A Gaza mortal (também) para jornalistas
“Até hoje posso ouvir balas ricocheteando”, diz jornalista palestino ferido. Outro, antes morrer: “Continuem contando nossas histórias”. Ele é um dos mais de 200 mortos por Israel. Projeto resgata história desses profissionais – e mostra como se tenta ocultar os assassinatos
Publicado 28/04/2025 às 19:06

Ao mesmo tempo em que o cerco israelense à Faixa de Gaza está aumentando, a imprensa internacional está proibida de cobri-lo diretamente. Nesse contexto de agressão militar, desabastecimento imposto e desinformação forçada, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina (UNRWA) exigiu que a imprensa internacional fosse autorizada a entrar na Faixa de Gaza, área proibida há mais de um ano.
A Agência lembrou que “o livre fluxo de informações é fundamental para a responsabilização durante os conflitos” e enfatizou que “Gaza não deve ser uma exceção. Já é hora de que a mídia internacional” possa entrar em Gaza. A proibição limita todos os tipos de informações independentes, um fato que “alimenta a propaganda, a desinformação e a disseminação da desumanização”, disse Philippe Lazzarini, chefe da UNRWA, em 15 de abril.
Da mesma forma, Ajith Sunghay, chefe do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos nos territórios palestinos ocupados, lembrou as dificuldades que os jornalistas na Palestina sempre enfrentaram. Em muitos casos devidamente registrados, eles foram sujeitos a assassinato, censura e detenções.
De acordo com a organização, entre 7 de outubro de 2023 e 11 de abril deste ano, 209 jornalistas e trabalhadores da mídia palestinos foram mortos, 27 dos quais são mulheres. Sunghay disse que “tanto em Gaza quanto na Cisjordânia, vários jornalistas palestinos foram detidos. Registramos e recebemos relatos de maus-tratos, possivelmente equivalentes a tortura, de jornalistas sendo presos, bem como ameaças perturbadoras de violência sexual contra mulheres jornalistas”.
Ataque sistemático à imprensa
De acordo com a Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), que é a principal organização mundial de sindicatos e associações de mídia, pelo menos 171 jornalistas e profissionais da mídia foram mortos em Gaza no mesmo período; vários ficaram feridos e outros estão desaparecidos. Esse número representa uma taxa de mortalidade de mais de 10%, muito superior à de qualquer outro grupo profissional. A FIJ trabalha em estreita colaboração com seu afiliado, o Sindicato de Jornalistas Palestinos, para verificar esses eventos em tempo real e conseguiu documentar devidamente 157 desses casos.
Como relata o secretário-geral da FIJ, Anthony Bellanger, a gravidade da repressão contra a imprensa nessa região particularmente conturbada exige intensificar a denúncia. Como parte do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a FIJ está organizando um evento em Bruxelas, na Bélgica, no próximo 6 de maio, para exigir o fim do assassinato de jornalistas em todo o mundo, e, em particular, nas zonas de guerra mais mortais, como Palestina, Síria e Iêmen. A organização internacional atualiza permanentemente os dados das vítimas em seu site e há meses promove um Fundo de Solidariedade para apoio direto aos trabalhadores da imprensa de Gaza.
Pesquisa irrefutável
Cinco meses após a publicação, em junho de 2024, da primeira parte do Projeto Gaza, a rede investigativa Forbidden Stories (Histórias Proibidas) e seus parceiros de imprensa iniciaram uma nova colaboração investigativa internacional sobre a guerra de Israel em Gaza. A Rede concorda com a Federação Internacional de Jornalistas e com o Comitê para a Proteção dos Jornalistas no número de cerca de 170 jornalistas que foram mortos em Gaza até outubro de 2023. “Às vezes eles eram alvos do exército israelense, às vezes morreram entre outras vítimas civis [como resultado] dos bombardeios maciços que devastaram Gaza por muitos meses”, indica o Forbidden Stories.
Cerca de quarenta jornalistas de 12 meios de comunicação estão participando dessa nova investigação colaborativa. “Esse trabalho coletivo nos permitiu contar em detalhes como os jornalistas que filmam com drones são alvo de perseguição pelo exército israelense”. Entre eles estava Mahmoud Isleem Al-Basos, que foi morto em 15 de março passado em um ataque de aviões não tripulados israelenses em Beit Lahia enquanto acompanhava um comboio humanitário e que havia filmado imagens para o Projeto Gaza poucos dias antes. Por sua vez, o exército israelense declarou que, naquele dia, atacava especificamente “terroristas” que utilizavam um avião não tripulado, embora nunca tenham confirmado essas alegações.
