação, que emerge quando as comunicações em si podem ser tornadas, elas próprias, elementos do meio ambiente, ou seja, quando passam a ser referenciáveis por meio de correlações internas (neste caso, neuronais) específicas. Uma vez tornadas elementos do ambiente externo, elas passam também a operar como perturbações (variações do ambiente) para os indivíduos, perturbações cuja compensação se vale da coordenação das condutas dos indivíduos em acoplamento recíproco. Dito de outra forma, as comunicações passam a conformar descrições do ambiente, descrições com as quais se pode interagir: duas ou mais pessoas engajadas na tarefa de cavar um buraco distinguem na linguagem, de modo consensual, elementos do seu mundo tais como “pedra”, “terra” ou “pá” e, ao interagir com essas distinções, coordenam as suas condutas. Mas, a partir do momento em que um deles passa a chamar o buraco de “cisterna”, “silo”, “cova” ou “lixeira”, emerge um novo consenso a respeito daquele mundo em comum.

Foi por ter desenvolvido essa capacidade de interagir de modo recursivo com os seus próprios estados neuronais internos (capacidade de abstração) que o homem passou a expandir indefinidamente o seu domínio cognitivo (aprendizagem); e, por dispor da linguagem, não há absolutamente limites para o que ele possa vir a descrever.

A caracterização da autopoiese requer que haja produção física (celular, molecular) dos componentes dos organismos por eles próprios – o que, por rigor científico, não se aplicaria a sociedades. Dada essa restrição, Maturana e Varela preferiram denominar como “autônomas” (em vez de autopoiéticas) às situações tais quando: dois ou mais seres vivos tornam-se acoplados, mutuamente especificando “ambiente” uns para os outros; tal acoplamento facilita as suas autopoieses individuais; as interações entre eles tornam-se recorrentes, e a conduta de cada um acaba por tornar-se função da conduta dos demais; finalmente, esse acoplamento recíproco termina por tornar-se estável – é quando advém uma unidade dita autônoma: uma colônia de insetos, um bando de animais, um ecossistema, uma sociedade humana.

Quem efetua o salto da Biologia para a Sociologia – e mostra serem os sistemas sociais humanos também autoprodutores de si próprios – é Niklas Luhmann. Já na década de 1960 Luhmann dedicava-se à compreensão dos sistemas jurídicos-legais, e os via como autorreferenciados. A identidade desses sistemas deriva de um princípio de aplicação isenta das leis, de forma independente de estarem ou não estas em consonância com as circunstâncias do momento. Uma vez que as instâncias legislativas para atualização das leis não dispõem da desenvoltura suficiente para dar conta de acompanhar o ritmo das mudanças que se sucedem em todas as dimensões das sociedades, por todo o mundo os sistemas jurídico-legais vão se tornando defasados, ao subordinarem a compensação de qualquer perturbação oriunda do ambiente (sociedade) à conservação das suas identidades historicamente consolidadas.

Com o advento da teoria da autopoiesis, Luhmann pôde finalmente dispor das bases que lhe faltavam para a consumação da sua teoria da sociedade, pela qual tanto os sistemas sociais quanto os sistemas psíquicos (as pessoas) são formados por processos de produção de significados (Sinn) que, contínua e recursivamente, produzem aqueles sistemas (com o que Luhmann converte de espacial para temporal a própria noção de sistema, de uma constituição por componentes físicos para uma constituição por eventos). O que distingue sistemas psíquicos de sistemas sociais é a natureza dos processos produtores de significados (nos sistemas psíquicos, estados de consciência; nos sistemas sociais, interações). Ambos operam de forma fechada (autônoma) na conservação das suas identidades, e eles conformam domínios distintos, mutuamente dependentes um do outro para sua própria geração e conservação, porém não determinantes um do outro, o que implica não haver qualquer causalidade direta entre as ações das pessoas e a constituição dos sistemas sociais – os sistemas sociais possuem uma “vida” em si.

Assim, tanto quanto os seres vivos (os sistemas autopoiéticos), os sistemas sociais são mantenedores de si próprios, ou “autoconservadores”. Quaisquer contingências no ambiente externo somente se dão na qualidade de perturbações, e quaisquer mudanças internas para compensação destas perturbações estarão necessariamente subordinadas à conservação da identidade. O sistema social cria a SUA realidade (o “seu mundo”) ao perpetuamente estabelecer e reajustar correlações internas como modos de referência a padrões de variação externos: durante milênios, por exemplo, os navegadores adentravam os mares aterrorizados com a perspectiva de cair pela borda do mundo – um mundo que era então, para todos, plano; durante milênios, também, os homens que viam o Sol nascer em lado do céu e pôr-se no lado oposto acreditaram girar o Sol em torno da Terra – foi após inventar um telescópio e comprovar a tese de Copérnico de que é a Terra que gira em torno do Sol que Galileu veio a padecer de modo dramático a inércia da tradição, e os riscos de propor uma realidade (um mundo) diametralmente contrária à dos demais. É o caso de nos perguntarmos: quais dentre as “realidades” contemporâneas não estarão, no futuro, igualmente reduzidas à condição de crendices?