Com base na análise de documentos inéditos de vários ministérios israelenses, Forbidden Stories descreveu a estratégia implantada pelo governo israelense para promover e defender sua impunidade perante os tribunais internacionais. E para acusar alguns jornalistas palestinos ou as organizações que os defendem de terrorismo. A Rede afirma que “como matar o mensageiro nunca matará a mensagem, continuamos o trabalho desses repórteres usando drones para filmar as ruínas”. Essa foi, de fato, a missão atribuída a Mahmoud Isleem Al-Basos, poucos dias antes de sua morte. Graças a ele e às novas técnicas de modelagem desenvolvidas pela ONG Bellingcat (parceira da rede de pesquisa), foi possível projetar mapas aéreos 3D interativos e imersivos dos distritos de Al Shati e Jabalia para visualizar a magnitude da destruição de perto e de forma inédita.
A segunda parte do Programa de Gaza também inclui a história de Fadi Al-Wahidi. Paralisado em sua cama de hospital, o repórter relata o dia em que foi gravemente ferido perto do campo de refugiados de Jabalia, enquanto usava seu colete de identificação “Imprensa”. Ele e seus colegas estão convencidos de que foi um tiro intencional do exército israelense: “Até hoje posso ouvir as balas ricocheteando na porta e nas paredes ao meu lado. Foi uma tentativa de assassinato seletivo. Foi um impacto direto”, diz o repórter.
E registra como o Hosam Shabat foi morto em 24 de março por um drone israelense enquanto viajava em um carro com o logotipo da Al Jazeera. “Estou usando um colete de imprensa e capacete. Sempre tentamos ser identificados como jornalistas para que o exército de ocupação não tenha motivos para nos atacar”, explicou Shabat ao Le Monde, em junho de 2024, como parte do Projeto Gaza. Ciente do perigo, ele deixou uma mensagem de depoimento para seus entes queridos. Eles o publicaram no X após sua morte. O jornalista de 23 anos escreveu: “Pelo amor de Deus, cumpri meu dever como jornalista. Arrisquei tudo para dizer a verdade e agora, finalmente, encontro a paz”. Para concluir, ele pediu àqueles que leram sua mensagem que “continuem contando nossas histórias. Esta é a própria essência do Projeto Gaza“.
De mal a pior
No início de abril deste ano, seis Agências das Nações Unidas – incluindo a própria UNRWA, UNICEF, dedicada às crianças e a Organização Mundial da Saúde – publicaram uma declaração conjunta sobre a situação enfrentada pelos habitantes da Faixa de Gaza. Afirmam que mais de 2,1 milhões de pessoas estão mais uma vez presas, bombardeadas e desnutridas, enquanto alimentos, remédios, equipamentos essenciais e combustível se acumulam e permanecem bloqueados nos pontos de fronteira. Na primeira semana após o colapso do cessar-fogo, mais de 1.000 crianças foram mortas ou feridas, um número recorde nos últimos doze meses.
O sistema de saúde, que está funcionando parcialmente, está sobrecarregado. Suprimentos médicos e de traumatologia essenciais estão se esgotando rapidamente, ameaçando reverter os ganhos duramente conquistados na manutenção de um sistema de saúde eficaz. Ao mesmo tempo, as 25 padarias apoiadas pelo Programa Mundial de Alimentos durante o cessar-fogo foram forçadas a fechar devido à escassez de farinha de trigo e de gás de cozinha.
As seis instituições da ONU reconhecem que essa breve interrupção do conflito “nos permitiu alcançar em 60 dias o que bombas, obstáculos e saques nos impediram de alcançar em 470 dias de guerra: a entrega de suprimentos vitais para quase todas as áreas de Gaza”. Acrescentam que, embora tenha oferecido um momento de trégua, as alegações de que agora há comida suficiente para alimentar todos os palestinos em Gaza estão longe da realidade no terreno e os bens básicos são extremamente escassos.
E concluem: “Estamos testemunhando atos de guerra em Gaza que demonstram um total desrespeito pela vida humana. Novas ordens de deslocamento israelenses forçaram centenas de milhares de palestinos a fugir mais uma vez, sem nenhum lugar seguro para ir. Agora que o bloqueio de dois meses de Israel a Gaza foi reforçado, pedimos aos líderes mundiais que ajam com firmeza, urgência e decisão para garantir o respeito aos princípios fundamentais do Direito Internacional Humanitário.”
Enquanto as manchetes do mundo transbordam sobre várias questões, a situação em Gaza está passando por uma letargia já institucionalizada. Uma guerra de agressão que foi “institucionalizada” e que, sem a presença da imprensa internacional no terreno, às vezes parece não existir.
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