Esse processo pelo qual nós humanos subordinamos o entendimento do mundo à conservação das nossas identidades históricas nos é por demais sutil, e assim nos passa despercebido. Nos grupos de que sou facilitador eu costumo propor um exercício: peço às pessoas que formem pares com outras a quem pouco ou nada conheçam, e lhes dou a tarefa de conhecer a outra pessoa, fazendo-lhe perguntas e anotando em uma folha de papel as perguntas e as respostas dadas. Terminada a tarefa, eu lhes digo: “agora esqueçam as respostas que vocês anotaram, o que importa aqui são as perguntas que cada um de vocês fez. Pergunte agora a si próprio: por que você fez ESSAS perguntas? O que cada uma delas tem a ver com a SUA vida?”. Na discussão que se segue, uma pergunta aparentemente “neutra” como (por exemplo) “onde você mora?” ao puxar-se o fio da meada pode levar (por exemplo) a que aquela pessoa decidiu morar próxima ao seu local de trabalho para reduzir o tempo de deslocamento, porém ela desejaria estar morando em um outro local, que fica distante contudo. Aquela (as vantagens e desvantagens do local de moradia) é uma questão em aberto, e importante, na vida dela. Ao perguntar “onde você mora?” a um estranho, ela está, algo entre consciente e inconscientemente, em busca de responder à SUA questão de vida.

Um outro exemplo: circula nos meios de tratamento do alcoolismo uma anedota, segundo a qual em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos nos Estados Unidos o monitor teria proposto ao grupo reunido uma experiência de contato direto com a realidade objetiva. Ele tomou então dois frascos de vidro e encheu um com água e outro com álcool; pegou um pequenino verme e deixou-o cair no frasco com água: o verme afundou, alguns segundos depois começou a se movimentar, chegou à superfície e ondulou até a borda. O monitor recolheu o verme e desta vez deixou-o cair no frasco com álcool: ele novamente afundou, porém permanecendo inerte; instantes depois ele começou a se desintegrar. Depois de algum tempo, do verme só restava uma região turva em meio ao líquido cristalino. O monitor então perguntou: “Todos viram?” Sim, todos haviam visto. “E a que conclusão podemos chegar?” Uma mão se levantou: “Entendo que, se bebermos álcool, não teremos vermes”. Aquele alcoólatra havia atualizado as suas correlações internas (chegado a um entendimento quanto ao que havia visto) de forma referenciada em quem ele era – um alcoólatra.

A um observador externo, o comportamento dessa pessoa pode parecer “irracional” (alguém que vê a morte de um ser vivo imerso no álcool não alcançar que o álcool seria nocivo à vida) – mas isso se deve a que qualquer julgamento por um observador se dá a partir da identidade dele, observador. Já o entendimento que se dá a partir da identidade do alcoólatra não é de modo algum “irracional”, é a compreensão própria a ele, na sua racionalidade de alcoólatra.

A partir desta compreensão da natureza dos seres vivos, das pessoas e das sociedades, propiciada pela teoria da autopoiesis, poderemos agora abordar adequadamente a delicada questão de um pós-guerra nuclear no Brasil.

Na próxima sexta-feira, 2/8, Outras Palavras publica a segunda parte desta série: “Salvar o Dólar – ou morrer junto com ele”;


Nota:

i Conforme ADLER, Julius, TSO, Wung-Wai. “ ‘Decision’-making in Bacteria: Chemotatic Response of Escherichia coli to Conflicting Stimuli”. Science, vol. 184, pp. 1292-1294, 1974.

ii Conforme SPERRY, Roger W. “Restoration of Vision after Crossing of Optic Nerves and after Contralateral Transplantation of Eye”. Journal of Neurophysiology, vol. 8, pp. 15-28, 1945.

iii Conforme STRATTON, George M. “Some Preliminary Experiments on Vision without Inversion of the Retinal Image”. Psychological Review, vol. 3, pp. 611-617, 1896; “Upright Vision and the Retinal Image”. Psychological Review, vol. 4, pp. 182-187, 1897; e “Vision without Inversion of the Retinal Image”. Psychological Review, vol. 4, pp. 341-360, 463–481, 1897.

iv Extraído à página 25 de GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas: Papirus, 1990.

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